14 outubro 2013

Luís Gaspar lê «Nem sequer podia…» de António Botto

Nem sequer podia
Ouvir falar no teu nome.
E se fixava o teu vulto,
Irritava-me, sofria
Por não poder insultar-te…
Até que um dia,
- Foi no inverno, anoitecia.
Chuviscava; – uma chuvinha
Impertinente e gelada
Como sorriso de ironia
Numa boca desejada.

Já não sei o que disseste;
Nem me lembro do que disse…

A chuva continuava.
Atravessámos um jardim. E à
luz fosca Dum candeeiro,
Segredaste ao meu ouvido:
Quero entregar-te o meu corpo.
E eu acrescentei: – Pois sim.

A chuva tornou-se densa. Eu ia
todo encharcado. Por fim,
chegámos; entrei…

Um marinheiro descia
Ajeitando a camisola
E compondo os caracóis.
Era uma casa vulgar,
Aonde o amor
- Oculto a todos os sóis,
Se vendia a troco da “real mola”.

Arrependi-me. Blasfemei…
Mas quando abandonei os teus braços
Senti que tinha mais alma!

E nunca mais te encontrei.

António Botto
(Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português. A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia "Canções" que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época.

Ouçam este poema na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa