12 outubro 2015

«Poeira dançante» - João

"O corredor sempre fora assim, recheado de livros à esquerda e à direita, e a luz entrava diagonal de uma janela alta e mostrava o pó que se suspendia em dança lenta sempre que algum livro era mexido, e se havia alguns que sempre andavam de mão em mão, outros ficavam à mercê do tempo perdido e do ocasional espanador de alguma empregada de limpeza. E eles sabiam bem quais eram os livros que trocavam de mãos mais vezes. Um deles, velho conhecido, não iria a lado nenhum quase de certeza. Estava guardado ao lado de outros, ignorado. Decidiram utilizá-lo como veículo das suas mensagens, e era assim que também ele, de tempos a tempos, era manuseado. No tempo de todas as tecnologias, pequenas folhas de papel manuscritas eram colocadas dentro desse livro, nem sempre entre as mesmas páginas, saltando de capítulo em capítulo como por capricho. Ora de um, ora de outro. E as mensagens eram variadas. Um quero fazer tudo contigo, ou um amo-te seco à pressa, por vezes coisas mais crípticas que assinalavam locais e horas, e na verdade todos os dias se passeavam por ali para no recato de um momento vazio pegar no livro, abri-lo ao acaso, plantar uma folha escrita com emoção, fechá-lo e voltar a colocar na mesma prateleira, no local de sempre, desafiando o corropio de todos os outros. Talvez aquele não fosse a lado nenhum, talvez ninguém o quisesse ler, mas era o livro mais desejado de todos quantos ali se empurravam nas prateleiras.

Um dia ele foi lá e não encontrou nada. Pegou no livro como sempre, com o coração acelerado, com a emoção de querer ler o que ela tinha escrito para ele, mas abriu, folheou, virou até as folhas para o chão na esperança de ver cair uma folha solta que lhe tivesse escapado, mas nada. Só a luz a entrar diagonal pela janela e a poeira a dançar, suspensa no ar, como que a gozá-lo, sem vergonha nem consideração. O livro estava vazio, apesar de todas as suas páginas escritas. Passou outro dia e ele voltou a percorrer o mesmo corredor, e de novo o coração acelerado com uma expressão de expectativa no rosto, e as folhas impressas sem as palavras que ele procurava, nenhum papel solto lá dentro, nenhum quero-te, nenhum vem comigo, nada de ser só tua, nada de nada, só as folhas, as costuras, a capa dura. A poeira a dançar contra os raios de luz tornava-se a imagem do desespero, ela não estava ali, o livro estava morto, devolvido à prateleira apertada, e o rosto a encher-se de tristeza, e por vezes deixava ele um papel com a sua letra, onde estás, que é feito, onde foste, e encontrava-os no dia seguinte, colocados no mesmo local, sem sinal de nada, intocado, deixado por abrir. E um livro fechado é de pouco interesse, não diz nada, não fala, não aquece.

Mais tarde, centenas, milhares de dias a pegar naquele livro, à espera do papel que não aparecia, olhou a toda a volta, desconfiado de que alguém o observasse. O papel que lá havia deixado da outra vez, estava lá, sim. Mas estava noutro sítio. Noutro capítulo. Tinha sido mexido. E nos dias seguintes sempre aconteceu a mesma coisa, ele deixava os seus escritos num sítio, e eles apareciam noutro. Mas nada era respondido, nada era dito, e nunca ninguém parecia espreitá-lo, a hora era de morte como sempre, e aquilo que ele lá deixava parecia mudado como magia, como se o seu papelito manuscrito se dissolvesse entre as páginas e mudasse de local, sem que lhe tocassem. Deixou um novo, com palavras muito especiais, e veio embora, com um olhar que perdera brilho na passagem dos dias, que já nem notava a poeira na luz diagonal. Aquele livro onde colocava papelinhos manuscritos tornara-se um ritual de vida que lhe animava os passos, dava sentido, porque raios, algum sentido teria de haver, para alguma coisa havia de servir, não podia ser por nada, para nada.

Chegou um novo dia, um qualquer novo dia, e ele, passo a passo, lá foi. Repetir o gesto de sempre, fazendo o corredor até onde estava aquele livro tão especial para ele, um dia para eles mas agora talvez só para ele, que ninguém levava, ninguém pedia, não havia quem abrisse senão ele e sabe-se lá se mais alguém que lhe trocava as voltas mudando os papeis de sítio. Talvez tivesse sido observado por algum traquina, talvez alguém tivesse decidido gozá-lo, trocar-lhe as voltas, ou fazê-lo sentir-se senil, maluco, fora de prazo. De pé, frente à lombada, de mão já pousada sobre ele com o gesto de quem o vai retirar, nota que está uma folha de cor diferente, saliente, visível entre todas as outras. Era algo novo em tanto tempo, mas conhecido. A mesma cor de papel que tanto tempo antes havia lido, com a letra torneada que reconheceria em qualquer ponto do mundo ou da vida. O coração que já seguia gasto das emoções passadas e os olhos baços da esperança perdida aceleraram-se e brilharam de novo, e a respiração fez-se ofegante e abriu o livro à pressa, pegou a folhinha que ali estava e deu um passo atrás quase em desequilíbrio, o coração tanto mais rápido e os olhos fixos. O livro. Um papel. Uma palavra apenas.

Virou-se e viu o rosto dela por entre livros da prateleira em frente. Ficou imóvel, paralisado pela surpresa, enquanto a viu acelerar o passo em direcção a ele, a apanhá-lo nos braços e a apertá-lo com força. Com muita força. Estou viva ainda, respiro contigo e por ti, e ele quase a cair, e ela a ampará-lo, que não sonhas, não te deixes cair amor, eu seguro-te, e os lábios a colar-se, ele a chorar como menino pequeno, e a incredulidade, estás aqui? E estava, eram eles, era o livro, era o papelinho, e a luz diagonal a mostrar as poeiras que dançavam, lânguidas, suspensas no ar agitado pelos seus corpos que a pouco e pouco, recompostas as emoções, dançavam também, na descoberta de que as peles eram iguais, e tudo continuava electrizante, como em tempo parecia até aborrecer, de tão animais que eram. E continuavam a ser."

João
Geografia das Curvas