20 outubro 2007

Tempo seco com aguaceiros persistentes

De ombros descaídos, cabelo escorrido e despenteado, com o nó da gravata a um polegar do colarinho e passo cansado e lento, o lingrinhas chegou-se ao cubículo onde se dirigira silenciosamente e perguntou num suspiro desanimado:
– Sabes, a sensual Susana?
O gordo ocupante do cubículo deu um surpreendido e ridículo saltinho de menina, o que logo o indispôs contra o colega, descolou os olhos do monitor do computador e fixou-se no lingrinhas que se aproximara sorrateiramente e falara sem avisar, assustando-o.
“Podia ter-me morto, se quisesse, que eu nem dava por nada”, pensou o gordo que tinha a mania da perseguição, enquanto o outro esperava por uma resposta à sua pergunta. “Havia de mudar a disposição do gabinete,” ponderou sério, olhando em volta, “assim, fico muito exposto...”
– Estás a ouvir? – bufou o lingrinhas, frequentador de chats e abusador do Messenger, aborrecido com o desinteresse do gordo, que olhava em volta com ar de engenheiro. – O que é que se passa? – insistiu.
– É o meu gabinete... – começou o gordo, com ar solene e superior.
– O teu gabinete?! – admirou-se o lingrinhas, olhando para o abafado espaço que o gordo ocupava entre três divisórias mal amanhadas. – Qual gabinete?
O gordo semicerrou os olhos, alinhou os lábios e as sobrancelhas e rosnou:
– Isto é o meu gabinete, meu caro. Há algum problema?
O lingrinhas que se correspondia on-line com a sensual Susana e, já agora, com a insaciável Úrsula, viu os lábios do gordo tornarem-se uma fina e malvada linha cómica mas não reparou no assustador movimento das sobrancelhas, pelo que se desencostou lenta e despreocupadamente da divisória interrompida que permitia o acesso ao gabinete e soltou uma fina gargalhada de gozo.
– Nenhum problema, pá – declarou rindo. – Por mim, se quiseres chamar ao teu cubículo uma sala de conferências individual, estás à vontade.
O gordo pousou as mãos pequenas e papudas nos braços da cadeira, ergueu-se ligeiramente e soltou um sonoro peido:
– Vai cagar.
O esticadinho que teclava com a sensual Susana, com a insaciável Úrsula, com a arrebatada Tigresa e com a despachada Madame X, franziu o nariz e esperou em silêncio que o aroma o atingisse, ainda que, por questões de prevenção olfactiva, desse um passo atrás.
– Sabias que a Maria e a Carla já se tinham ido embora? – perguntou, pronto a admirar o gordo pelo seu desprezo às convenções sociais.
O gordo fez cara de quem não se ralava nada com isso, mas sabia que estavam sozinhos naquele canto da sala e bolçou um antipático:
– Já? Não sabia – mentiu.
O outro acenou que sim, em extâse. O gordo era o seu ídolo.
– Não sabias? – deixou escapar o crédulo magricela. O gordo enganava-o sempre. Satisfeito com a coragem do outro, o lingrinhas inspirou pelo nariz cuidadosamente e, seguro da inexistência de qualquer fragrância intestinal, retomou o seu posto encostado à divisória do gabinete do gordo.
“Também podia dizer que sofro de alergia aos ácaros e pedir para tirarem a alcatifa”, reflectia o gordo, preocupado com a sua segurança. “Sempre os ouvia chegar”.
– Vens sempre de sapatos? – perguntou o gordo inopinadamente.
Surpreendido, o não tão gordo interveniente olhou para os pés, para confirmar que estava calçado.
– Querias que viesse de quê?
– Nem à sexta? – quis confirmar o gordo de forma a esgotar todas as possibilidades. À sexta-feira não vinham de gravata, por isso era possível que o presumível assassino pudesse aparecer sem sapatos ruidosamente seguros.
