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18 janeiro 2024

«Que noite para deixar de fumar» - Ivar Corceiro


Aquele seria o seu último cigarro e como último cigarro de uma vida que levava quarenta e quatro anos tinha tanto de angustiante como libertador. Não era para menos. No espaço de apenas três dias a sua vida mudara radicalmente e, apesar de ela ter primeiramente interpretado as mudanças como más, no seu íntimo sabia que as vantagens apareceriam lentamente como se fossem bolhas de ar a subir num profundo e escuro oceano. 
A sua filha única, Ana, emigrara repentinamente para a Roménia, onde ia começar a trabalhar num call center qualquer; o seu marido, cujo nome não queria tornar a dizer nem para si mesma, deixara um curto bilhete de despedida na porta do frigorífico e fazia agora setenta e duas horas que não aparecia em casa. Curiosamente, a sua primeira reação ao ler o bilhete foi sorrir, mas perante a repetição do feito e a memória de que ele voltava sempre no dia seguinte depois destes bilhetes, o seu sorriso esmorecera como um dia que se faz noite. Estas setenta e duas horas eram portanto uma esperança real de que desta vez talvez ele não voltasse. 
Deixar bilhetes de despedida na porta do frigorífico era apenas mais uma decepcionante característica daquele homem. Nem para se despedir conseguia inovar, ser único, surpreendê-la. Até nas anedotas baratas os amantes deixam bilhetes na porta do frigorífico e, na verdade, talvez fosse esse o motivo. Ele nunca tinha lido um livro na vida nem sequer visto um filme mais complexo do que o Sozinho Em Casa. Agora que pensa nisso, ela já nem se lembra por que motivo se apaixonou por ele. Talvez a paixão às vezes seja só uma necessidade estúpida no coração, que depois de morrer nos vicia na carne. E na carne ele tinha sido realmente bom, num período da vida que ela já consegue identificar.
Apagou a angústia do cigarro no tablier do próprio carro, um Dacia Sandero branco comprado em segunda mão dois anos antes e que era agora o seu melhor amigo, e inspirou as réstias do seu fumo libertador. Precisava de se intoxicar de liberdade, pensou. Naquela rua de Lisboa a prostituição de homens era  a lei e ela queria voltar a sentir esse vício da carne, tudo o que apenas um fugaz e descomprometido ato de sexo consegue. Ligou o motor do automóvel e avançou cerca de trinta metros para perto de um grupo de homens que se exibia debaixo da tímida luz de um candeeiro público. Depois abriu o vidro da janela lateral do lugar do morto e três deles aproximaram-se.
- Olá querida - disse um.
Era curioso que se chamasse lugar do morto àquele onde por norma se senta quem se prostitui, mas esse pensamento também se desfez em fumo imediatamente. Um dos homens era demasiado baixo e estava nitidamente em bicos de pé enquanto os outros dois se curvavam para dentro do veículo. Tinha sido ele a dizer o "olá querida" mas a sua atenção caiu sobre os outros por esse motivo. Um tinha barba e outro não, o que desampatou a contenda de imediato.
- Se essa barba arranhar, entra, por favor.
O homem que se sentou ao lado dela devia ter cerca de um metro e oitenta, cheirava demasiado a um perfume barato qualquer mas pelo menos parecia ter os dentes todos e o seu olhar era bonito. Não tinha a barriga sobressaída, o que era bom sinal, e os seu braços já estavam cruzados como se se preparasse para uma longa viagem. Não tinha cara de estúpido, mesmo que naquele momento ela não soubesse sequer descrever como seria essa cara, o que era suficiente. 
Foi nesse momento que ela percebeu que não sabia o que fazer. Devia ir para um motel, para casa ou poderiam ter sexo mesmo no carro num qualquer canto escuro da cidade? Não quis perguntar para não ficar em desvantagem naquele estranho negócio a dois, por isso optou pela estratégia de parecer decidida e, talvez também porque existia uma pequena hipótese do seu ainda marido ter voltado, disse:
-Vamos para minha casa, está desarrumada e espero que gostes de sexo no sofá! - No fim da frase os lábios tremeram-lhe um pouco.
- Eu não tenho que gostar, querida. Afinal de contas estou a ser pago.
Em apenas cinco minutos, aquele homem já lhe tinha chamado "querida" duas vezes. Era definitivamente estranho, o negócio de prostituição. O Dacia arrancou como se tivesse dúvidas que o queria fazer e desapareceu devagar na primeira curva. Pelo espelho retrovisor ainda viu os outros dois homens a olhar na sua direção. 
Um silêncio amargo ia com eles no automóvel, por isso ela ligou o som do rádio que, mesmo sem sintonia perfeita, fazia o favor de justificar a falta de palavras entre ambos.
Ela tinha razão, ele não era estúpido. Estava ali a trabalhar e fizera questão de o sublinhar na primeira oportunidade, o que punha toda a estética do sexo que se aproximava à sua responsabilidade. Ela ia decidir o que ele ia fazer, depois pagava-lhe, provavelmente com um extra para que ele pudesse regressar de táxi. 
A casa estava realmente bastante desarrumada, tão desarrumada pelo menos quanto a vida dela. Ele tirou os sapatos, que alinhou perfeitamente na entrada, e os seus olhos procuraram de imediato o sofá num irrequieto voo por todas as portas abertas do pequeno T2. Sentou-se decidido e contou os livros espalhados pelo chão e pela pequena mesa da sala, que eram doze; os cinzeiros cheios de beatas, que eram três; as garrafas de vinho e cerveja vazias, que eram cinco. Quando acabou de contar ela já estava com as mãos no sexo dele.
- Não é difícil! - disse ela decidida - só me penetras quando eu estiver húmida e não quero beijos. Podes fazer isso?
- Posso!
Os corpos despiram-se um ao outro, primeiro com a vista e depois com as mãos. Quando estavam nus começaram por se estranhar e familiarizaram-se depois lentamente, primeiro com as mãos, depois também com a vista. Tornaram-se só um até que ela o imobilizou com a voz para poder controlar sozinha o final.
-Já está! - disse.
Gemeu alguns segundos.
Ele não estava, mas isso pouco interessava. Vestiu-se rapidamente e em dificuldade até o falo amolecer. Deu-lhe um cartão com os dados bancários para que ela pudesse fazer uma transferência bancária de imediato.
- Quanto é?
- Um mínimo de cem. A partir daí é o que quiser.
Ela transferiu cento e vinte e levou-o até à porta. Deu-lhe mais uma nota de vinte para o táxi e trancou-se mal ele saiu. Não lhe disse Adeus nem obrigado. Ele também não disse nada. Desta vez nem lhe chamou "querida".
Dentro de casa ficaram ela e o silêncio, um silêncio tão volumoso como o interior de um ovo. Aquele rápido e intenso momento de sexo permitia-lhe agora pela primeira vez olhar para esse caos da sua casa e percebê-lo, estabelecer uma analogia entre tudo o que é material e a sua solidão. Os cigarros, os livros e o álcool, mas também os pequenos objectos decorativos nas estantes da sala, os ímanes de viagens distantes no frigorífico e algumas pinturas na parede das quais já se tinha esquecido que estavam ali,
Aproximou-se da janela. Lá fora a cidade continuava um formigueiro ignorando-a totalmente, ao sangue quente que lhe corria nas artérias e aos pensamentos enublados que lhe corriam na mente. Na verdade, toda aquela quietude só servia para ela entender isso mesmo, que tinha passado a vida a correr atrás de coisa nenhuma.
O Amor, que tinha sido tudo, encolhera-se lentamente como um figo seco até ser nada e permanecera naquele apartamento a fingir ser vida. 
Sorriu. Que noite para deixar de fumar, pensou.

