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01 maio 2008

A casa das Bonecas

por Charlie

Gostava que a tratassem por Betty.
Com dois tês, como enfatizava assim que disponibilizava o nome, quer a pedido quer a título de apresentação, mal pressentia que o lance da iniciativa lhe era favorável.
Pairava pela Casa das Bonecas, situada numa pequena elevação que sobressaía no meio da névoa, do bosque de cogumelos e cerveja fresca, de noites escuras cinza marcadas pelas cores reflectidas em laranja e amarelo-girassol.
À entrada, um Ás de Copas. Não o do conto, mas uma carta em ponto grande que preenchia quase totalmente a metade cimeira do exterior da porta. Um coração estilizado de múltiplas leituras fazia a figura central. E mesmo na confluência das duas aurículas, um dos traços prolongava-se quase até ao meio onde terminava numa alusão a um dorso feminino de nádegas para o ar, mas que o avançar do olhar rapidamente lia como a parte inferior duma glande, terminando numa evidenciadora gota por onde um olho espreitava antes que a passagem ao visitante fosse franqueada.
- A Betty está ali. – Ouvi com agrado o Porteiro, um matulão, de ombros largos e angulosos, estilo caixa de jogos de Dominó. Um indivíduo com enganadores ares de eunuco, mas a quem eu já vira com dois Valetes de Espadas pendurados pelo colarinho, a serem atirados para fora do baralho, no meio do tremendo aviso de que na próxima vez teriam como castigo o serem rasgados em quatro!
Entrei e, devagar para me habituar à doce iluminação, dirigi-me à sala onde um murmurar ameno mostrava um momento bem frequentado.
Sentados num sofá e em dois cadeirões anexos tendo uma mesa com aperitivos e bebidas pelo meio, estava a Betty e a Barby, a Dama dona da casinha, o Rei - já velhote e de uso reservado à bisca lambida - e finalmente, um figurão que nunca tinha visto parar por ali.
- Vem!- Disse a Betty, minha já velha conhecida. – Anda aqui e junta-te a nós!-
Sentei-me após ter-me apresentado numa rodada breve de acenos de cabeça onde repeti duas ou três vezes o meu nome. Reservei um momento mais intimo para as duas bonecas com um beijo na face e sentei-me tentando decifrar o gosto que me ficara nos lábios. Pensei um pouco e, em voz baixa apenas o quanto bastasse para se ouvir por cima da música ambiente, disse para a Betty:
- Celofane?...- Andaste a pôr celofane?- Deu-me a resposta entre um riso meio nervoso, e acenou para o novo frequentador do espaço.
- Foi ele, fofura. Chegou hoje e ainda vinha embrulhado. Pediu-me que desfizesse a embalagem... assim como eu sei fazer. Entendes? Com a língua e os dentes a ajudar as mãos, entalando bem entre as pernas enquanto puxava, puxava....-
Mudou a expressão do rosto numa toada de reprovação e comprimindo os lábios num beijo seguiu:
- Não fiques assim com esses ciúmes. Sabes como detesto quando te pões assim, e sabes como sou. Sempre soubeste que não sou de uma só e carta nem dum só baralho, não é fofura? –
E beijou-me num abraço à volta do pescoço enquanto se sentava ao meu colo. Mas quase de imediato e num assomo repentino, levantou-se e disse:
- Vou preparar a tua bebida favorita. - E em dois saltos desapareceu de sorriso largo e leve para a passagem ao fundo da sala que dava para o bar.
Ao meu lado, quase no mesmo instante, o novo frequentador veio sentar-se no lugar deixado vago pela Betty.
- Não cheguei a dizer o meu nome. - Avançou de imediato enquanto senti a sua perna encostar-se à minha.
Desviei-me um pouco no sofá, gesto que ele acompanhou encostando-se ainda mais.
- Não estou a perceber.- disse-lhe já com um ar incomodado,- Se bem me lembro da conversa tida ainda agora com a Betty, ela desfez-lhe o embrulho da forma que se supõe natural entre uma boneca e uma carta que se preze. Peço que me desculpe, mas...-
- Ah! - interrompeu ele de mão esticada.
- Perdão! Devia tê-lo feito primeiro.
Mas... continuo sem ter dito o meu nome.
Dou para qualquer cartada, qualquer jogada.
Tenho um espectro largo de valor.
É este o meu meio.
Tanto valho tudo como nada. –
E pegando-me na mão que eu tentava afastar terminou num sarcasmo demolidor:
- Sou o Joker, ao seu dispor...-

