12 outubro 2005

Recordação de uma noite vulgar - por Charlie

Quantas vezes lhe tinha dito que não queria voltar a vê-la? Nem sei.
Uma e outra vez lhe dissera que a nossa relação tinha sido algo apenas pontual. Algo passageiro e sem intenções de continuidade. Ela própria confirmara na noite que passáramos juntos, semanas antes, que não mais queria ver-me.
Agora ali estava mais uma vez!
Tudo começara naquela noite.
Não muito longe do mar.
Um cruzar de olhos naquele bar.
Um aceno de cabeça e um afastar devagar para a porta.
Depois, o regresso ao balcão.
Para o extremo oposto onde ela estava.
Mais cruzar de olhos.
Mais sinais do corpo.
A aproximação.
Encostamo-nos num conversar em tom baixo num jogo de dupla sedução, em lento crescendo.
Aumentando o calor em cada volta que a espiral ganhava, subindo mais e mais alto.
Senti todo o corpo tomado pela vertigem do desejo e saí com ela para a rua.
No fresco da noite, os nossos olhos brilhavam em múltiplos reflexos das luzes com que iluminávamos as nossas almas e que enchiam de claridade o escuro das ruas. Beijámo-nos e senti-lhe todo o corpo em mim. Demos as mãos e mais uma vez os lábios.
Depois fomos para a minha casa. Nem chegámos ao quarto. Em plena sala, em cima do sofá, enrolámo-nos na entrega que os corpos pediam ardentemente.
Naufragando nos nossos mares em tempestade, afundando-nos e vindo ao cimo angustiados abocanhando o ar dos nossos lábios, por entre as línguas que ansiavam respirar. Os corpos em afogamento, delírio e convulsões. Numa imensa vaga, todo o navio submergiu, rompendo-se em espuma contra os rochedos junto à praia, num espectáculo interior que só se vive a dois.
Depois ficámos a olhar um para o outro. Exaustos e satisfeitos.
Minutos de silêncio e descanso.
- Não quero ver-te mais - disse.
- Eu ia dizer-te isso mesmo também - respondi-lhe devagar. E continuei:
- Prometo ser como de costume muito discreto. Podes estar descansada.
- Sabes? Eu sou casada. E isto foi... nem sei como explicar... ele não está cá...
Saiu sem me dizer mais nada, deixando-me a pensar na minha vida de solteiro inveterado, destinado a vagabundear dos braços de umas para as outras, em cima do fio da adrenalina, do sentir o coração delas fraquejar a cada avanço meu e outras vezes apercebendo-me do ângulo inverso. Depois de conquistadas e levadas para a cama, perdiam o interesse e passava para a conquista seguinte.
Nunca lhes prometera mais que o céu nos encontros que com elas tivera. Nem casamentos, nem viver juntos. Nada! Só a aventura pura e dura. Um instante de suprema felicidade em que os nossos corpos se entregavam numa loucura completa. Sexo!
Depois? Depois seria a ressaca, a bonança depois da tempestade. Cada um iria às suas e eu começaria de novo no meu ritual de caça, numa rotina sempre nova.
Agora ali estava ela. Com uma mala na mão e nos olhos a porta aberta para entrar na minha vida para sempre.
- Deixei o meu marido... - disse ela nessa noite.
Olhei para ela a dormir ao lembrar-me da altura em que ela chegara.
Já lá vão trinta anos...

Charlie

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