Ivar Corceiro
Blog «Não compreendo as mulheres»

28 agosto 2020

«O Síndrome do Peixinho Vermelho» - Ivar Corceiro


Estou com o síndrome do Peixinho Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.

E eu perguntei-lhe que raio de síndrome é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava perto de mim.

A alguns metros de nós seguia um lobo que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as folhas e os ramos coloridos.

E então ela explicou-me o síndrome. É ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com as outras como se fossem eternas.

Eu sorri. As árvores dançaram num assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali. Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.

E eu perguntei-lhe como é que as pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.

O lobo rosnou. As árvores fizeram silêncio. Eu também.

E ela olhou para mim e disse-me para continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.

Pode não parecer, mas esta é uma história de Amor.


Ivar Corceiro
Blog «Não compreendo as mulheres»

10 março 2020

«pensamentos catatónicos (351)» - bagaço amarelo» - Ivar C


Estou no comboio entre Manchester e Londres. Entrei apenas em Stoke-On-Trent e vou sair em Wolverhampton, onde tenciono apanhar uma ligação secundária para Cosford. É lá que existe um museu da Royal Air Force e uma base aérea militar importante que pretendo visitar.

Levo no pensamento que esta viagem de comboio pode ser um pouco como a vida. Entramos ignorando o passado e saímos desconhecendo o futuro. São assim o nascimento e a morte. É assim a vida e tento reconfortar-me precisamente com a ideia de que quando sair vou para outro lugar.

Em Stafford a vida faz uma paragem. As portas abrem-se e ajudo uma mulher a carregar duas malas pesadas para dentro do comboio. É a única passageira que entra, pelo menos pela porta onde eu estava encostado e perdido nos meus pensamentos. Dou-me então conta de que sou o único que decidiu não se sentar e seguir a viagem em pé. Ela agradece-me com um sorriso forçado. É bonita e é Inverno. Tem a pele feita de neve e o olhar azul e frio esculpido em gelo.

Enquanto eu coloco as malas, uma a uma, nas prateleiras que os comboios da Cross Country têm para o efeito, ela vira-se para a porta aberta. Lá fora três pessoas acenam um adeus em gestos lentos. São duas mulheres mais velhas e um rapaz que não deve ser ainda maior de idade. Bye, vão dizendo como se fossem um coro desafinado.

Conheço aquele adeus. Vi-o na minha mãe quando emigrei. É um adeus tortuoso, uma tristeza grande escondida por um sorriso maior. Depois o comboio apita e a porta fecha-se. É a vida que continua apesar de nós, apesar do que sentimos e do que queremos. Apetece-me abraçar a menina Inverno mas não o faço. Ela torna a agradecer-me e vai-se sentar. Thank you, diz.

Pudesse eu ser Primavera por um momento e abraçava-a. Ter a pele quente e os olhos dum campo florido qualquer. Mas não tenho. Adivinho que ela amanhã vai estar tão longe quanto eu estou agora e desejo-lhe sorte. Se é que isso existe.


Ivar C
Blog «Não compreendo as mulheres»