Charlie

24 abril 2008

A Saudade

por Charlie

Quando subia a Avenida da Liberdade, pelas faixas laterais direito à rotunda que cerca o Leão e o Marquês, era usual vê-la de saia invariavelmente curta, quase sempre de negro mate, mastigando o tempo nas dentadas com que embrulhava de pastilha elástica os lances de aborrecimento que a sua espera no passeio me parecia ser.
Ficava a olhar para ela, o corpo bem torneado, o cabelo meio curto e um olhar que se desviava numa pausa voltando-se depois a mim numa exploração rápida e incisiva que desta feita fazia desviar o meu, rumo mais acima.
Gostava de fazer o percurso a pé nos primeiros dias da Primavera, deixando o carro no parque dos Restauradores, entregando depois aos músculos e à sensação de ar livre, passo a passo, a tarefa de vencer a distância sobrante.
No entanto, quando por razões diversas tinha de levar o carro até ao destino final, dava por mim a fazer a volta apenas para que pudesse passar junto a ela. Coração a bater mais depressa, ansiando o instante em que me olhasse bem dentro desse olhar que eu desviaria num misto de euforia e angústia que não conseguia explicar.
Passava a mirar pelo canto do olho, carro de caixa engatada em segunda velocidade, rodando devagar de mãos em ilusão de segurança presas ao volante.
Seguia-a pelo retrovisor enquanto ela ora subia, ora descia o passeio da Avenida, ficando cada vez mais pequena, mais distante no rectângulo espelhado que acabava, num reflexo, por absorver toda a cidade no nada que é um poema fugidio de palavras breves.
Foi numa manhã ao sair de casa, e sentado no carro numa pausa para reflexão onde assumi que vê-la todos os dias me era já imprescindível.
Nessa manhã, num impulso consciente e após um instante de hesitação, alterei o que era já a rotina. Travei! Deixei que os olhares se cruzassem, que se fixassem na leitura. Muda e secreta, intensa de sol que enchia a Lisboa que eu amo.
Atravessou os breves metros e dirigiu-se a mim, sempre de olhar fixo.
Inclinei-me para o lado direito no gesto de abrir a porta, o que ela sem uma palavra entendeu, contornando o carro e acabando por sentar-se ao meu lado.
Olhei para ela, para as suas pernas bonitas mostrando no interior da coxa direita o fio violeta-reflexo dum pequeno derrame capilar que quase passava despercebido. Subi o olhar, a cintura, os peitos pequenos e firmes, o brilho da boca e parei novamente o olhar no seu.
- Gostas?- Perguntou ela no seu ar de puta de rua, de olhos grandes e lindos, quase infantis que eu agora via bem junto a mim.
- Se gosto? – respondi devagar. – Tu sabes... passo por aqui todos os dias e... todos os dias fico a olhar para ti. És muito bonita...-
Fiquei olhando para ela que desviando o olhar fitava agora algures um alvo indefinido, muito para lá do sítio onde a Avenida se abre e entrega em rotunda, mais avenidas e Parque, e azul do céu a perder-se no infinito...
- Nunca tinha reparado em ti.- mentiu ela. Pelo menos foi o que pensei.
Mentiria? Caí na realidade. Obviamente! Seria idiotice minha julgar que uma puta de rua ficasse a olhar só para mim.
Claro. Que estúpido que eu sou. É natural que ela olhe para todos os que passam. É seu ganha-pão e o olhar para os potenciais clientes bem dentro dos olhos é o primeiro contacto comercial após o lance publicitário consubstanciado na linguagem do corpo exposto nesse jogo do esconde-que-mostra, da roupa curta e justa, dos gestos, da postura....
- Para onde vamos?- perguntei a romper o desconforto para onde tinha deixado correr o pensamento.
- Para onde quiseres- sorriu- Posso passar o dia contigo, almoçar, conversar, passear...-
Avancei devagar avenida acima, voltando à direita entrando assim no emaranhado de ruas que circundam as Avenidas Novas.
- Como te chamas?
- Saudade...- respondeu parecendo querer acrescentar algo mais.
- Não é um nome usual. - Cortei interrompendo-a. - Vocês costumam usar outros nomes. Sei lá, diminutivos sonantes que se ouvem na noite, como ...- Não me deixou acabar a frase.
Num irromper brusco mandou-me parar.
- Pára aqui, Carlos! Pára, ouviste?! Saudade é o meu verdadeiro nome, entendes? O meu verdadeiro nome...- e abrindo a porta ainda me disse lívida: - Vocês, homens... são todos uns... uns sacanas! – E saiu sem mais palavra.
Durante um espaço de tempo indefinido fiquei sem reacção dentro do carro.
Ela tinha dito o meu nome. Sabia o meu nome e Saudade era o seu verdadeiro.
Saudade...
Durante semanas não voltei a passar por ali, as noites em claro, vencendo em cada derrota a luta interna que me atirava, dum lado para outro, contra as paredes desse poço onde de repente tinha ficado mergulhado, até que vencido pelos meus limites decidi voltar a procurá-la.

