30 março 2007

Um grande, grande amor

Uma esplanada. Um homem e uma mulher. Ela bebe um chá verde e come meia torrada com doce de ameixa. Ele um café e meia torrada com manteiga. Falam do tempo, frio. Dos respectivos trabalhos, monótonos. Das suas vidas passadas, poucas, ainda são jovens, mas não do presente, nem do futuro. Encontram-se em terra de ninguém, num momento fora dos seus mundos, fora das suas vidas.
– Posso dizer-te uma coisa?
Ele olhou-a, ergueu ligeiramente as sobrancelhas, cerrou os lábios e acenou que sim com a cabeça.
– Podes – reforçou, curioso, mas procurando não dar expressão à curiosidade.
Ela manteve o seu olhar fixo no dele, hesitou à procura das palavras certas e declarou, sem qualquer inflexão irónica:
– Pensava que gostavas de mim.
Ele arregalou os olhos por um momento breve, controlou a surpresa e a expressão facial e retorquiu, com um ligeiro sorriso:
– Pensavas?
– Pensava – ela reforçava as palavras acenando a cabeça na vertical. – Pensava mesmo, mas agora já não sei.
Ele levou um palito da torrada à boca enquanto ela falava, mordeu metade e mastigou e engoliu em silêncio. Ela piscava os olhos duas vezes de cada vez, num tique nervoso que não conseguia disfarçar e bebeu um gole de chá.
– Não me achas atraente? – perguntou ela de chofre, sem se conseguir conter, ainda com a chávena na mão, arrependendo-se logo que se ouviu falar.
Ele manteve o ar impassível, o que a irritou, e respondeu sorrindo só com a boca.
Vendo-lhe os lábios arrepanhados para cima, mostrando apenas uma nesga dos dentes e os olhos sem brilho, sem expressão, a irritação cresceu e tornou-se em mágoa, numa vergonha difusa, sem objecto, sem sentido, e num súbito desejo de sair dali, de desaparecer, de voltar atrás no tempo. Pousou a chávena, segurando-a entre as duas mãos. Sentia-se atropelada pelos sentimentos e sensações que tomavam forma e substância e se alojavam na garganta, lhe comprimiam o peito e a faziam tremer. Não era isso que queria. Não era isso que queria que ele visse.
– Acho-te muito atraente – declarou ele, por fim e arrancou para um discurso quase de fazer chorar as pedras da calçada.
Ela ouvia-o e via-o agora com distinta clareza, “Tu és um estranho e triste homenzinho” sorriu ao lembrar-se da frase de Buzz Lightyear e, interrompendo-o, perguntou-lhe ainda sorrindo:
– Sabes do que me lembrei?
Ele ouviu-lhe a interrupção em tom sensual, quase lascivo, e vendo-a a sorrir, afastar a chávena quase vazia e o prato onde ainda restava um palito da torrada e agarrar na carteira para pagar, apostou no seu melhor olhar de carneiro mal morto, sorriu de viés, como o caçador que sabe que a presa não tem hipóteses de fuga, sussurrou que já estava tudo pago e dobrando-se sobre a mesa para se aproximar dela murmurou insinuante:
– De quê, querida, lembraste-te de quê?
Ela levantou-se, pousou as mãos na mesa, aproximou o seu rosto do dele, beijou-o na face, com suavidade e ficou frente a frente, nariz com nariz:
– Que tenho mais que fazer, Diogo – deu-lhe um beijo na outra bochecha e despediu-se: – Adeus.
Ele deixou-se cair na cadeira, que permaneceu vazia, e ela, agarrando a mala, seguiu sem olhar para trás, dizendo baixinho: addio, adieu, aufwiedersehen, goodbye.

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