14 maio 2010

«Do assédio» - AnAndrade

"Preparava-os para um exame específico, que contaria um terço para a definição do resto das suas vidas. Falava-lhes de diferenças de género, de orientação sexual, de Foucault e da História da Sexualidade, de preconceitos, de confissões, de segredos, de puritanismo e de direitos sociais.
De repente, a despropósito, da primeira fila onde se instalara com uma parafernália de gadgets (que deviam ser o que lhe prolonga o ser e o resto, quando o carro não se assoma) perguntou-me pelo assédio. Não pelo assédio em geral mas pelo modo como eu lhe reagiria, em particular.
Não me inspirou grande confiança, o tom, mas é sabido que sou muito mais paciente numa sala de aula do que na vida particular, pelo que lhe respondi, com todos os efes e erres: disse-lhe temer por muitos homens e mulheres que, fruto das suas vivências, dependências e obrigações, se sentiam compelidos a aceitar uma atitude assediadora por parte de alguém com ascendente sobre si, em silêncio. Acrescentei que me sinto sobejamente livre, em todos os sentidos: porque não tenho medo, porque o silêncio nunca foi o meu forte (e recordei as cenas que fazia, quando adolescente, nos autocarros, sempre que um homem resolvia esfregar-se em mim: perguntava-lhe bem alto o que estava a fazer e por que raio se estava a roçar; sempre foi remédio santo) e porque não devo nada a ninguém (em todos os sentidos). Porque sou livre, exporia o assediador, desdenhando o que quer que fosse que pudesse, eventualmente, comprar-me o silêncio.
Calou-se, julguei que percebera.
Mas não.
Quarenta e oito horas depois, recebi um e-mail a convidar-me para almoçar, num dos melhores e mais caros restaurantes do Porto (mais um prolongamento do que deve ser excessivamente parco), a pretexto de uma "aula particular informal" que melhor o preparasse para o exame que se avizinhava (e ou me estava a chamar incompetente por não o ter preparado no curso que pagou, ou se estava a intitular uma menoridade do ponto de vista cognitivo, na medida em que não lhe chegavam os ensinamentos que bastaram aos outros); incluía mesmo um momento de pura e descarada lambe-botice, uma vez que "desejava beber da minha experiência" no que toca ao ensaio argumentativo.
Ainda que imaginando que não fosse propriamente na minha experiência académica que o senhor estava interessado, não despi o papel da professora e, em pouco mais de duas linhas, declinei o convite (sem explicações, porque não lhas devia) e desejei-lhe o maior dos sucessos, a nível profissional, especialmente para o exame para que o preparara.
E pensei que a coisa ficaria por ali, teria de ficar!, que mais haveria a dizer?
Mas havia.
Passadas umas horas, novo e-mail. Onde dizia (deixando cair o "Dra.", sem que eu lho tivesse permitido) que nunca pensara ser eu tão preconceituosa e puritana (vitoriana, no dizer de Foucault), entre outras amabilidades de quem se sente ofendido mais ou menos entre a coxa e abdomen.
Aí, já não me sentia na obrigação de responder como professora. Perante o atrevimento, foi a mulher quem lhe respondeu:

Caro Dr. D.:
É com alguma perplexidade que verifico a sua capacidade de tecer juízos e desejo que, numa futura experiência enquanto magistrado, seja mais ponderado a estabelecê-los.
A minha recusa não tem nada de vitoriano, ao menos no entendimento de Foucault (ou me expliquei mal, ou o Sr. Dr. não esteve com a atenção devida durante as aulas); é apenas fruto da liberdade que (ainda!) possuo de recusar ou aceitar um convite que me dirigem, seja em que circunstância for.
Como não se trata de uma situação de cariz pessoal ou profissional, não me sinto obrigada a dar justificações. De todo o modo e porque, por vezes, o implícito não é claro, deixe-me esclarecer que, por norma, não dou aulas particulares, sejam elas formais ou não, a não ser que me apeteça, abrindo, nesse caso, uma excepção. Quando não é essa a minha vontade, faço o que a minha liberdade me permite: recuso delicadamente e não espero repercussões, já que qualquer convite acarreta a possibilidade do não.
Cumprimentos.
Ana Andrade


(E se voltar a insistir, até porque teve a distinta lata de responder a isto, ainda que já de orelha murcha, faço-lhe o que fazia aos roçadores-de-autocarro: boca no trombone, mas desta vez sem abreviaturas.
Eu avisei, o fulano é que não estava atento...)"


AnAndrade
Blog Câimbras Mentais

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