Passei lá hoje mais uma vez.
Há quase vinte anos que o faço, há quase vinte anos que o coração me bate mais depressa quando subo a Avenida e passo ao mesmo lugar onde ela a atravessou para se sentar ao meu lado.
Há quase vinte anos que não a vejo naquele passeio.
E há quase outros vinte que a Saudade mora comigo...

Charlie

10 abril 2008

Despertar em ti

Foto: daqui


Há um dia
em que o sol
a romper o horizonte,
resume toda a eternidade
na espera desse instante
para o qual foi programado.
Esteiras de fogo estendem-se até à praia
e o dia já não existe mais,
Todo o corpo é pasto do mar
e as estrelas sabem
que são a areia do céu
perdidas em brilhos
sob o suave toque duma mão.

E das ondas que remansam,
quentes na pedra fria dos corpos,
sobe um fio do olhar...
Finam-se em gotas
os restos de lua.
E tudo sobra
Nos lábios
onde o horizonte
se afoga no sonho dos lagos...


________________________
O Falcão dá-lhe com o verdasco:
"Ouve lá ó Charlie, meu caralho! Tu andas bem, foda-se?! Mas que caralho de poesia é esta? Vá! Toma lá uma e aprende, caralho!

Aqui há atrasado,
quando ia pró pinhal
Encontrei uma cachopa
Filha do Toino. Sabeis; a tal.
Tinha farta pintelheira.
Mas é coisa do passado
Desde que dum dia foi ao Porto,
Veio de lá com o pito rapado.
Deu-me certa confusão
Logo na primeira vez
Mas depois de a papar
E tornar o pito comer
Já me dá o tal tesão
que tinha de antemão,
quando o pito era de ver.
E lá fomos pró barraco
onde tenho um belo pipo
A chouriça é por lá mato
A broa intão, nem lhes digo,
O esperar, é um castigo
e logo pimba, dei-lhe o trato.
Foi um pingo de verdasco
e dentada em gosto de fumeiro
depois da broa ter sido primeiro,
repetiu-se a rodada
e foi foda bem mandada
no sofá que era braseiro
E é disto que o Falcão gosta
Dumas fodas do caralho
E não de coisas que apostam
em lagos, luas, sol e lagos

Ora toma lá e aprende, cum filha da puta, caralhos te fodam e refodam, ó Charlie do caralho."

