15 julho 2012

«Fatias do tempo» - João

"O trapézio que se desenhava no chão era muito maior do que a janela por onde o sol entrava, atravessando aquele estúdio numa longa diagonal, testemunho de uma tarde que findava com tons laranja. Ao fundo, na parede mais distante, um longo rolo de papel negro desenrolava-se desde o tecto até ao chão, e depois por alguns metros mais, sob uma cama de alvos lençois e almofadas grandes. Tu estavas sentada, virada para o sol, coberta por um robe branco que havia escorregado pela coxa esquerda, deixando-a a aquecer ao sol. Olhavas-me sem impaciência, mas também sem calor.
Anos antes, mesmo ali naquele espaço, havia sido diferente. Recordo-me como também nessa altura tinhas um robe branco, fino, desapertado. Não tinha sido difícil despir-to, nem o tempo da nudez parecia suficiente, de tanta que era a vontade. Tinhas lançado as tuas mãos ao meu corpo, cruzado os teus pés atrás das minhas costas, estavamos colados na melhor negação do paradoxo de Zenão. Não havia pontos intermédios. Onde o meu corpo terminava, começava o teu. Entre lábios que se mordiam e mãos sem espaço todos os minutos pareceram tão poucos. Impaciência, muita. E um olhar quente. Mesmo sem falar dizias-me que me querias. E continuavas querendo enquanto o sol desaparecia lá longe por entre as árvores, e o espaço outrora luminoso dava lugar a uma penumbra de onde não nos apetecia sair.
Cruzei o meu olhar com o teu no momento em que um clique me dizia que a câmara estava encaixada no tripé. Depois liguei-a e espreitei naquele rectângulo pequeno onde o teu corpo surgia distante, acompanhado de números. Despiste sozinha o robe que ainda te cobria parte da pele e deitaste-te sobre a cama, olhando já não para mim mas para uma lente fria. A luz rápida de um flash, com um barulho agudo, fez-se sentir, e o instantâneo estava feito. Como fatias do tempo. Cada fotografia uma fatia de coisas que nunca voltariam a ser. Foi assim que te vi ir embora, em fatias do tempo, feitas atrás de uma máquina que me escondia e me deixava imagens de algo que eu sabia, já ali, que nunca voltaria a ter."
João
Geografia das Curvas