– Venho sempre de sapatos – disse o outro, sem perceber nada.
O gordo tossiu: quanto mais cedo começasse a apresentar sintomas de alergia melhor. Sacou de uma gaveta um lenço que parecia um bocado de desperdício e, sob o olhar hipnotizado do colega, assoou-se ruidosa e furiosamente, não conseguindo evitar, em consequência da exagerada força evacuatória nasal, largar um aromático conjunto de bufas.
Aquele que vinha falar na sensual Susana assistia com gosto ao absurdo espectáculo que o gordo montara com uma espécie de lenço e um nariz, mas não esperava ser envolvido, como foi, pela invisível, silenciosa e traiçoeira arma intestinal do gordo, que, sorrindo como um menino bom, enrodilhava o monte de desperdício a que chamava lenço e o devolvia ao fundo da gaveta onde, certamente, viviam e prosperavam várias colónias de fungos, bactérias e outras formas de vida.
– Foda-se – queixou-se sem educação a vítima do atentado olfactivo, o que, sejamos justos, é compreensível em face do repugnante ar poluído que o envolvia sem hipóteses de fuga ou remissão.
– O que tem a sensual Susana? – indagou o gordo com voz doce e interessada, como se entre a primeira frase do colega e a sua pergunta não tivesse passado mais do que um instante. “O tempo é relativo”, justificou.
Ainda atordoado pelo inesperado ataque ao seu nariz, o outro pareceu concordar com o gordo e respondeu como se nada se tivesse passado entre a sua aparição no cubículo e o interesse do gordo na sensual Susana.
– Acho que a gaja é incontinente... – segredou.
O gordo ainda que habituado a tudo esperar do lingrinhas foi surpreendido e não se conteve:
– Incontinente?! – A sua fé do género humano acabava de bater no fundo e por muito pouco não se levantou e não saiu a correr. – Incontinente, a sensual Susana?! Não pode ser...
– Incontinente, pá... – o lingrinhas crescia com o impacto da sua bombástica e liquida notícia na fisionomia do gordo. – Incontinente – repetiu de boca cheia.
O gordo fincou os dedos nos braços da cadeira, olhou bem para a cara de parvo do colega e, num instante de lucidez, perguntou:
– Mas como é que tu sabes isso?
O esqueleto andante sorriu, como se soubesse tudo e até a resposta àquela pergunta em particular. Tornou a desencostar-se, agora porque achava que ficava melhor desapoiado quando transmitisse o resto da informação, pôs as mãos nos bolsos, formalmente descontraído, e colocando a voz, avançou:
– A gaja disse-me...
– Quando?
– Há bocado no Messenger...
– O quê?! Que é incontinente?
– Não, não disse assim... – o lingrinhas fez uma pausa e recomeçou: – “Vou ficar toda molhada!”...
– Molhado – corrigiu o gordo.
– Não sou eu.
– Não?
– Não, pá, ela é que disse...
– O quê?
– Que “vou ficar toda molhada!”
– Ela disse isso?
– Foi... – O lingrinhas tirou as mãos nos bolsos e esfregou-as uma na outra. – Toda molhada, vê lá...
– Mas estavam falar de quê? – inquiriu a anafada personagem.
– Olha... – o lingrinhas esfregou as mãos ossudas e estalou os dedos – Sexo, do que é que havia de ser?
O gordo semicerrou os olhos como gostava de fazer, achava que lhe dava um ar sapiente.
– E essa gravata? – perguntou o gordo ainda processar a inesperada informação da incontinência da sensual Susana.
O lingrinhas conferiu a gravata.
– O que é que tem?
– Puseste assim pela virilha, de propósito?
O lingrinhas agarrou na gravata e esticou-a para ver onde chegava: batia a meio da braguilha.
– Ou é para limpar o pingo? – atacou o gordo.
– Vai-te lixar! – rosnou o diminuído lingrinhas.
