06 abril 2015

«Deixa-te de coisas» - João

"Sinto frio. Tremo. Não creio que os joelhos se aguentem muito firmes. Sopra vento. Eu não tenho cabelo para ondular, mas ondula o teu. Sentes frio. Tremes. Escondemos os corações que se agitam velozes, e não estamos sequer perto para o sentir, nem perto ainda para ver o que os rostos mostram. Enquanto caminho fixo o olhar nas pedras, nas plantas, nos pedaços de estrada e terra batida, vejo pessoas que passam ao longe em vidas que parecem sorrir-lhes, vejo automóveis acelerar para qualquer sítio que não é aquele para onde vou, e embrenho-me numa paisagem densa, encontro um banco onde o Sol contraria a temperatura mais baixa e sento-me. Umas vezes nervoso, olhando à volta, outras de olhar fixo no chão, ou em frente a mim, na paisagem que se estende ao largo com a pressa de milhões de anos para se vestir. Sei que chegas porque consigo ouvir os teus passos mover as pequenas pedras e areias do chão. Sei que chegas porque o ar se transforma num perfume diferente. Sei que chegas porque, teimoso em não te olhar por mais alguns momentos, te deixo sentar ao meu lado, num silêncio que não é sequer incómodo, é reserva, é fome de páginas. As páginas que eu tenho sob a minha mão, todas as coisas que foram escritas sobre os minutos, as águas, as danças e os corpos. Levas a tua mão às mesmas folhas de papel, e com isso os nossos mindinhos tocam-se. E a pouco e pouco, não querendo dizer depressa, muito depressa, dos mindinhos são já todos os dedos que se entrelaçam, mas ainda sem olhar. Como se houvesse vergonha, como se nos fosse difícil encarar, como se existisse medo. E há quantos anos não lias as páginas? Que saudades trazias de ler a ponta dos meus dedos, as palavras que despejo no papel velho, da tinta permanente que insisto verter? Há quanto tempo não me lês, pensei, há quanto tempo te quero ler, pensaste. As mãos seguiam quentes, mas havia tremura, em mim, em ti. Não era o frio, não era o vento, era a cabeça a fazer-nos tremer com um nervosismo miúdo, com as borboletas que voam na acidez do estômago, e precisámos de tempo. Ficámos ali sentados no nosso silêncio, vários minutos, vários sorrisos tímidos, com as mãos quase a doer de tão agarradas, de tão apertadas que não foges, que não te deixo ir a lado nenhum senão aqui mesmo, e as tuas pernas que balançam, e as minhas que se encostam às tuas, e é um namoro de pele, de tacto, os ombros já juntos, o papel vincado, tanta coisa escrita entalada entre os corpos que se querem perto, e quando o tremor cessa, quando finalmente nos encaramos, pego nas folhas que arremesso ao ar, que atiro ao vento, e beijamo-nos com doçura e com fome, quantos são afinal, quantos são estes dias, e fazemos contas de cabeça sem a importância de acertar, estimativas grosseiras apenas para enquadrar a necessidade de rasgar a pele e deixar o outro entrar, e os papéis ainda voam, flutuam no ar, outros vão para longe, são letras mortas, são palavras pálidas agora que estamos naquele sítio, sentados já frente a frente, e deixamo-nos de coisas, deixa-te de coisas dizes, deixo-me de coisas, digo, e não sei já quem avança para cima de quem, acho que me dominas de joelhos opostos, sentada ao meu colo, oscilando o teu corpo sobre o meu e dizendo-me ao ouvido que se eu soubesse, se eu soubesse o quanto já precisavas disto, se eu soubesse, e não sei eu? Não saberia eu? Não precisaria eu? E tanta força, tanta força, aguentarão os nossos ossos esta força que nos aperta, a força que os nossos braços fazem ao corpo um do outro, a minha cara que desaparece no teu pescoço, no teu cabelo, a tua boca que me morde o ombro, haverá outro mundo para lá deste, haverá palavras em papéis mortos que valham mais que isto?"

João
Geografia das Curvas