17 junho 2010

40

Abres os olhos. Fechas e abres os olhos novamente. Outra vez. Estás confuso. Julgavas que estavas a sonhar. Vês tudo baço e dói-te a cabeça. Estás sentado à beira da cama. Olhas em redor com uma crescente sensação de asfixia. Sentes a falta de ar e o quarto parece ganhar vida. As paredes movem-se. Esbracejas. Bates com as palmas das mãos no colchão. As paredes, ora imóveis ora ondulantes, mudam de cor. Há uma de que gostas particularmente, tentas retê-la como se isso fosse importante mas não consegues. Irritas-te. Esqueces a cor. Esqueces as paredes. Estás assustado. Queres perceber se estás a fazer alguma coisa mal no acto de respirar pois não está a resultar. Não tens oxigénio nos pulmões. Lembra-te… Lembra-te… Ergues os braços. Ao longe, no que te parece muito ao longe, vês os teus pés nus a contorcerem-se sem tocarem o chão, não os sentes. Não és assim tão alto. Não percebes porque estão tão longe. Obrigas-te a pousa-los. Não sentes o frio do chão na planta dos pés. Não gostas. Inspiras. Tornas a inspirar. Os braços erguidos não resultam. O estares a inspirar repetida e profundamente também não. Não há ar. Não há paredes. Não há cores. Lembra-te. Foca-te. Esquece-te que não tens ar. Pensa noutra coisa qualquer. Não gostas de imperial com groselha mas, também, já ninguém bebe. Não resulta. Não achas que tenhas inspirado apesar de não estares a pensar nisso. Muda de estratégia: lembra-te. Lembra-te como respirar. Inspirar. Sentes-te desfalecer. Inclinas-te para trás ao sentir que te vais estatelar para a frente. Decides que vais deixar o álcool e as substâncias ilícitas. Hesitas. Recuas na tua decisão. Respirar é bom mas… e o resto? Impões uma condição: deixas o álcool e as substâncias ilícitas se te safares. Melhor, se te safares desta e enquanto te lembrares. Lembra-te! Não tens qualquer sentido de profundidade. As paredes vão-te comprimir até seres sumo. O tecto desce para te esmagar, no fim, ficarás uma panqueca seca. O tecto ainda não te tocou mas já te sentes a encolher. E o ar? Baixas os olhos. Vês os teus pés moverem-se aleatoriamente. Deixas cair os braços que tinhas esquecido erguidos. Pousas as mãos no colchão. Plástico. Olhas em volta. Plástico. Látex. Este quarto não é teu. Esta cama não é tua. Estás nu. Não tens roupa nem ar. As cores já não fazem sentido. Os sons diluem-se num burburinho incompreensível. Os gestos salpicam-se de actos falhados, de erros grosseiros. Sufocas. Vais desistir. Deixas de pensar. De ser. Vês o teu braço esquerdo erguer-se lentamente, em câmara lenta. Fechas o punho. Ar. Inspiras. Inspiras. Tosses. As paredes voltam ao lugar. O tecto sobe. Os pés sentem o chão frio. Tens de sair da cama. Levantas-te. Dás um passo e viras-te. Espantado, vês a cama e uma mulher. Incrédulo, recuas um passo, sobre a cama uma mulher num coleante fato negro de látex. Tem uma máscara que só te deixa ver os olhos. Brilhantes. Sorridentes. Satisfeitos. Segura na mão um plástico translúcido. O objecto da tua asfixia. Película aderente. Decides acrescentar as mulheres que usam película aderente com fins recreativos no que te está interdito. Inspiras. Sorris aliviado mas não mostras o sorriso: podes voltar a beber e a consumir substâncias ilícitas, o problema não estava aí: são as mulheres que usam película aderente fora da cozinha é que vais ter de evitar. Não percebes. Não percebes nada. “E como é que vou saber?” perguntas-te, baralhado.
– O quê? – pergunta-te a mulher.
– O quê, o quê? – repetes espantado, certo de não teres verbalizado a dúvida.
– O que é que não sabes como vais saber? – elucida-te ela, certeira, acabando definitivamente com a tua certeza de só teres pensado como é que irias reconhecer as mulheres que usam película aderente fora da cozinha.
Emites um som, um silvo agudo, enquanto bates no peito, como se isso te ajudasse a respirar, a inspirar. Pensas na resposta que podes dar mas ela antecipa-se e passa à frente voltando atrás:
– E então? – ouves perguntar. É uma voz interessada, preocupada, quer genuinamente saber. – Gostaste?
– Ah… – balbucias para não repetires o silvo agudo enquanto repões o oxigénio nos pulmões e tentas saber quem és e o que fazes ali. Ouves e observas com atenção mas não reconheces a voz, nem os olhos.
– Tínhamos combinado a mão direita – ouves a voz feminina dizer-te em tom meramente informativo – mas pareceu-me que era tempo a mais…
Estás parado a olhar para a cama, para ela na cama, para a cama no quarto, para ti ao lado da cama. Estás em pé. Vês que estás em pé e só consegues pensar na cama. As pernas fraquejam e obrigam-te a pensar na cama. Dás um passo e aproximas-te da cama. Devias sentar-te. Deitar-te. Na cama. Os olhos dela brilham mais. A custo, com sacrifício, manténs-te em pé junto à cama, como se isso fosse fundamental, essencial, vital. Custa-te. Não te deves sentar. Não deves regressar à cama, parece-te. Reparas no decote. No deslumbrante conteúdo do decote. Convences-te que Deus existe e tem bom gosto. Passas a mão pela boca para confirmar que não te estás a babar. Podias estar. Pões em causa a tua última decisão, provavelmente deves, tens!, de voltar à cama e nem todas as mulheres que manuseiam película aderente com destreza e para fins meramente recreativos merecem ser ostracizadas. Condescendes sem tirar os olhos do decote: deve ter havido um mal-entendido e ela merece uma segunda oportunidade.