01 abril 2008

A aula de Filosofia

por Charlie

... perfeita, até nos seus pujantes vinte anos de peitos perdidos por entre os cabelos...

- Assim falou Zaratrustra...- Avançou e olhou para o fim da sala de olhar fixo num ponto indefinido algures na parede oposta.
Aprendera, sob a capa austera de docente, a ver para além do olhar, a prender a atenção num ponto periférico da sua visão, desta feita numa quase tangente às pernas lindíssimas daquela aluna.
Em silêncio, de ponteiro na mão dilatou um pouco a pausa enquanto deixou percorrer o pensamento todo em mãos pela saia curta de cor clara onde o bronzeado leve das pernas morreu de repente no fechar de olhos e no retomar do discurso:
- Deus está morto! - Disse de voz bem entoada, certo do impacte que a sua forma de exprimir-se tinha sobre quem a sua voz escutava. - Antes de avançarmos, pergunto se sabeis, se incorporastes o significado do nihilismo, ou niilismo, tanto faz ...-
Poisou o giz com que acabara de escrever as duas palavras e rodando o corpo que passeava muito devagar pelo estrado, desceu-o, avançou um passo por entre as carteiras, parou e fixou desta fez o olhar na dobradiça inferior da porta da sala de aulas numa linha de visão que passava novamente a poucos centímetros dos joelhos de Carla. Como era linda! Perfeita até, nos seus pujantes vinte anos de peitos perdidos por entre os cabelos, que descendo sobre os ombros, mais ainda realçavam o seu volume.
- O nihilismo, do Latim nihil, que significa nada, é uma corrente de pensamento que....- Esperou um pouco na mira de que do murmúrio da sala saísse a resposta esperada e continuou: - .... o niilismo, entendido vulgarmente quase como sinónimo de Friedrich Nietzsche, faz do existir Humano algo que resulta do aleatório na evolução da vida e totalmente desprovida de sentido, de plano Divino, ou de valores transcendentais resultantes do pensamento, tal como a beleza, os valores imateriais ou até, mesmo sendo uma corrente filosófica, a própria filosofia.
Não é verdade, menina Carla? - Disse de repente estacando o seu passeio em frente às carteiras ao mesmo tempo que rodava o corpo de forma a ficar bem em frente a ela, engolindo dum só sorvo todo o seu olhar. Do plano superior de onde os seus olhares se cruzavam, surgia engrandecido. Duas luas enormes a olhar para cima onde por sua vez o seu olhar, a descer sobre ela, se perdia por entre estrelas.
-... Sim... concordo. - respondeu a aluna...
Sim o quê?! - Disse num avanço mas voltando-se de subitamente num breve e quase imperceptível sorriso.
Sem esperar pela resposta continuou e pediu para abrirem na página que tinha escrito no quadro. – Abram o livro e sublinhem estas palavras que vêem indicadas a seguir ao número da página.
Assim falou Zaratustra! Quero que me tragam na próxima aula uma explanação sobre os conceitos que sublinharam. Claro que não é preciso dizer que têm que ler o texto e os apontamentos que lhes ditei desde o princípio da aula.
A campaínha tocou.
- Podem arrumar os livros e sair.
Ah... menina Carla, precisava de falar consigo...-
Sorriu e mirou uma vez mais para as suas pernas enquanto, a morder ao de leve os lábios, anteviu o prazer que iriam sentir juntas as duas mulheres...

