23 setembro 2013

Luís Gaspar lê «O bolero do coronel» de António Lobo Antunes

Eu que me comovo

Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo

Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome

Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste

Nem sequer gemeste,

Mordeste, abraçaste

Quinhentos escudos
Foi o que disseste

Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato

À sopa dos pobres

A infância sem quarto
A suor, a chiclete

Saíste do carro
Alisando a blusa

Espiei da janela

Rosto de aguarela
Coxa em semifusa

Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão

Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia

Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama

Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada

António Lobo Antunes
(Lisboa, 1 de Setembro de 1942)
é um escritor e psiquiatra português. Entre 1971 e 1973 viveu em Angola, onde participou, como tenente médico do Exército, na Guerra do Ultramar. Posteriormente exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, até 1985. Em 1979 publicou os primeiros livros, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que obtiveram grande êxito

Ouçam este poema na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa