20 maio 2011

Monstrinha

Talvez não nos falte bondade. Talvez não nos falte empatia. Talvez não nos falte amor no coração, piedade nas mãos, vontade de abraçar. Talvez ninguém seja mesmo cego, talvez nem nos falte a vontade de ver. Talvez seja uma questão de paciência; talvez seja o nosso único pecado, a nossa única falha no castanho dourado, liso, quente, na superfície da nossa madeira, a falta dela, da paciência, uma pequena falha, rugosa, pontiaguda, pica, arranha. Só isso. É porque há muitos semáforos, demasiados semáforos, por lá se esticam mãos abertas, engasgamo-nos, constantemente, a cada quinhentos metros de cidade em olhos que pedem e imploram, em batidas insistentes no vidro da janela, para que abra, para que compre, para que dê, para ouvir da fome, da dor, do frio, dos filhos, lavagens forçadas ao pára-brisas, espuma pelos olhos adentro, arde, arde, a cara vira-se, não tenho, não tenho, não tenho, dinheiro, cigarros, não abro, não. São demasiados, muitos, muitos, incontáveis semáforos. Os semáforos, sim, as pessoas nunca são demais, nós somos bons e as pessoas nunca são demais mesmo quando são mendigos ou marginais, os seres humanos são bons, piedosos, caridosos, atentos, calorosos. Os seres humanos são bons, piedosos, caridosos, atentos, calorosos, meu Deus, a culpa não é nossa ou dos outros, a culpa é dos semáforos, meu Deus, por favor, por favor, peço-te, na tua enorme generosidade, no teu imenso Amor, acaba com todos esses semáforos. Deixa-me só um, um apenas, um que me lembre que eu e as palavras somos o pedinte e o semáforo e o marginal e o semáforo para cada dia batermos mais na janela, para cada dia pedirmos mais.

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