Charlie

18 março 2008

Uma pedra na calçada...

por: Charlie

Já tinha perdido o conto às vezes que passara àquela rua. Um mero passo de passagem entre um qualquer ponto de partida e um outro lugar de destino de chegada indefinida. Tal como no anonimato dos amorfos viajantes, de sono ainda em cansaço, dissolvidos nas manhãs-madrugadas em comboios suburbanos. Deixam que sejam os rostos e paisagens a passar vorazmente pelas janelas das suas interiores quietudes. Assim, quando a atravessava, era aquela rua que passava por mim e não eu por ela.
Não lhe conhecia, nos anos iniciais, mais do que a vaga impressão da placa toponímica, de cujo nome nunca me recordava e, mais tarde, duma particular pedra de passeio onde uma distracção me levara um sapato a fazer companhia ao seu par, ainda em bom estado, rumo ao desprestigiante final na indiferença dum contentor de lixo.
E foi nesse dia que reparei, pela primeira vez, naquele cortinado a esconder subitamente o que eu adivinhara ser a persistência dum olhar. Fixei o ponto, a casa, o número da porta e olhei pela primeira vez para um fio de ferrugem com que as escorrências da ferragem tinham tingido a pintura da varanda.
- Nunca pensaste, quando das centenas de vezes que pisavas as pedras desta rua, que ficavas cada dia mais e mais aqui? - Disse ela ajeitando o lençol que cobria os nossos corpos suados. - Que embora passasses como se nada mais existisse senão o teu destino, ela já não era a rua que se tinha tornado nos dias em que não a atravessavas? Que quando desaparecias ao fundo dela ficava o vazio do dia ansiando pelo teu regresso?-
Calei-me pensando como vivemos fechados nos nossos invólucros, nos nossos universos que julgamos projectados ao infinito. Perfeitos até nas inúmeras imperfeições com que arquitectamos os valores que nos orientam e como passamos a vida olhando a partir do nosso ponto de observação para a grandeza do céu como se ele fosse só um e apenas o nosso. Como se o brilho de cada ponto fosse apenas um ponto do nosso universo e não universos dos quais somos apenas um ponto...
Levantei-me e atrevi-me, na nudez da manhã que despertava, a olhar para a rua vazia.
Encostado à varanda olhei para a ferrugem que teimava em reaparecer.
Senti de súbito a suavidade da sua mão no meu ombro e o calor da face no outro. Olhei para o extremo oposto da rua, para o vermelho do céu, e, em retrospectiva, para a adrenalina do dia em que entrara na sua casa pela primeira vez. Dos beijos ardentes, dos corpos em delírio, da noite feita em fogo...
Encostou-se mais a mim e dizendo baixinho para irmos para dentro que ainda corríamos o risco de sermos vistos nus, olhou secretamente para o passeio. Para o sítio onde anos antes saíra pela calada da noite e de faca na mão tinha levantado a pedra da calçada onde eu horas depois encalharia...




Foto daqui

Charlie

13 março 2008

Natural é que é bom?


Quem disse que só o natural é que é bom?
Já experimentei comer uma febra de porco preto ao natural.
Assim sem mais!
É intragável.
Nada como uma boa depilação num lume de estevas,
levar-se o corte ao ponto e dar-lhe calor que chegue à base da pedra de sal.
Depois, quando estiver na cor que se quer, é saborear.
Há quem goste mal passado.
Eu prefiro dar-lhe o tempo certo.
Passado sim, mas ao ponto de estar ainda macio.
Na zona onde se conseguem descobrir os sabores ocultos.”

Charlie

publicado em: Praça da República

03 março 2008

Versinhos - totós de pé quebrado - à cona(culta)

Nota prévia do autor:
" post publicado a rogo de várias famílias, por não saberem escrever.
O escrivão: - @#!?»§€%@oo* - (assinatura ilegível)"

Instante fodográfico; testemunho de peregrinação ciclo-cultural, em que um grupo de devotos junto ao objectivo alcançado se prepara para render-lhe a justa minetagem, perdão; homenagem.

