04 dezembro 2016

«uma bola no fundo do copo» - bagaço amarelo

- E a Márcia?
- E a Márcia o quê?
- É bonita. Nunca te apaixonaste por ela?

O fundo do meu copo de cerveja tem uma bola verde. Não sei porquê, mas suponho que seja para o distinguir dos copos de cerveja dos outros bares, que são todos iguais. Não costumo sentar-me em praças de alimentação em shoppings a beber cerveja, mas desta vez não tive escolha. A Marta trabalha ali perto e não tinha tempo para ir a outro sítio.
Mesmo ali, num ambiente que considero inóspito, gosto de a ver. A Marta é uma daquelas amigas que tanto posso visitar cinco vezes numa semana, como depois passar três ou quatro meses sem lhe pôr a vista em cima. De qualquer forma, sei que quando ela me telefona para tomar café é uma ordem que, mesmo que seja num centro comercial, eu acato.

- Desde quando é que um homem se apaixona por uma mulher só por ela ser bonita?!
- Desde que é homem... - ri-se.

Rio-me também.
A Marta pensa que eu gosto muito de mulheres, o que até é verdade. O que não é verdade é que gosto de muitas ao mesmo tempo. Gosto de uma de cada vez e tenho uma enorme dificuldade em deixar de gostar. Normalmente, quando tenho que o fazer, começo a reparar em coisas tão absurdas como o facto de um copo de cerveja ter uma bola verde pintada no fundo. Por isso mesmo afasto o copo vazio para o lado e esqueço o que vi.

- E então?! Apaixonas-te por quê?! Diz lá. Inteligência? Sensibilidade?
- Sei lá...
- Não sabes?
- Claro que não. Normalmente apaixono-me por uma mulher. Nunca consegui simplificar com adjectivos uma mulher. Nem sequer tento...

Um homem aproxima-se e cumprimenta a Marta. Ficam os dois a falar um bocado sobre uma coisa qualquer que não me diz respeito. Por um momento não interesso para nada e gostava de ainda ter alguma cerveja no copo. Nem sequer sei para onde olhar ou onde pôr as mãos. Suspiro. Sei que ela me ia dizer qualquer coisa que eu queria ouvir, mas o mais provável é já nem se lembrar quando ele se for embora.
Levanto-me e faço, propositadamente, algum ruído com a cadeira. Escolho outro bar para ir buscar mais uma cerveja, apenas pela curiosidade da bola no fundo do copo. Escolho um onde uma mulher bonita, por trás do balcão, parece impaciente por não ter clientes.

- Uma cerveja de pressão, por favor.
- Um fino?!
- Isso...

Não, definitivamente não me apaixono por uma mulher apenas por ela ser bonita. Esta é muito bonita, por exemplo, e sei que nunca me apaixonaria por ela. Na verdade, nem sequer gosto muito da forma como ela me atende, apesar de ser simpática.

- Um e vinte!
- Obrigado.

O homem está a ir-se embora. Óptimo. A Marta não mo apresentou e eu não tive que fazer um sorriso amarelo para parecer simpático. Sento-me. A bola no fundo do copo é amarela. Curioso, já sei porque é que não gostei da rapariga. Foi o sorriso amarelo. Os sorrisos desta cor não nos definem como pessoas, mas definem a incompatibilidade entre uns e outros. Acho eu, pelo menos.

- Lembras-te do que me ias dizer? - Pergunto.
- Não, desculpa. Foste buscar uma cerveja e não me trouxeste uma...

Ela levanta-se. Fico a vê-la a serpentear as mesas cheias de tabuleiros e restos de comida até se encostar a um balcão. É bonita e não me faz sorrisos amarelos, mas nunca me apaixonei por ela. Nem sequer na noite em que nos beijámos dentro de uma tontura alcoolizada. Acho que às vezes a vida é mais sobre as relações que não temos do que sobre as que temos.
Não sei qual é a cor da bola que ela trará no fundo do copo.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»