– E, ainda por cima, não resultou – ouves a voz feminina concluir com um acentuado tom de desprezo e decepção, interrompendo-te na análise das tuas resoluções.
“O que é que não resultou?” pensas, tentando que os teus olhos se descolem da linha irresistível que se forma entre as mamas da mulher. “Eu ainda estar vivo?”
Cama. Fraquejas. Olhas para a cama. As pernas pesam-te. Olhas só para a cama. Suspiras profundamente. Dás um passo. Cansas-te. Estás em pé junto à cama. Não aguentas e encostas os joelhos à cama. Cama. Bem te podias sentar. Aproximar-te…
– É pena – ouves, ao mesmo tempo que sentes uma mão envolta em látex acariciar-te os testículos, puxar-te o pénis para baixo, levantá-lo. – Não sei o que te faça – diz a máscara com um risinho breve.
Estás dormente. Mais dormente. As pálpebras pesam e a visão turva-se. Passas a mão pela cara, para garantir que não estás novamente envolto em película aderente. Os joelhos fincam-se na parte lateral do colchão.
Ela dá-te palmadas nos testículos, enquanto te levanta o pénis. A mão enluvada agarra-o, aperta-o, sacode-o e bate-lhe. Nada.
– Não sei que raio de merda é esta – constata ela, friamente.
– Estou cansado – justificas num sussurro envergonhado.
Ela dá uma gargalhada forte, tonitruante, que te parece mal, muito mal.
– Não estou a falar nisso – diz ela, sem parar de rir.
Engoles em seco.
– Então?
Com a mão esquerda, ela encosta-te o pénis flácido ao corpo e, agarrando-os por baixo, exibe-te os testículos.
– Estou a falar disto – anuncia, trocista. – Do expurgo pintelhal.
– Do quê?
– Da depilação dos tomates! – Ela dá uma gargalhada, que interrompe: – Há alguém a mandar que se depilem?
– Não gostas?
– Parecem uns rapazitos – deprecia-te ela, examinando-te sem cuidado. – Pelo menos tu só rapaste os colhões… Menos mal!
Não respondes. Ainda não te lembras como vieste ali parar.
– E agora? – pergunta-te a mulher.
– Agora?
– Sim – responde ela com uma careta que não vês mas sentes no tom de voz e nas mãos que te largam. – E agora como é que vamos fazer?
– Fazer?
– Sim, e agora como é que me vais comer outra vez?
Olhas para baixo mas não para os pés – os pés não interessam nada: estão lá e sentem o chão, pronto. Ah! Tens de cortar as unhas, reparas.
– Não consigo… – lamentas lentamente em resposta.
– E com outra pessoa?! – replica ela, com estranha simpatia.
– Com outra pessoa?
– Disseste o “não consigo” tão devagar que parecia que tinha virgula – explica e imita com voz arrastada: – Não, consigo não.
– Eu não disse o segundo não.
– Parecia que ias dizer.
Ela leva as mãos à nuca e abre um pouco o fecho éclair que fecha a máscara atrás. Olhas ansioso com a possibilidade de a veres, de a reconheceres.
Ela pára e depois de te olhar atentamente pergunta mostrando os dentes num sorriso simpático:
– Tu não te lembras de nada, pois não?
Coças a cabeça com o indicador direito e acenas que não.
Ela ri sem troçar.
– Estás bem disposto? – pergunta.
– Estou – dizes depois de confirmares e te espantares por estares. – Mas não me lembro mesmo de nada – confessas. – O que é que aconteceu? Quem é a senhora?
– Uh… – arrepia-se a mulher. – Senhora?!... Depois de tudo o que passámos e fizemos juntos agora tratas-me por senhora?
– Eu não sei o que passámos, nem o que fizemos. – Sentes mais força nas pernas e desencostas os joelhos da cama. – Só me lembro de si a tentar matar-me por asfixia, mais nada.
– E de fazeres quarenta anos ontem?
– Ah… Vagamente… – reconheces.
– E do jantar? E da continuação do jantar? – Ela vai perguntando e tu vais acenando em jeito de pouco, lembraste pouco. – E a seguir? E a prenda?… E da minha prenda? – Ela senta-se com os pés fora da cama. – Nada?
– Pouco.
Ela levanta-se. Tu segue-la só com o olhar. Sentas-te na cama vazia. A mulher é linda. Grande e linda. Comprida e perfeitamente torneada. Tem uma cicatriz por trás do joelho direito. Vira-se para ti. Segura uma câmara de vídeo. Sentes que o ar se esvai novamente e que não o consegues repor. A câmara suga o oxigénio que te é necessário. Voltas a ver cores. Não. Vês apenas vários tons de cinzento. A mulher sorri-te.
– Ainda bem que filmámos tudo – diz. O plural enche-te os pulmões. – A noite dos teus 40 anos!
A mulher aproxima-se, sorridente. Retira uma pequena cassete da máquina. Estende-a na tua direcção. Beija-te na face.
– Parabéns – diz-te enquanto te beija. – Gostei muito… – diz-te quando te dá a cassete. Sorri. – E vais ver que tu também gostaste.

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