27 junho 2006

A prestação

– Tiveram muita sorte – disse a puta na paragem do autocarro, com ar de quem acredita no que está a dizer.
– Sorte? – perguntou o Oliveira, no lugar do pendura, espantado. – Sorte, porquê?
A puta, encarquilhando ainda mais a face, sorriu, obrigando-nos a constatar a quase total ausência de dentes nas suas gengivas, deu um passo atrás, para a contemplarmos em todo o seu esplendor, passou a mão pelo cabelo, colorido e estranho, num gesto teatral de diva do cinema mudo e voltou a aproximar-se do carro. Pousou as mãos na porta e falou directamente para o Oliveira, que lhe sentiu o bafiento hálito antes de a ouvir.
– É que eu não tenho estado cá – disse ela em voz maviosa, compondo o sorriso, fazendo boquinhas e movendo o risco preto mal amanhado que fazia as vezes das sobrancelhas.
– Não? – intrometeu-se o Azevedo, muito sério. – Então e hoje?
– É que eu já não preciso disto – ela falava pausadamente para que não nos escapasse nada (ou, provavelmente, para que não nos escapássemos), – mas estava em casa e não dá nada de jeito na televisão...
– É – concordou o Azevedo, – hoje em dia só dá é bodegas.
– Então, lembrei-me de vir até cá – soltou um risinho quase juvenil, absolutamente extravagante e inesperado, e com o ar mais convicto do mundo, concluiu: – Sabem que gosto de dar prazer, gosto muito, foi sempre o que me perdeu.
– Já não há putas destas – soltou o Picoto. – Putas por amor!
A puta que fechara o sorriso à primeira declaração do Picoto, abriu um sorriso tão radioso como um buraco negro ("e igualmente poderoso" pede o Oliveira que acrescente) e comovida, confessou:
– Mas também tenho uma prestação do frigorifico para pagar.
– Mas não é isso que a faz vir cá! – exclamou o Picoto.
– Claro que não, claro que não – concordou a puta. – É o amor. É poder dar prazer! Vocês querem? Vocês querem imenso prazer?
– Imenso? – sublinhou o Picoto.
– Imenso – repetiu ela. – Querem?
– Os cinco? – indagou o Oliveira, que se queria despachar.
– Claro, todos – os olhos da puta brilhavam, – mas um de cada vez, que eu não faço essas coisas porcas que se vêem nos filmes.
– E quanto é?
– Normalmente, são 40 euros – disse a puta, tirando as mãos do carro, endireitando-se e assumindo um ar profissional, e continuou, quase a sussurrar – mas como, se eu fizer os cinco, vou-me já embora, quatro vezes cinco vinte, duzentos – e aqui já nem sussurrava, apenas mastigava as palavras, mas o Oliveira percebia –, a prestação são quarenta e cinco, mais o táxi, os preservativos e o halibut...
– Está a rezar ou quê? – gritou o Picoto. – Afinal, quanto é que leva?
– 150.
– Cento e cinquenta?! – gritou o Picoto. – Trinta contos?! Nãã... isso é amor a mais.
– Nós não aguentamos tanto prazer – reforçou o Azevedo. – De certeza que era dinheiro bem gasto...
– De certeza – anuiu o Oliveira, procurando o controlo da conversa, – mas é muito dinheiro, senhora puta.
– Muito dinheiro!? – A puta parecia realmente indignada. – Estou a fazer um desconto de 50 euros. Dez contos!
– E nós agradecemos, senhora puta – o Oliveira bateu na perna do Azevedo, que era o condutor, e, com a mão, mandou-o seguir, – mas não temos esse dinheiro.
– Quanto é que têm?
– Devemos ter p'raí trinta euros, senhora puta – o Oliveira entristeceu a voz e agitou a mão alegremente com mais energia. – Só temos trinta euros, que pena...
– 'Tá a gozar – disse a puta, pronta a explodir. – 30 euros?!
– É... – lamentou-se o Oliveira e virando-se para o Azevedo, ordenou sibilante: – 'Bora, caralho, 'tás à espera?!
– Tanta conversa e só têm trinta euros?! – a puta estava em choque. – Isso nem dá para a prestação...
– É assim, senhora puta, desculpe lá – o Oliveira deu um murro na perna do Azevedo. – Então, boa noite, e boa sorte – o Azevedo engrenou a primeira, destravou e o Oliveira gritou alarve, enquanto o carro arrancava: – que bem precisa!

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