30 julho 2009

ASAS

O miserável caracol sem asas arrastou-se penosamente até alcançar a libertina libelinha lilás. Ofegante, controlou a respiração e, depois de a cumprimentar com um abafado olá que não recebeu resposta, disse:
– Então?
Com um sonoro suspiro enfadado a libelinha olhou-o de soslaio e retorquiu:
– Então, o quê?
Cansado, o caracol encolheu os ombros que não tinha, cerrou as sobrancelhas que não sabia o que eram e mordeu os inexistentes lábios com os nunca nascidos dentes.
– Então, nada – acabou por resmungar. – Estava só a falar contigo.
– Queres alguma coisa, é?
O caracol não respondeu logo. Reflectiu sobre o erro de ter vindo por ali e arrependeu-se de ter falado com o insecto. Puxou um escarro que lhe havia surgido na garganta depois da primeira resposta da libelinha e cuspiu-o.
– Que falta de educação – apontou a libelinha, com um esgar de nojo.
O caracol sorriu para dentro e perguntou:
– Quanto é que levas?
A libelinha fez uma careta, olhou-o com analítico cuidado e, profissional, inquiriu:
– Para?
– Para me levares ao céu! – exclamou o caracol, não conseguindo conter o entusiasmo.
A libertina libelinha lilás ergueu os olhos em prece, abanou a cabeça em negação e sentenciou:
– Podes lá ir mas nunca lá chegarás!
– Poupa-me às tuas filosofias – respingou o caracol. – Quanto é que levas?
A libelinha suspirou, conferiu as horas pela posição do sol, esticou as patas e depois as asas, tornou a olhar fixamente para o caracol com ar entediado e anunciou enfática:
– 30 segundos!
– 30 segundos?!
– 30 segundos, caracol, e já gozas!
– 30 segundos… – mastigou o caracol, desconsolado. – 30 segundos…
– É pegar ou largar, meu caro – insistiu a libelinha.
– E quanto é?
- Dás-me duas.
– Dou-te duas?!
– Sim e é se queres.
– Duas?! Por 30 segundos?
– Se quiseres, pode ser uma por quinze – propôs a libelinha. – Eu hoje estou magnânima.
– A Vanda varejeira faz-me 1 minuto por duas – replicou o caracol.
– Blargh! – fez a libelinha, de língua de fora e careta de asco. Recolheu as asas e concluiu com ensaiado desdém: – Tens bom remédio: vais com ela!
– Fico zonzo – admitiu o caracol. – Ela voa muito depressa e tem a mania de fazer tangentes a tudo o que mexe.
A libelinha deu uma gargalhada.
– E o cheiro?
– Qual cheiro? – inquiriu o caracol.
– Quando se vem.
– Ah!... Esse… – reconheceu o caracol torcendo os lábios e, sem desfazer a careta, explicou: – Eu exijo fazer antes de voar. Assim que a como arrancamos e, à velocidade que ela me leva, eu nem sinto nada.
A libelinha esboçou um sorriso trocista e comentou:
– Aí tens… Se já tens o problema resolvido, vai ter com ela!
– Eu gosto mais de voar contigo – confessou o caracol – e…
– E?
– E ela só me leva sempre um minuto e eu tenho de dar duas…
– E no fim da segunda já não vais voar – atalhou a libelinha.
– Pois… – concordou abatido o caracol.
O insecto riu. O caracol não.
– Isso é um problema teu – disse a libelinha. – Para mim, são 30 segundos a voar e duas no chão ou 15 a voar e uma no chão. É pegar ou largar!
– Uma – aceitou o caracol – e fazemos no fim.
– Não – afirmou a libelinha, com maus modos. – Fazemos amor antes de voar… Se fores mesmo bom, como na semana passada, recompenso-te – disse com um sorriso e um piscar de olho.
O caracol semi-cerrou os olhos, resmungou qualquer coisa contra o facto de o criador não ter distribuído asas a toda a gente e concordou:
– Vamos a isso!

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