03 março 2020

«Nazdrave» - bagaço amarelo» - Ivar C


Sou um homem de meia idade. É assim que se diz, não é? Meia idade. Como se a vida soubesse sempre quando vai acabar e qual o princípio, o meio e o fim. Vejo-me, sem se me ver, no espelho da pequena farmácia da casa de banho. O que quero é o pormenor e não a face. Procuro na minha pele os sinais de como aqui cheguei. Os meus dedos percorrem-na como se lessem braile e na sua textura pudessem descobrir algo: uma memória ou uma história. É a minha pele, pá. Deve ter alguma coisa escrita.
Tenho um copo de uísque pousado no lavatório, o que indica que estava a beber quando decidi vir aqui procurar os caminhos vazios do meu passado. Não percebo nada disto, pá. Como é que vim aqui parar? Não era suposto a vida ser um dos muitos sonhos que tivemos em jovens? Eu nunca sonhei viver aqui, nesta casa longe da minha infância e com uma namorada que escreve num alfabeto que não é o meu.
Sou um homem de meia idade. Não tenho a certeza que a luz que decidiu entrar pela janela e deitar-se no meu corpo saiba disso. Gostava que sim. Assim podia aceitar esse gesto como uma carícia, como uma lógica apaziguadora da Natureza. Como um gesto. É isso, gosto de gestos. A última vez que me apaixonei foi por um gesto. Já me lembro.
Foi num jardim da cidade de Sófia. As árvores estavam a dançar no silêncio do vento e eu tinha-a acabado de conhecer. Estávamos num velho banco de madeira a dividir o tempo e uma garrafa de vinho branco barato. O mundo estava todo ali condensado. Um casal de namorados deitado na relva num beijo que parecia ser eterno, um bêbado adormecido num muro baixo que parecia ter sido construído exactamente para bêbados, um yuppie numa conversa com um telemóvel nervoso e um pedinte que ziguezagueava no espaço pedindo moedas.
Os nossos copos eram de plástico e o vinho já estava quente. Então ela quis brindar. Nazdrave, disse. Depois aproximou o copo dela do meu e eu o meu do dela. As nossas mãos pararam perto uma da outra e por fim brindaram sem saberem muito bem porquê. Vi-a a beber com a delicadeza de um deus, como se uma barragem enorme pudesse por opção deixar passar apenas uma gota para hidratar-lhe os lábios. Foi esse o gesto. Nazdrave, repeti. Depois esbocei um Sorriso.
É ela que aparece agora na porta da casa de banho. Traz dois copos de vinho e encosta-se à parede a ver-me a ler a minha pele. Pergunta-me o que é que estou a fazer. Não sei, respondo.
Sou um homem de meia idade. Para além dos cabelos brancos que se insurgem na minha cabeça contra o que ainda permanece da minha juventude noto duas ou três rugas. Não sei, repito. A vida não é muito mais do que um gesto. Ela passa-me um copo para a mão. Brindamos. Nazdrave, dizemos.


Ivar C
Blog «Não compreendo as mulheres»

02 junho 2019

«Espremamos o mundo como se fosse um limão» - bagaço amarelo


Espremamos o mundo como se fosse um limão. Pode ser para um copo ou até para o chão. Fiquemos a ver as gotas ácidas a cair, uma a uma, como uma chuva de memórias. O que é que fica? Quase nada e, no entanto, tanto.
Penso nisto enquanto brindo com uma mulher búlgara a divisão duma garrafa de uísque e repito com ela a palavra "nazdrave", como se dissesse "saúde". Dá igual. Porque é que estou aqui com ela, numa cidade secundária do Reino Unido? Porque fugi de Portugal. E ela? Porque fugiu da Bulgária. Um encontro improvável de dois fugitivos. "Nazdrave" outra vez.
No televisor da minha casa o Youtube oferece-nos quase aleatoriamente uma música sérvia chamada "Perspektiva" que eu ouvi várias vezes em festas perdidas nos meus tempos da Bulgária. Porque é que existem festas perdidas assim? Porque a solidão tem que se encontrar, claro.
Pois, pois, perspectiva. Ponhamos tudo em perspectiva que o planeta não se importa. Os fascistas na Hungria que cospem nos trabalhadores estrangeiros, o plástico nos oceanos, a aniquilição de um povo no Iémen, as prisões políticas na Bulgária, os novos escravos da indústria textil na Etiópia e prostitutas nas montras da Red Light em Amsterdão.
Ponhamos tudo em perspectiva. Afinal de contas a espécie passa e o planeta fica. Está tudo bem. O Benfica até foi campeão.
Espremamos o mundo como se fosse um limão. Já me apaixonei numa praia à meia-noite, já abracei a Lua como se fosse minha e conquistei sozinho o Império impenetrável de um bar de esquina numa cidade sem nome. Foi lá que impus a minha ditadura e gritei ao povo que era proibído ser triste.
Nunca fui deposto mas o povo, composto por uma mulher usada e um empregado de balcão cansado, abandonou o barco assim que o tasco fechou. Cobardes!
Às vezes brindamos ao frio e sabemos que esse momento é nosso. Somos apenas uma gota espremida, sem importância, como o sorriso mecânico dum funcionário do MacDonalds ou a distância incontável duma Estrela distante e sem brilho, mas somos nós. Nós.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

22 abril 2019

«Aveiro» - bagaço amarelo


Há uns tempos, creio que na última vez que te visitei, perguntaste-me o que é que aconteceu entre nós. Eu não estava a contar com essa pergunta, sabes? Foi por isso que parei, para procurar uma resposta algures no nosso passado tão íntimo, e como não a encontrei passei as mãos pelos vários bolsos das calças e do casaco e fingi que estava à procura de outra coisa. Creio que das moedas que vou guardando. Tinha alguns euros perdidos na minha roupa.
Sei que és um vício, um Amor perdido que não consigo esquecer. Afastámo-nos, andei e ando com outras, mas nunca verdadeiramente te esqueci. Não me leves a mal. Acredita que és sempre tu no fundo do copo de cerveja quando ando por aí à deriva, a beber aos pingos o nosso passado e a reciclá-lo em lágrimas escondidas noutras ruas e avenidas que, apesar de longínquas, vão sempre dar a ti. Garanto-te que é assim.
Não me lembro muito bem do exato momento em que nos zangámos. Talvez até nem tenha existido um. Como em qualquer Amor forte, talvez eu tenha fingido sempre que não percebia que a nossa relação se estava a deteriorar. Saía de casa todas as manhãs, cumprimentava-te e agia como se estivesse tudo bem. Desculpa. Acho que foi isso.
Quero que saibas que quando tenho saudades tuas toco-te sempre, esteja eu onde estiver. Sinto-te no vento que dança com os meus cabelos curtos ou saboreio-te num copo de uísque qualquer.
As cidades são um pouco como as mulheres, pá. Há um tempo para o Amor, outro para a Saudade.


bagaço amarelo
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08 abril 2019

