25 fevereiro 2008

Zapping numa noite de chuva

Por Charlie

Fazia uma daquelas noites em que o aborrecimento sobressaía a cada toque que o polegar imprimia à tecla do programa seguinte. Por um instante pensei nos primeiros tempos dum só canal quase só preenchido de fascinantes banalidades que a todos prendia na meia dúzia de horas que transmitia e como eu estaria a ser no mínimo ingrato por ter ao meu dispor toda uma panóplia de artifícios tecnológicos de alta qualidade, música, filmes e mais filmes, documentários, informação de toda a sorte e em vários idiomas e por aí fora, tudo e tudo e mais que viesse a vinte e quatro horas por dia...

Levantei-me, bocejei e abrindo uma nesga da porta, espreitei para fora.
Chovia agora de mansinho depois de toda a tarde o vento ter fustigado e encharcado as ruas onde agora apenas uns esparsos círculos se alargavam nas poças que resplandeciam sob a luz parca dos candeeiros.
Nem sei o porquê nem o porque não, apenas dei por mim minutos depois de casaco abotoado e manchado de gotas a entrar para o primeiro bar que me surgiu.
Embora já não se pudesse fumar desde o princípio do ano e eu ser um não fumador, aspirei com um profundo agrado o travo que anos a fio tinham deixado impregnado nas ripas da divisória de bambu que apenas de forma muito ligeira separava a zona da entrada do espaço interior.
Avancei, esperando um pouco passada a divisória, e de imediato reparei nela. Ali quase ao canto, de livro em cima do tampo, aberto numa página qualquer. Segurando uma bebida, fitava um ponto ausente na parede oposta enquanto, atrás do balcão, um pano branco numas mãos habilidosas passava brilho a uns quantos copos que depois ia arrumando.
Cruzei-me com o seu olhar e com o seu sorriso profissional, de barman atencioso e discreto.
-Um simples sem gelo, e uma água... Sim, pode ser com gás...-
De pé ao balcão, meio encostado a um dos bancos, olhei em redor. Estava uma casa fraca. Pouca gente, dois homens de meia idade conversando baixinho, talvez negócios, um casal de namorados de mão na mão em cima da mesa e todo o futuro no olhar, alguém escrevinhando num bloco de apontamentos e, novamente, ela.
Sem que mexesse um só músculo do meu corpo, observei como agora voltara à leitura: Milán Kundera...
Molhei ao de leve os lábios enquanto por um instante de nada os nossos olhos se cruzaram. Voltei a encostar o copo à boca e lentamente, sem desviar o olhar, bebi em curtos golos todo o uísque. Voltámos a cruzar o olhar desta vez mais intenso e demorado. Os meus verdes, os dela negros e profundos como uns que conheci em tempos e que teimam ser presentes por mais distantes que estejam...
Saí logo depois dela, sem disfarçar nem esperar tempo algum.

Sentei-me no sofá de comando na mão, num gostoso zapping após ter chegado a casa já de madrugada, com a insustentável leveza que nos deixa em todo ser, depois da troca de lábios, de fluidos e de corpos, ter ocorrido sem que tivesse havido o peso duma única troca de palavras....


Charlie

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