27 abril 2011

A sentinela de papel


De vez em quando espreitava as memórias que guardava durante o tempo que queria acreditar suficiente para as tornar inofensivas, anestesiadas, dormentes como os braços onde sentia agora o formigueiro do sangue na sua circulação, a alma em ebulição que fechava na mesma gaveta, esse pedaço incandescente que tentava apagar no rescaldo por acabar como o percebia sempre que abria o peito à análise irracional daquele resíduo de emoção perigosa dentro de si.
Ficava sempre por ali, no silêncio compartimentado, estanque, de uma casa-forte sem oxigénio que pudesse alimentar aquela chama que não conseguia apagar e queimava a cada inspecção as pontas dos dedos do coração que queria vencer o combate quando tocava a rebate o sino de alarme, o alerta geral de que algo poderia correr mal com aquela labareda à solta.
Fechava à pressa a porta de acesso para se poupar ao risco de se queimar outra vez, uma saudade inflamável que servia de combustível para o lançamento de um foguetão que lhe atingia o coração como uma seta de cupido tresmalhada no meio do fogo cruzado com a cabeça que se esforçava para impedir a ocorrência, não perdia a consciência do perigo que representava a abertura daquela caixa de pandora interior.
De vez em quando tentava extirpar o amor, a paixão teimosa que se revelava ardilosa quando se fingia uma bela adormecida de pacotilha para montar uma armadilha, uma emboscada à traição com a sua força de emoção poderosa e sabedora das fraquezas, dos remendos aplicados como certezas de uma segurança afinal tão titubeante como a indiferença aparente que constituía a primeira linha de uma defesa formada por castelos de areia à mercê de sopros mais fortes do vento.
Ou de uma inexorável subida da maré.

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