«a mulher do táxi» - bagaço amarelo


Uma vez apaixonei-me por uma mulher num táxi. Como não lhe vi a face, do que me lembro é das luzes tristes dos candeeiros públicos da cidade e da estrada a passar por mim da mesma forma que todos os outros Amores da minha vida já tinham passado.
Quando abri a porta de trás para lhe perguntar se me podia levar até ao bairro de Darvenitsa, ela não virou a cara. Disse "da", que em búlgaro quer dizer sim, e fixou o olhar no vidro da frente como se a vida não tivesse mais opções do que seguir por aí, sempre em frente.
Ia a chorar e tinha olhos negros. Mais negros do que a noite, digo. E grandes. Vi-os no espelho retrovisor central durante dois ou três segundos. Por qualquer motivo que não sei explicar, percebi que ela chorava por Amor. Talvez tenha sido o choro, que é sempre diferente dos outros choros.
Todos sabem que chorar por Amor é fazer um pedido à vida, que uma situação se reverta. Depois, como nunca nada se reverte, deixa-se de chorar e olha-se em frente, o único caminho possível. As lágrimas são uma desilusão porque nunca fazem nada do que lhes pedimos, mas pelo menos servem para percebemos a direcção que devemos tomar.
No rádio do táxi passava uma música inglesa da qual me lembro que o primeiro verso era "In the morning I am a recluse lost in memories, ideal situations and convulsions" e o refrão apenas uma repetição da frase "We don't need nobody else".
Quando ela parou o táxi no bairro onde eu vivia, o contador marcava quase dez levs. Dei-lhe a nota por cima do ombro direito dela e as nossas mãos tocaram-se por um segundo. Depois ela amassou a nota como se odiasse dinheiro e a minha mão caiu-lhe nesse ombro como se fosse um floco de neve. Desejei-lhe boa sorte em pensamento, mas tenho a certeza que ela ouviu como se eu tivesse gritado.
Foi nesse momento que me apaixonei por ela. É impossível não me apaixonar por uma mulher capaz de ouvir o que eu penso.
O táxi dissolveu-se na noite enquanto eu atravessava a estrada. Nunca mais a vi.


bagaço amarelo
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01 abril 2019

«pensamentos catatónicos (350)» - bagaço amarelo


Uma das últimas memórias que tenho de Portugal, antes de emigrar, é a de um homem pobre a olhar para uma máquina de venda automática perto de Viseu. Ele tinha fome e era pobre mas entre ele e a comida havia um vidro, ainda por cima transparente.
Eu, na verdade e para além de um pouco assustado, também estava esfomeado. Era a minha viagem em direcção à fronteira para voltar sabe-se lá quando e como. Ia emigrar para tentar resolver o problema da Fome com F grande, mas naquele preciso momento bastava-me comprar um dos croissants mistos da máquina para acabar com a fome com f pequeno. Foi o que fiz, enquanto ele ao meu lado contava algumas moedas na palma da mão como se procurasse um grão de areia entre muitos.
Não me pediu dinheiro, mas ofereci-lhe um euro que me sobrou.

- Obrigado! - disse. - talvez ainda me safe.

Ele não sabe que me lembro dele, nem sequer que me ajudou a apaziguar os meus medos interiores com a frase dele. Aquele "talvez ainda me safe" era precisamente do que eu estava a fugir. Do "talvez" e do "safar". Também dos vidros transparentes que me impediam de ter uma vida digna no país a que chamava meu.
Quando me sentei de novo no autocarro tive finalmente a coragem de olhar pela janela, já que até então e desde que saíra de Aveiro pouco mais fizera do que olhar para os meus próprios pés. Era de Portugal que me despedia, também através de um vidro ainda por cima transparente.
A transparência é uma coisa estranha sempre que nos separa daquilo que precisamos, mas naquele momento ajudou-me. Segui uma estrada esguia que serpenteava os montes envergonhados, ladeada por casas com persianas normalmente corridas, muros altos penteados por cacos de vidro ou arame farpado, automóveis exibicionistas e alguns transeuntes quase sempre sós.
Só na fronteira é que tornei a fechar os olhos. Recuei um pouco de tempo até um abraço quente de um Amor terminado e a sua voz doce a chamar-me do nada.

- Adeus! - pensei.

Sempre que procuramos a saudade vamos dar a uma mulher.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

25 março 2019

«Almoço» - bagaço amarelo


Estávamos a olhar para o céu apenas porque, pela primeira vez desde que nos conheceramos, os nossos olhares hesitavam em cruzar-se. O céu era apenas um refúgio momentâneo, com um azul mais ou menos gasto e alguns farrapos de nuvens solitárias.
Tanto quanto me lembro, ouvi-te a pensar em nós. Depois de um almoço desgastante com turistas franceses que pediram para se sentar na nossa mesa numa esplanada na Vitosha tão cheia como um ovo.
Passaram o tempo todo a falar demasiado alto e a mostrar quem eram. Um jornalista e adepto de futebol, uma estudante de cinema que não gostava de filme nenhum e um outro homem que só vestia fatos de uma marca específica qualquer.
Eles não falavam entres eles, mas sim para quem estava no seu amplo campo de audição. Foi o que eu te disse.
Há pessoas que não conseguem ser apenas pessoas. Têm que ser outra coisa qualquer porque a sua condição humana não lhes chega. Foi o que tu disseste.
Abstraímo-nos do mundo por um momento e olhámos os dois para cima, para onde não havia gente, e percebemos que quando os nossos olhares voltassem ao planeta Terra corriam o risco de se embrulharem como dois páraquedas descontrolados.
Foi assim que comecei a gostar de ti.


bagaço amarelo
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18 março 2019

