14 janeiro 2010

(Des)União de Facto

Ela recusou, mais uma vez, fazer amor. Não o fez expressamente: não invocou qualquer mal-estar, dor de cabeça ou cansaço; ficou simplesmente no sofá da sala até a televisão do quarto deixar de se ouvir, o candeeiro da mesa-de-cabeceira estar apagado e dele não restar mais do que uma respiração suave e regular.
Tristemente satisfeita mas sem conseguir desembaraçar-se do peso opressor que sentia no peito, a mulher levantou-se do sofá, apagou a televisão, caminhou em silêncio sem acender qualquer luz, contornou a cama com cuidado e deitou-se furtivamente. Não o queria acordar, não lhe queria falar, nem o queria ouvir.

A princípio, julgara que era cansaço. O trabalho, a casa, a vida, tudo parecia justificar o seu desinteresse, a sua falta de vontade, o seu alheamento, mas agora já não sabia, só não queria. Talvez se tivesse desabituado. “Deve ser uma fase” pensava, sem muita convicção, “vai passar”.
E assim se permitia nada alterar e continuar como se nada fosse, esperando que ele dormisse para se aproximar, inventando saídas e visitas, séries na televisão e trabalho atrasado para o manter afastado, se é que ele ainda se aproximava – ela tinha sido tão competente a criar uma normalidade preenchida que não sabia agora se ele ainda a procurava.

Deitada, aconchegou-se sem lhe tocar e fechou os olhos à espera do sono.
– Então? – perguntou ele, surpreendendo-a. Sentira-a deitar-se sub-repticiamente, deixou-a acomodar-se, baixar as defesas e, quando ela já não esperava, falou. – O que é que se passa, querida?
O “querida” arranhou-a, achou-o despropositado, falso, hipócrita. Sentiu-se enganada, ele estava acordado. Tinha estado sempre acordado e, premeditadamente, esperara pelo momento certo para a interpelar. O momento em que, ele sabia-o, ela deixara de estar em guarda.
– Nada, porquê? – respondeu, impessoal.
– Nunca mais fizemos amor – disse ele, sem subterfúgios.
– E? – inquiriu ela, agora com o firme propósito de o arreliar.
– E?! – soltou o homem, aproximando a mão do interruptor do candeeiro. Ela ouviu o ligeiro roçagar do fio na madeira e esperou que a luz se acendesse. – E, o quê? – concluiu ele, sem acender a luz.
Ela sentiu-se aliviada, preferia não o ver e preferia não ser vista.
– Sim, e? – manteve ela e, indiferente, concluiu: – Não fazemos amor há uns dias...
– Uns dias?! – O homem virou-se na cama, ficando estendido de costas, dobrou as pernas e tornou a mexer no interruptor do candeeiro. – Uns dias?! O que é que tu chamas uns dias?
– Quinze dias… três semanas – respondeu ela, sabendo que estava a errar por muito. – Sei lá.
– Estás a brincar? – O homem estendeu a pernas.
– Não – declarou ela, ainda imóvel. – Sei lá, um mês?
Ele acendeu a luz mas não se mexeu. A mulher, que já estava virada para ele desde que se deitara, olhou-o, viu-lhe o perfil sério e compenetrado, e ficou espantada por não sentir nada, nem o peso no peito.
– Não fazemos amor há mais de três meses – disse ele, sem tirar os olhos do tecto.
“Fala por ti” ponderou ela responder mas não o fez.
A mulher rodou, ergueu o tronco, sentou-se, abafou o sorriso que lhe sobrara do “fala por ti” e do que isso lhe lembrara e interpelou-o com implacável tranquilidade:
– Queres-me dizer alguma coisa, é?
– Eu?! – espantou-se ele, ainda assim fazendo contas de cabeça.
– Sim – continuou ela, azeda. – Não fazemos amor ou não fazes amor comigo há três meses?
O homem sentou-se.
– Não é a mesma coisa? – perguntou, angelical, bem sabendo que não era.
– Não, sabes bem que não – disse a mulher, não evitando alguma acidez no tom. – Eu não faço amor contigo há três meses mas tu não fazes amor há três dias…
– Eu?!
– Sim, tu.
– Há três dias?
A mulher acenou com a cabeça positivamente, olhou para o rádio-relógio na mesa-de-cabeceira e fixando-o, atirou:
– E, pelas minhas contas, se pagaste à chegada e se foste directo ao Continente no fim, não fazes amor há três dias e – contou pelos dedos, ainda que não necessitasse – seis horas e meia, mais ou menos.
– Que conversa é essa?
– É fácil – disse a mulher e explicou serenamente: – Na terça-feira, pagaste uma diária reduzida num motel às duas e meia e às sete e um quarto pagaste umas compras no Continente… Por isso, deves ter dado uma, ou feito o amor, por volta das cinco e tal, seis horas… Espero, pelo menos, que tenhas dado uma à chegada e outra à saída. É o mínimo.
– Mas…
– Por isso – concluiu a mulher, – como já é meia-noite e um quarto: dezoito e seis… Não devo ter errado por muito, pois não?
Ele engoliu em seco várias vezes e não foi para verificar o acerto das horas, hesitou igual número de vezes no que dizer e, por fim, decidiu-se pelo óbvio:
– Como é que sabes isso?
– Essas merdas não se pagam com cartão, parvo!
Ele corou e mudou de cor.
– E, já que sabes tudo – começou o homem, preparando o contra-ataque –, também deves ter noção porque o fiz.
A mulher olhou-o e encolheu os ombros:
– Porque és parvo?

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