05 setembro 2015

«Na paragem do autocarro» - por Rui Felício

«Plaisir des Dieux» - canções malandras francesas
Disco em vinil da colecção «Prazer dos Deuses» - "tonus" (volume 15)
da colecção de arte erótica «a funda São» *
Que mulher!
Um corpo escultural, o nariz perfeito bem desenhado equilibrava o rosto oval, de pele sedosa, onde sobressaiam uns olhos negros, profundos como um lago onde apetecia mergulhar, emoldurado por belas madeixas de cabelos negros.
Da sua boca de lábios carnudos, apetitosos, escapava-se de vez um quando um suspiro de impaciência a que se seguia um ligeiro virar da cabeça para me lançar um lânguido olhar e um sorriso que deixava ver duas fiadas de dentes imaculadamente brancos.
As pernas altas, torneadas, em cima de uns sapatos brilhantes de saltos finos, de agulha, davam-lhe a elegância de uma deusa. Por vezes, batia repetidamente com o tacão dos pontiagudos saltos dos sapatos, em sinal de ansiedade e expectativa, pela demora do autocarro.
Atrás dela, estático, tenso, na fila da paragem do autocarro, mirava-lhe as generosas curvas do corpo envolto por um vestido leve de seda que quase me deixava ver aquilo que imaginava. Sentia o seu cheiro perfumado, a proximidade e o calor do seu corpo. Retesava-me, contraído e, em vez de um sorriso, devolvia-lhe o olhar com um esgar revelador da ansiedade que também sentia, já indisfarçável.
As palavras que ia alinhavando na minha cabeça para lhe dizer, ficavam bloqueadas, presas na garganta.
Por fim, enchi-me de coragem, venci a minha timidez e disse-lhe:
- Desculpe minha Senhora, o salto do seu sapato em cima do meu pé, está a provocar-me uma dor horrível!

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Blog Escrito e Lido

* Em França há uma tradição muito curiosa: as «chansons paillardes» (canções tradicionais libertinas, cantadas em privado, entre amigos), também conhecidas como «chansons de salles de garde». A página chansons-paillardes.net recolhe músicas, letras, publicações sobre o tema. No livro «Anthologie des chansons paillardes», Pierre Enckell, explica: "Georges Brassens, Serge Gainsbourg,... muitos artistas marcaram a música popular e cantaram alegremente o erotismo e a sensualidade. Muitas vezes foram chamadas de «músicas de quartos de custódia», em referência aos internos dos hospitais, que supostamente as deveriam saber todas de cor, ou mesmo «canções de alunos», como se tivessem tido origem exclusivamente nas tradições perpetuadas em universidades e escolas. No entanto, as canções obscenas experimentaram uma distribuição extremamente ampla. Em todos os níveis da sociedade e em todas as ocasiões, os seus versos foram cantados ou gritados, desde há mais de um século, na cidade e no campo, nos quartéis e na vida civil, durante jantares de casamento ou viagens de autocarro. Estas «gaulesices» em verso formam, assim, um fundo cultural amplamente compartilhado, condenado a viver para sempre na memória colectiva de França. Transmitida de boca em boca, com o passar das gerações e transformações culturais, as canções deformam-se, perdem elementos ou caem gradualmente no esquecimento." As colectâneas, estudos e gravações ajudam a preservar esta tradição.