«pensamentos catatónicos (349)» - bagaço amarelo


O rapaz caiu no meio da estrada. Estatelou-se no alcatrão ao mesmo tempo que gritou. Não percebi porquê. À partida não havia nada que o pudesse fazer cair, mas quando olhei já ele estava no chão, já a mãe corria na sua direcção deixando um saco de compras pelo caminho, já um carro travava a fundo para não o atropelar.
Foram dois segundos em que nada mais interessou para aquela gente. Só a vida.
Eu fechei os olhos para não ver, mas ainda vi mais. O carro não conseguiu parar a tempo e passou por cima do jovem do corpo do rapaz, que passou a ser cadáver. A mãe ajoelhou-se e abraçou a morte em silêncio. O condutor deixou-se estar com as mãos no volante e o olhar no infinito, em estado de choque.
Depois abri os olhos e nada disso tinha acontecido. O rapaz levantava-se devagar e sacudia a roupa com as próprias mãos, a mãe apanhava as compras do chão e o automóvel já passara por mim e desaparecera na primeira curva.
Fiquei parado por um momento. Os dois passaram por mim e pude reparar na força com que as mãos de mãe e filho se agarravam. Era a força de quem precisa de agarrar a vida a si mesmo e acabou de perceber que em alguns momentos não há força que chegue para o fazer.
Continuei a caminhar. Quando te vir de novo vou-te dar a mão com a mesma força, pensei. Só para que entre nós nada morra hoje.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

11 março 2019

«conversa 2197» - bagaço amarelo


Ela - Gostas das novas cortinas da sala?
Eu - Quais cortinas novas da sala?
Ela - As da janela, obviamente. Troquei-as a semana passada. As anteriores eram pretas e deixavam entrar pouca luz...
Eu - Ah! Gosto, gosto...
Ela - A sério que ainda não tinhas reparado?
Eu - Para ser sincero, não.
Ela -É bom saber que posso fazer o que quiser em casa que tu nunca vais ficar chateado.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

04 março 2019

«coisas que fascinam (216)» - bagaço amarelo


O carrinho do supermercado está cheio de caixas de bolachas, algumas de limão e outras de laranja. Também tem algumas cotonetes de plástico e latas de tomate. Acabou de parar perto de mim, conduzido por uma mulher que analisa uma lista de compras num pequeno bloco de papel. Os nossos olhares encontram-se e prendem-se um ao outro por alguns segundos. O observado sou eu, que ela usa um véu islâmico e não posso ver mais do que isso mesmo, os olhos dela.
Ou posso. Na entrada reparei naquelas bolachas em promoção. Meia libra cada uma depois de cinquenta por cento de desconto. Também peguei numa caixa, no meu caso de limão, que está agora num cesto na minha mão esquerda junta com duas garrafas de vinho rosé português, um pacote de queijo fatiado e algumas bananas. Ela fixa as minhas compras e eu as dela.
Quero comprar fiambre, mas o carrinho dela não me permite chegar às embalagens que eu costumo consumir. Já lhe pedi em inglês para se afastar um pouco, mas ela não se moveu nem um milímetro.

- Could you, please, step aside so I can have a pack of ham?

Está ali parada a olhar para mim e a sorrir com a minha ginástica para chegar ao fiambre.Canso-me da situação e peço novamente, desta vez em português.

- Por favor, afaste-se. Preciso chegar ao fiambre.

Ela afasta-se, sorrindo ainda mais.

Lá fora estão seis graus, uma temperatura bastante amena para esta altura do ano mas, ainda assim, a precisar de agasalho. Ponho o meu saco de compras no chão para poder apertar o casaco e vejo-a novamente. Vai no banco de trás de um táxi e diz-me adeus com uma das mãos.
Quem é aquela mulher e como é que, pelo olhar, eu concluí que ela estava a sorrir?


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

25 fevereiro 2019

«respostas a perguntas inexistentes (380)» - bagaço amarelo


Sempre tive este prazer com o café. Antes de o beber abraço a caneca fumegante com as duas mãos e aqueço-as. Pensando bem, talvez seja por isso que me habituei a gostar de países frios, pelo prazer de me aquecer.
Ela está a espreitar pela janela da cozinha na mesma posição de sempre. Tem os olhos grandes e abertos, que praticamente não piscam. Seja lá o que for que está ver não cabe em olhos semicerrados. Tenho até a sensação que olha sempre para o mesmo ponto lá fora, provavelmente a árvore do jardim.
Dou o primeiro gole e aqueço mais as mãos.

- É o nosso jardim. Está sempre igual. - digo-lhe.

Ela não desvia o olhar nem o pensamento.

- Não, não está. A árvore já foi verde, já foi vermelha e agora não tem folhas. Tudo mudou.

É então que me apercebo que ela não está a olhar para o espaço, mas sim para o tempo. É claro que não podia caber em olhos semicerrados. O tempo só entra em olhos bem abertos ou bem fechados.

- Queres que te faça um café? - Pergunto.

Alguns pássaros pousam na relva. Vêm comer o resto da comida que quase todos os dias damos a alguns gatos vadios que nos costumam visitar pela manhã. Ela não desvia o olhar.

- Não, já sabes que não gosto do teu café instantâneo mas, por favor, nunca pares de me perguntar. - Sorri.

Dou outro gole. Fecho os olhos para procurar nesse tempo a improbabilidade que nos permitiu partilhar esta manhã. Não a encontro, mas sei que está lá e é tão esguia como a nossa história. Talvez tudo deva ser apenas exactamente assim: um mero acaso.