Que a cona é culta
e à cultura bem grata,
"Si non é vera
É bene trovata"
Tem nomes de altar
Maria e Santa
Alberta e Chica
Pachacha e Rata.
Não fica por aqui
a funda cultura
Desde pequena estatura
tem nome de Pipi.
Entra pelas leis
Salta dos cacifos
E de estrela no peito
assume-se Xerifa.
É coisa bem dela
Mas também é da mana.
Dos outros! Já se sabe,
que as nossas são Santas.
E vão adiante
as nomenclaturas.
Já se disse que ela
era um poço de cultura?
É tanto o Saber
que de si emana
Que das Deusas tomou
o nome de Xana.
E sempre em crescendo
e subindo o critério,
a seu nome fica devendo
um País o Ministério.
É tal o seu desejo
de Saber que não passa
que de tanto absorver
estalou, ficou Racha!
Mas não tem disso medo
quer sempre saber mais.
Mete coisas por fora
E lá dentro também.
A cona é um prodígio
de evolução constante.
Quanto mais a conheço
Mais me sinto ignorante.
A ocasião, meus amigos
- nem sempre se repete-
Aproveitem lhes digo
Sempre que a cona lhes cede
O uso culto da língua
num mais culto minete.

Charlie

25 fevereiro 2008

Zapping numa noite de chuva

Por Charlie

Fazia uma daquelas noites em que o aborrecimento sobressaía a cada toque que o polegar imprimia à tecla do programa seguinte. Por um instante pensei nos primeiros tempos dum só canal quase só preenchido de fascinantes banalidades que a todos prendia na meia dúzia de horas que transmitia e como eu estaria a ser no mínimo ingrato por ter ao meu dispor toda uma panóplia de artifícios tecnológicos de alta qualidade, música, filmes e mais filmes, documentários, informação de toda a sorte e em vários idiomas e por aí fora, tudo e tudo e mais que viesse a vinte e quatro horas por dia...

Levantei-me, bocejei e abrindo uma nesga da porta, espreitei para fora.
Chovia agora de mansinho depois de toda a tarde o vento ter fustigado e encharcado as ruas onde agora apenas uns esparsos círculos se alargavam nas poças que resplandeciam sob a luz parca dos candeeiros.
Nem sei o porquê nem o porque não, apenas dei por mim minutos depois de casaco abotoado e manchado de gotas a entrar para o primeiro bar que me surgiu.
Embora já não se pudesse fumar desde o princípio do ano e eu ser um não fumador, aspirei com um profundo agrado o travo que anos a fio tinham deixado impregnado nas ripas da divisória de bambu que apenas de forma muito ligeira separava a zona da entrada do espaço interior.
Avancei, esperando um pouco passada a divisória, e de imediato reparei nela. Ali quase ao canto, de livro em cima do tampo, aberto numa página qualquer. Segurando uma bebida, fitava um ponto ausente na parede oposta enquanto, atrás do balcão, um pano branco numas mãos habilidosas passava brilho a uns quantos copos que depois ia arrumando.
Cruzei-me com o seu olhar e com o seu sorriso profissional, de barman atencioso e discreto.
-Um simples sem gelo, e uma água... Sim, pode ser com gás...-
De pé ao balcão, meio encostado a um dos bancos, olhei em redor. Estava uma casa fraca. Pouca gente, dois homens de meia idade conversando baixinho, talvez negócios, um casal de namorados de mão na mão em cima da mesa e todo o futuro no olhar, alguém escrevinhando num bloco de apontamentos e, novamente, ela.
Sem que mexesse um só músculo do meu corpo, observei como agora voltara à leitura: Milán Kundera...
Molhei ao de leve os lábios enquanto por um instante de nada os nossos olhos se cruzaram. Voltei a encostar o copo à boca e lentamente, sem desviar o olhar, bebi em curtos golos todo o uísque. Voltámos a cruzar o olhar desta vez mais intenso e demorado. Os meus verdes, os dela negros e profundos como uns que conheci em tempos e que teimam ser presentes por mais distantes que estejam...
Saí logo depois dela, sem disfarçar nem esperar tempo algum.

