24 julho 2011

A Rapariga Vulgar (V)

(Aquele escombro absurdo do silêncio mutilado, à deriva num mar de ruído, mantém o olhar inquieto, incauto, quer enrolar o burburinho sólido, tóxico e puxá-lo ao fundo de um castanho ansioliquido. O mundo recolhe às famílias, sobram cá fora os que não pertencem a ninguém.)

Aquela, a última do entardecer, é a melhor hora do dia. Ele fuma cigarros, embala o pensamento na inquietude serena do fumo, observa a rapariga vulgar, sem a interrupção incómoda das onomatopeias grunhidas do homem do estabelecimento ao lado. Dali, consegue ver bem até o que não vê. Mais um homem pára o carro e a rapariga entra. Deixa a imaginação segui-los, torna-se, assim, uma sombra invisível que se funde com os seus corpos. A rapariga está deitada, exposta, submissa, delicada. O desejo invade o homem pelos olhos, numa guerra sem opositores conquista o baixo ventre e lança, embriagado pela vitória, empurrado pelo sangue, uma rigidez de um vermelho nítido, a fome viva, lúcida e inequívoca. Vê-o subir o corpo da rapariga, as nádegas duras, masculinas, em contracções vorazes, o peito moreno, as formas geométricas do masculino, um cheiro ardente a suor preso nos dedos, pêlos negros nas costas quadradas, ossudas. Também ele é a rapariga debaixo do homem, deitada, exposta, submissa, delicada. Tremem-lhe os lábios entre o desejo e a bestialidade do primeiro beijo, o trespasse das margens do proibido. O cigarro parece acariciar-lhe a boca, agora que a fome parece ter tornado a pele mais fina, até a aragem parece uma carícia, uma língua proibida, saliva interdita, pensamento varado pela vergonha. E o Sr. João continua ali, sente-se exposto e delicado, submisso ao amante que a imaginação rouba da rapariga para os seus braços, deitado como uma belíssima flor incompleta.

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