29 setembro 2005

Da noite



Ela trabalhava numa casa de alterne.
Ele alternava as noites entre casa e casas de putas.
Ela vestia sempre preto. Ele achava o preto deslocado.
Uma noite sentou-se na mesa dela. Ofereceu-lhe uma bebida e um sorriso.
Ela aceitou a bebida. Hesitou no sorriso.
Aceitou.

Procurou-lhe os olhos. Ela baixou-os. Ele gostou.
Ele não falou. Ela nada disse.
Olhava-a.
Ele ficou na mesa dela toda a noite. Lendo, interpretando o silêncio.
Os gestos púdicos, o negro da roupa.
O recato numa casa de putas.

No fim da noite ela saiu sem lhe perguntar se a queria.
Simplesmente, levantou-se e saiu.
Ele voltou na noite seguinte e todas as noites.
A noite dele a mesa dela.
O dia dele a espera da noite. A espera dela.

Uma noite ele estendeu-lhe a mão. Saíram.
Na rua falou dele. Falou dela.
Falou na casa que era dele onde uma estranha habitava. Não ela.
Falou no lugar que era o dela. Ela não pertencia ao lugar.
Não era o lugar dela.

Tão diferente o preto que ela vestia da cor do lugar.
Tão diferente o silêncio dela dos sorrisos falsos, das palavras abundantes e ocas.
Tão diferente o recato dela, o pudor nos olhos baixos, da luxúria, da oferta do corpo no lugar.
Ela apertou-lhe a mão como se só ele entendesse.
Ele sentiu-se único e responsável.
Ela fez amor com ele como se o amasse.
Ele fez amor com ela amando-a.

Ele deixou de alternar entre casa e casas de putas.
A noite, o bar, a mesa dela, casa única.

Uma noite ele assumiu perdas e derrotas, impotência e exageros.
Disse-lhe: - Vem viver comigo.
Ela apertou-lhe a mão.

Nessa noite não pegou, como todas as outras noites, no dinheiro que ele pousava ao lado da mala dela.
Como se não existisse compra. Como se nunca tivesse existido venda.
Fez amor com ele como se o amasse.
Ele fez amor com ela amando-a. Chamando-a sua.

No dia seguinte esperou-a no quarto feio e frio a que chamava agora lar.
Ela não chegou.
Esperou-a mais um dia e uma noite. No outro lado do telefone o silêncio.

Procurou-a.
A mesma mesa. O mesmo vestido preto. O mesmo recato. Outro homem.
Agarrou-a por um braço. Gritou-lhe dor e amor. Declarou-se perdido, a culpa dela.

Alguém o expulsou da noite, do bar, da mesa, da vida dela.
Alguém lhe disse rindo:
- Ela é a melhor puta da casa.

Foto: Marta Laura

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