Ela sai e afasta-se. Eu termino o café. As minhas mãos estão quentes. É por isso que gosto de países frios.


bagaço amarelo
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15 julho 2018

«Talvez a morte seja apenas um vidro entre nós» - bagaço amarelo


"Quero estar sempre perto de ti", disse ela. Depois tocou-me com a ponta dos dedos. Nesse preciso momento, do outro lado da rua, uma criança caiu enquanto corria e começou a chorar, um homem pequeno e magro discutia em árabe ao telemóvel e um automóvel estacionou a uns cinco metros de distância de mim.
Apeteceu-me correr para a criança e abraçá-la. Ficar perto dela enquanto a dor da queda lhe permanecesse latejante na carne e na alma, mas o pai antecipou-se.
Fiquei a pensar no que raio será isso de estar perto de alguém. E se a S. estivesse perto de mim a vida toda mas com um vidro a separar-nos? Continuaríamos perto, mas os nossos dedos não se poderiam tocar de novo. Estaríamos suficientemente perto?
O homem pequeno e magro está a discutir com alguém que está longe, mas pela intensidade da voz percebo que é uma discussão olhos nos olhos entre duas pessoas que não se podem ver. Não sei árabe, mas por qualquer motivo adivinho que falam de Amor, talvez entre dois corpos que se apaixonaram no passado e agora não sabem como enfrentar uma vida onde o Amor se esvaiu como se evapora a água da chuva: devagar e sem que ninguém dê conta.
Toco de novo a S. com a ponta dos dedos. O forte calor que se faz sentir em Inglaterra faz-nos suar pelo simples facto de estarmos na rua. O suor é, apesar da vontade de estarmos juntos, a maior prova de que estamos vivos. É sempre a carne que demonstra vida. Não a alma.
A M. partiu, disseram-me. Morreu, para estar mais perto da verdade. Estou triste e mergulhado em mim. Talvez seja apenas isso, penso: deixou de poder suar em dias de Verão como este.
A S. pergunta-me se estou bem. Que sim, respondo.
A criança já deixou de chorar e está ao colo do pai. O homem que discutia em árabe ao telefone calou-se e desapareceu na primeira curva da rua. Uma mulher sai do carro e caminha na minha direcção. Entendo apenas à segunda que me está a perguntar se o museu da Indústria fica perto. Que sim, respondo. Indico-lhe a direcção.
Talvez a morte seja apenas um vidro entre nós. Continuamos perto mas sem nos tocarmos na ponta dos dedos. Se for assim, fica bem!

À MAV. Até sempre!


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

08 julho 2018

«de onde é que eu sou?» - bagaço amarelo


Ela perguntou-me de onde sou enquanto fazia o troco da pint de Guiness que acabara de me servir. Não que eu me importe de responder a essa pergunta, até porque sei que normalmente serve apenas para dizer qualquer coisa quando não se tem nada mais para dizer, mas fiquei em silêncio durante algum tempo por não saber exactamente o que responder. Foi a primeira vez que hesitei perante a pergunta do costume. Pensei que talvez não já não saiba exactamente de onde sou.
Desviei o assunto e disse-lhe que não sou um grande adepto da grande maioria das cervejas britânicas que tenho experimentado. Normalmente parecem-me demasiado parecidas com água, talvez pelo facto de quase não terem gás e o teor de álcool médio ser bastante baixo. Com excepção da Guiness, claro, que é mais consistente e por isso bebo sempre com prazer.
Para além de nós e de um grupo de quatro homens silenciosos esquecido numa mesa com copos vazios, não havia mais ninguém. Olhei à minha volta e pareceu-me que o silêncio do pub estava ali há pelo menos cem anos. Talvez tenha entrado uma vez há muito tempo para se esconder do ruído das ruas de Newcastle Under Lyme e nunca mais tenha tido a coragem de sair. Entretanto o tempo passou lá fora, mas não lá dentro.
Só podia ser essa a explicação para o que estava a acontecer: o respeito pelo silêncio secular. A mesma mulher que me perguntara de onde sou, sem obter uma resposta concreta, preparava-se agora para dizer algo mais mas as palavras não lhe saíam da boca. Era como se fossem a massa de um bolo que teima em não crescer no forno.
Pousou algumas moedas junto à minha cerveja, uma por uma, e depois tornou a olhar-me nos olhos. Agradeci-lhe e devolvi o olhar. Era bonita, talvez com mais uma dezena de anos do que eu, mas o que mais lhe notei foram os gestos. Não pertenciam ao seu corpo, isto é, eram joviais mas vinham de um corpo que estava provavelmente a fazer quase sessenta anos de existência. Eram leves, certos e delicados, traídos apenas de vez em quando por um curto tremer dos lábios.
Quando percebi que talvez estivesse a ser demasiado invasivo, tornei a permitir que os meus olhos esvoaçassem por aquele local sepulcral. Uma das fotografias na parede representava o rosto de alguém que, devido à evaporação duma boa parte dos sais de prata do papel fotográfico e do seu tom amarelecido, mais parecia um fantasma. As madeiras das paredes revelavam um esforço contínuo para suportar o peso do edifício e a luz do Sol varria lentamente o espaço.
Quando olhei para a porta da entrada, a mesma mulher que me servira a cerveja que ainda ia a meio entrava com um ar rejuvenescido. Eu, que nem tinha percebido que ela saíra, limitei-me a pensar que agora sim, os seus gestos e movimentos lhe pertenciam totalmente.
Tirou uma half pint para ela, não de Guiness mas duma outra cerveja qualquer, e brindou com o meu copo em repouso no balcão.

- Cheers! - disse.

Sorri-lhe.
Aquela mulher está ali há quase tanto tempo quanto o da vida dela. As viagens que fez foram sempre através dos seus clientes, esses de quem ela acaba por se esquecer de onde vieram ou para onde foram e depois os outros, aqueles que se repetem todos os dias num qualquer escaninho do bar. O facto de eu não lhe ter dito de onde sou despertou algo nela por um momento. Talvez a importância de quem, como eu, ali passa de vez em quando para beber um copo e troca duas ou três palavras com ela.
O que ela despertou em mim, certamente, foi recuperar a importância por um momento perdida de saber de onde sou.
Não foi ela que me disse. Foi o silêncio.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
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Com este, são 685 textos do Ivar Corceiro que ele, desde 2011, me autorizou a reproduzir do seu blog, que considero ser de leitura obrigatória para quem desejar a utopia de conhecer as mulheres... a começar pelas próprias mulheres.
Obrigada por tudo, Ivar. E estarei atenta para regressares a este nosso blog, caso voltes a publicar os teus preciosos textos desta temática.