Sentei-me no sofá de comando na mão, num gostoso zapping após ter chegado a casa já de madrugada, com a insustentável leveza que nos deixa em todo ser, depois da troca de lábios, de fluidos e de corpos, ter ocorrido sem que tivesse havido o peso duma única troca de palavras....


Charlie

18 fevereiro 2008

O cobrador de impostos

O cobrador de impostos.


por Charlie

Podia ter nascido uma ninhada de ratos com um gato ao lado!
Ou ser um mero molusco vivendo no limiar do paladar como único sentido da existência. Devorador e devorado em cadeia sem outra história que não fosse o rodopiar das minhas moléculas em ciclo perpétuo nesta sopa feita de água e rochas à qual a consciência chama de Terra. Podia ser uma dessas pedras que andam há uma eternidade a vaguear pelo espaço com encontro marcado com ela na breve orgia dum risco de luz desenhado contra um céu de infinitos Deuses e estrelas.
Mas não... Quis o destino que toda a matéria de que sou composto se juntasse naquilo a que se chama: um cobrador de impostos. É esta a minha missão, ou melhor, o meu modo de vida e, confidencio, a minha paixão. Não que tivesse começado por sê-lo.
Têm-me dito que há paixões que são instantâneas. Não sei, nunca tive outra paixão, mas acho que deverá haver gente que se apaixona pelo simples passar dum piscar de olhos...
Mas eu não!
A minha profissão preenche-me completamente, mas isso levou tempo. Aprendi a ser o que sou hoje e a gostar de ser o que sou.
A minha lista é extensa, há muitos que estão atrasados nas suas obrigações. Procuro-os nas suas casas depois de observar cuidadosamente, ora sentado no carro, ora nos cafés e papelarias e durante um, dois ou mais dias, as rotinas de que fazem vida.
Depois ataco! De adrenalina nas veias e o coração a bater! Já tenho tantos anos disto, mas o fascínio é eterno. Primeiro encosto o ouvido à porta. Como disse, observo previamente e apenas bato às portas depois de ler os rostos e os sinais dos corpos. Sinto-os lá dentro entregues um ao outro, adivinho-lhes o olhar e os lábios em fusão. Sinto como a roupa lhes aperta na emergência do querer. Uma forte erecção me toma, aguardo mais um pouco antecipando tudo e é nesse instante que bato à porta.
Não de mansinho. Não! Mas com esta força de saber quem sou. Olho-os de frente, eles espreitando pela nesga da porta, de roupas parcamente arranjadas num ingénuo disfarce. Primeiro de rosto aborrecido, zangados até. Depois surpreendidos e incrédulos após eu ter-lhes mostrado as minhas credenciais e as intimações competentes. É nesse ponto que a erecção quase se descontrola. Mas sou um homem que se pauta pelo auto-domínio. Pego na minha caneta, no bloco de apontamentos e começo a inventariar os bens. Um a um enquanto admiro, sempre em erecção, as formas das mulheres, os nacos de carne que se expõem escapando por entre as roupas e lhes adivinho as entregas nos momentos altos dos corpos em sexo.
Vejo as salas, toco nos sofás de onde absorvo pelas pontas dos dedos todo o calor. Subo aos quartos de dormir, tantas vezes de roupas desarranjadas, sempre com eles atrás de mim. Excita-me por demais ver-lhes os rostos em aflição e aborrecimento e o saber do momento que estraguei.
Depois chego a casa, abro a mala e revejo os apontamentos. Vêm-me as mulheres à presença do espírito e, tomado duma forte erecção, masturbo-me. Atinjo uma total, indescritível e profunda satisfação. Como jamais, e já em tempos idos, mulher alguma de proporcionou.
Vivo assim. Sou assim. É esta a minha paixão e o modo de vida que me completa; ser cobrador de impostos...