O gordo lembrou-se da alcatifa e recuperou a tosse.
O lingrinhas continuou encostado à divisória à espera sabe-se lá de quê.
– Incontinente – acabou o gordo por repetir –, tens a certeza?
– Estou-te a dizer. Incontinente.
– Meu Deus, ao que isto chegou – o gordo forçava os lábios a descaírem numa careta miguelsousatavaresiana de quem está mal com o mundo porque o mundo não faz o que ele diz. – Qualquer dia ainda me vens dizer que a insaciável Úrsula é um marmanjo qualquer, que a incandescente Laura rói as unhas dos pés, que a arrebatada Tigresa tem pêlos nos sovacos ou que a despachada Madame X sofre de halitose...
– Halitose?
– Sofre da exalação de odores repugnantes e incómodos provenientes da cavidade oral.
– Mau hálito!
– Ou isso – reconheceu o gordo com maus modos. – Mas vocês estavam a falar exactamente de quê?
– Quem?
– Tu e a sensual Susana, foda-se.
– Sexo – o lingrinhas formatou um sorriso marialva que ostentava com orgulho. – Podemos escrever o que quisermos que, na verdade, estamos sempre a falar de sexo...
– Sim, no teu caso é capaz – o gordo acenou depreciativamente com a cabeça. – Mas estavam falar exactamente de quê?
– Sei lá – o lingrinhas aborrecia-se com a insistência do gordo –, ela tinha-me dito que ia dar banho aos filhos...
– Ah! – exclamou o gordo. – Não seria por isso?
– O quê?
– Que ela ia ficar molhada?
– Não – o lingrinhas encolheu os ombros: o gordo não tinha salvação, era definitivamente um não crente, uma alma perdida, um desamparado das novas relações sociais. – As coisas que se escrevem nos chats e no messenger nunca são o que parecem – elucidou – têm sempre duplos sentidos, triplos sentidos e, no fim, estamos sempre a falar de sexo. – E repetiu com enfâse: – As coisas nunca são o que parecem.
– Mesmo que pareçam que estás a falar de sexo – rasteirou o gordo, cínico.
– O quê?
– Mesmo que estejam a falar de sexo – o gordo virara-se para o monitor, dando a entender que queria acabar a conversa –, como tudo tem mais do que um sentido, acabam por não estar a falar de sexo.
O emudecido lingrinhas tentava perceber o que o gordo dissera. O gordo aproveitou e continuou:
– Possivelmente, estão sempre a falar de vocês – o gordo gostou da frase e do raciocínio. – Elas estão a falar delas, da vida delas, dos seus desejos, dos seus gostos, dos seus desgostos, mas acham que precisam de falar de sexo para tu as ouvires, para te interessares...
– Teriam-me em muito má conta – comentou o lingrinhas.
O gordo riu-se:
– Para elas és um básico, incapaz de mais do que duas frases sem qualquer conotação sexual... – E não estão longe da verdade – o lingrinhas acompanhou-o a rir. – Três frases, no máximo.
– Pois.
– Então, achas que ela ia mesmo dar banho aos filhos?
O gordo confirmou com uma cabeçada na atmosfera.
– Ora, bolas – o lingrinhas suspirou e cruzou os braços, descorçoado. – Qual é o interesse de irmos para ali falar da vida?
O gordo não se dignou a responder-lhe ou, sequer, a olhar para ele, limitou-se a encolher os ombros e a tossir.
O lingrinhas separou-se da pouco mais magra divisória, passou a mão pela franja e afastou-se a resmungar:
– Gordo de merda. – Deu um pontapé num refego da alcatifa, passou o dedo entre o colarinho e o pescoço e entrou no seu próprio cubículo. – Mas se ia dar banho aos putos, o que seria que ela queria dizer com hectolitros e hectolitros de chuva dourada? Que raio de espectáculo é esse que ela me queria mostrar?

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