01 julho 2018

«só para eu poder entrar» - bagaço amarelo


Fiquei parado alguns segundos na porta de entrada do edifício. A mulher que acabara de passar por mim, de alguma forma fora-me familiar. Foi como se a conhecesse há muito tempo de vista, apesar dos seus olhos claros e o tom de pele primaveril deixarem perceber que era inglesa e, por isso, o mais provável era nunca nos termos visto antes.
Ela olhou-me durante dois segundos, mas depois escondeu os olhos no chão enquanto segurava a porta para eu poder entrar. Obrigado, disse-lhe. Acontece-me frequentemente ter a sensação que conheço pessoas de vista mas que, depois quando penso melhor, o mais provável é nunca me ter cruzado com elas.
Nunca encontrei uma explicação para tal nem, em abono da verdade, me preocupei com isso, mas uma vez uma amiga disse-me que acredita que isso acontece por transferências de energia entre as pessoas. Não percebi bem o que ela queria dizer, mas lembro-me que concordei só porque não me apeteceu discutir um assunto que me fugia do controle.
A verdade é que estava pela primeira vez na minha vida naquela zona de Manchester e, como tal, essa sensação de conhecer alguém de vista não podia ser muito mais do que uma criação do meu cérebro, mais provavelmente do meu subconsciente.
Só estava ali para comprar uma miniatura automóvel em segunda mão que vira num anúncio de internet. Como tinha a vontade de conhecer uma cidade que, mesmo assim, ainda hoje me é estranha, dispus-me durante as trocas de emails com o vendedor a ir pessoalmente a casa dele comprá-la.
O edifício era velho por fora e novo por dentro, como se fosse um homem de muita idade com uma enorme vontade de viver mais uns anos. As rugas podem chegar, mas por dentro nunca ninguém sabe o nosso verdadeiro estado. Pelo menos foi esse o meu pensamento, que também surgiu porque alguém me disse que eu era como uma criança, assim que soube que eu ia fazer uma deslocação de 70 quilómetros para comprar um brinquedo.
Quando finalmente entrei no elevador, carreguei três ou quatro vezes seguidas no quinto andar, como se assim pudesse subir mais depressa. Mas não pude. Nunca se pode. Os elevadores andam sempre à mesma velocidade e não obedecem à nossa vontade. É uma boa lição, esta que os elevadores nos dão. Se nos queremos manter joviais por dentro, há que não ter pressa de viver.
Um homem com uma barriga desproporcional e uma t-shirt suja, provavelmente da minha idade, abriu a porta do apartamento C. Perguntou-me se eu estava pelo hot wheel ou pelo Transformer. Hot Wheel, respondi. Dei-lhe cinco libras e ele passou-me para a mão uma miniatura que examinei minuciosamente só para fingir que percebia alguma coisa do assunto. Okay, disse-lhe, e virei costas.
Outra lição que os elevadores nos costumam dar é a da lei das probabilidades poder estar contra nós. Assim que me preparava para abrir a porta alguém o chamou nos rés do chão e perdi a boleia. Não tive outro remédio senão esperar que ele subisse de novo. Desta vez só carreguei uma vez para o chamar.
O vendedor ainda estava à porta a olhar para mim. Não nos conhecemos de algum lugar? Perguntou. Não, sou português. Foi o que lhe respondi enquanto tentei perceber se ele me era familiar a mim. Não era.
Passeei uma tarde inteira pela cidade, sem pressa de chegar a lado nenhum nem vontade de ter chegado. Falei de futebol com um desconhecido num pub de esquina enquanto bebi duas pints de Guiness. Depois passei o resto da tarde a trocar impressões com os edifícios que me iam observando de soslaio enquanto caminhava no meu segredo.
Dou-me conta de que não sou ninguém enquanto me perco nos outros. Os outros, aqueles com quem me cruzo agora como se já alguma vez me tivesse cruzado no passado para poder acreditar que, talvez num futuro distante, me torne a cruzar da mesma forma e, por pura sorte, uma mulher bonita segure numa porta durante dois segundos só para eu poder entrar.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

24 junho 2018

«coisas que fascinam (215)» - bagaço amarelo


Hoje estive profundamente apaixonado por três minutos. Uma mulher que seguia à minha frente uns bons metros, numa das despovoadas ruas de Stoke, segurou a porta do bar onde ambos entrámos e esperou por mim. Agradeci-lhe o gesto e trocámos algumas palavras simpáticas. Depois separámo-nos, provavelmente para sempre. Eu fui para o balcão sozinho e ela foi para uma mesa onde tinha alguns amigos à espera. Não tornámos a falar.
Os três minutos não interessam. Interessa que me apaixonei mais uma vez para sempre. Se esse Amor eterno durou apenas três minutos, não é importante. Já me aconteceu o mesmo com outros Amores. Um durou dezoito anos, outro sete, outro talvez uns dois. Sei lá. Importa-me que me apaixono sempre para sempre, mesmo quando sei que se trata de um Amor impossível de apenas alguns minutos.
De certa forma, foi assim que aprendi a sobreviver à vida, apaixonando-me a cada momento como se fosse a última vez e, vá lá, também a primeira.
Ao balcão pedi um Tullamore Dew duplo sem gelo. Bebi-o exactamente como tenho bebido a vida, em goles tão doces e pequenos quanto possível. Talvez uma porta possa decidir se a pessoa com quem nos cruzamos é, ou não, compatível connosco. Sei, por exemplo, que nunca me apaixonaria por uma mulher que me fechasse a porta na cara, apenas porque preciso de pessoas que se lembrem que as outras pessoas existem.
Nesta vida de emigrante e solidão que vou levando, todas essas pessoas que me consideram em pequenos gestos se tornaram tão importantes quanto um Amor de curta duração.
É só um exercício. Durante o ano que vem mantenham a porta aberta a quem vem atrás de vocês. talvez possam viver um intenso e secreto Amor de três minutos.


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17 junho 2018

«respostas a perguntas inexistentes (379)» - bagaço amarelo


Eu e o Vento

A noite embrulhou-me em silêncio. Saí do trabalho e continuei a caminhar sem destino, como um barco à deriva num mar sem vida. Era assim que estava a cidade, quase morta. Mas tive sorte, encontrei um pequeno sinal de vida no vento que, tanto quanto percebi, também estava sozinho.
Ainda bem. É sempre bom ter alguém com quem falar e nada como ele, que nunca põe em dúvida o que dizemos, para dar dois dedos de conversa.
Sempre acreditei que somos incapazes de mentir aos outros, mas mentimos muito facilmente a nós mesmos. Só o vento é que tem essa noção e, talvez por isso, seja um dos meus melhores amigos.
Esta noite, por exemplo, falámos de Amor. E ele concorda comigo no essencial. A palavra é de desconfiar. Fala-se de Amor como se fosse uma coisa qualquer. E não é. Eu já vou em quase cinco décadas de vida e, tanto quanto me lembro, disse essa palavra a três mulheres. Bêbado, claro, que é o conta. Em estado sóbrio terei dito mais vezes, mas todos sabemos que a sinceridade é filha da bebedeira.
Quando se diz a palavra Amor a muitas pessoas, então nunca se Amou ninguém. Foi ele que mo explicou, o vento, que também me pareceu estar um tanto ou quanto embriagado. E eu acreditei.
Dividimos a dor e o prazer de não sermos nada nem coisa nenhuma. Isso e uma garrafa de vinho barato, claro. Afinal de contas andamos os dois sempre a contar os trocos como se fossem cada um dos momentos do tempo que passa.
Nada disto interessa muito, claro. Foi apenas mais um conversa entre dois amigos de longa data que partilham o facto de nunca terem pedido a nenhuma mulher que os continuasse a Amar para além do Amor. E é por isso que de vez em quando nos cruzamos os dois num ponto qualquer do planeta, nos sentamos no primeiro local aprazível e discutimos o mundo como se fosse possível entendê-lo.
Sou eu e o vento.


bagaço amarelo
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10 junho 2018

«sem título» - bagaço amarelo


Às vezes lembro-me dela só porque o vento sopra. Não há outro motivo. Caminho pelas ruas desertas da cidade e o vento vem tocar-me. Às vezes faz-me uma festa no cabelo, outras vezes dá-me a mão fria e de vez em quando até me abraça. Ela também era assim. Tinha o mesmo toque frio do vento, mas que tanto me aquecia.
Lembro-me que uma vez lhe disse exactamente isso. Caminhávamos numa imensa avenida e ela deu-me a mão. Sei que sorriu, embora não lhe tenha visto os lábios. Tens a mão fria, disse eu. E ela tirou-a. Podes deixar, está fria mas aquece-me. E ela tornou a sorrir e eu tornei a não ver.
É assim que agora me lembro dela, aquecido pelo vento frio que sopra devagar nas ruas duma pequena cidade inglesa. Caminho junto a um canal de água durante a noite e tento não acordar os barcos com o barulho dos meus passos. A noite vai um pouco amarga e as minhas memórias vão tão doces.
Uma vez, já não sei quem disse-me que o Amor morre facilmente com a distância do espaço e a largura do tempo. Talvez até tenha sido eu mesmo, e agora o vento vem dizer que me menti.


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03 junho 2018

«respostas a perguntas inexistentes (377)» - bagaço amarelo


Dedos

Estava a falar com a M. ao telefone. Já estivemos apaixonados um pelo outro, mas nunca ao mesmo tempo. Por isso mesmo, aquilo que existe entre nós é uma amizade profunda e, quando olhamos para o nosso passado, é também um desencontro.
Falámos sobre esse desencontro uma vez no sofá da minha casa, depois de vários copos de vinho e um enorme chocolate com passas que fomos comendo devagar. Não sei porquê, mas lembro-me muito bem desse chocolate. Quase que lhe posso sentir o sabor, apesar dos anos que já se passaram. Ela começou a comê-lo por uma das extremidades e eu pela outra, quadradinho a quadradinho. Quando chegámos aos dois últimos pedaços os nossos dedos tocaram-se e, por impulso, acariciaram-se. Lembro-me tão bem do intenso sabor desse toque indelével.
E então hoje liguei-lhe. Ela ficou surpreendida, claro. Há muitos anos que não ouvia a minha voz. Nem eu a dela. Fiquei aliviado por não me perguntar porque é que eu lhe estava a ligar. Sempre que me perguntam isso, a vontade que tenho é desligar o telefone imediatamente. Gosto de amigos a quem posso ligar só porque sim, sem precisar de um motivo técnico qualquer.
Ainda assim, se ela me tivesse perguntado, eu tinha a resposta na ponta da língua. Hoje caminhava em Stoke junto ao Trent & Mersey, um dos dois canais que atravessam a cidade, numa zona onde o cais é tão estreito que é muito difícil duas pessoas passarem uma pela outra sem se tocarem. Foi isso que aconteceu. Por acidente, os meus dedos tocaram nos dedos duma mulher que caminhava no sentido oposto. Pedi-lhe desculpa e ela respondeu "no problem", mas ainda antes de ela ter acabado de dizer a palavra "problem", já esse doce e adormecido toque nos dedos da M. tinha despertado em mim como um urso que termina a hibernação.
Lembrei-me dos dedos dela e do sabor desse chocolate que dividimos há mais de uma década. Essa carícia ficou-me gravada na memória como uma pequena tatuagem no corpo de um gigante, talvez porque tenha sido a forma de eu perceber por uma pequena fracção do tempo, como seria se nos tivéssemos apaixonado em simultâneo.
Sorri à mulher e continuei a caminhar. Ao chegar a casa telefonei à M, para lhe perguntar isso mesmo: se por acaso ela se lembrava desse nosso entrelaçar dos dedos, mas a conversa perdeu-se no nosso passado da mesma forma que eu me perco a caminhar sem destino nesta cidade.
Não perguntei.


bagaço amarelo
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