Charlie

08 fevereiro 2008

Voyeurs...


Vê como a alma toda abres.
Num olhar discreto e fundo.
Cabe na vista todo um mundo
E cabes toda num ponto do nada.
E vês a vida desnudada.
Os gestos, as mãos e o dar-se tudo.
Bebes do tempo cada segundo
como se jamais houvesse igual.
E pensas que nada disso faz mal...
Do ver dos outros,
estás distanciada...
No segredo estás perdoada.
E eu também estou em perdão
Ao ver-te olhar excitada,
Quando eu em excitação
Pergunto o que pensarias então
Se soubesses que ao observar
Estarias sendo a observada...


Charlie

03 fevereiro 2008

Memórias dum aluno.

por Charlie

Ficara estabelecido desde o primeiro instante, em acordo surdo que as semanas subsequentes ratificariam, a profunda antipatia que entre nós selaria para todo o sempre o tom do nosso relacionamento.
Na verdade não gostara dela ao primeiro sinal tal como ela, sem qualquer rebuço, me fizera sentir que entre a massa amorfa daquele conjunto de alunos, eu seria para ela, e por uma questão de isenção profissional, apenas um entre esses outros números a mais que constariam das listas no final dos períodos lectivos.
E aquilo que fora, nos primeiros minutos da primeira aula, uma acre impressão, - que passara a tónica após as duas frases que trocáramos- evoluiu para a hostilidade declarada quando no primeiro teste me deparei com a nota classificativa: apenas o antigo e inenarrável “medíocre mais”. Uma nota que além de ser nitidamente injusta por comparação com os testes dos meus colegas de turma, me soubera ao horror dum náufrago enleado nos cordames, preso e arrastado aos destroços: tinha a certeza que por mais esforços que fizesse morreria afogado a poucos centímetros da superfície salvadora do “Suficiente”.
Repetiram-se as provas, e repetiu-se a classificação. O primeiro período lectivo marcado na pauta pela nódoa duma e única negativa de valor igual àquele com que ela me pontuava nos testes. Descobri que ela nem os lia, aquí e ali punha a eito uns traços a vermelho a justificar o costumeiro “ mediocre mais”.

Foi então que um rasgo da fortuna, um momento que o Destino guarda como oportunidade a não repetir, se abriu por um instante.
Nesse dia, seguindo eu já atrasado, dei com ela a entrar para a sala de aulas. Mais uns segundos e teria a implacável marcação de falta. Nos bicos dos pés, fazendo-me invisível junto à parede e quase sem ruído, saltei os últimos metros antes que a porta se fechasse. Bastaria esgueirar-me por entre a primeira fila de carteiras e sentar-me em silêncio. Foi então que reparei no envelope que lhe caíra dos livros que ela transportava. Abaixei-me, apanhei-o e deslizei para o meu lugar. Estava preso duma terrível curiosidade, receoso de ser descoberto mas de tal forma excitado que não resisti. Disfarçando o nervosismo e muito discretamente para que ninguém notasse, retirei a carta do envelope já aberto e li o seu conteúdo. Um enorme sorriso me encheu por dentro, tão intenso que sem o mostrar nos lábios, temi que me traísse no resplandecer do olhar.
Reparei como o envelope não tinha nada a ver com o conteúdo e que apenas servira de invólucro pontual. No fim desse dia de aulas, já em casa, li e reli a carta guardando-a depois em sítio seguro.
E foi com a segurança na voz que no dia seguinte e ainda no corredor e em particular lhe disse:
- Professora?!... A Gisela manda-lhe um beijinho...- Ficou a fitar-me estupefacta e ruborizada. Continuei: - Já agora, sei que o seu marido é filatelista e tenho aqui uma coisa que ele gostaria de ter.- Acto contínuo tirei da minha pasta o envelope vazio que lhe entreguei. - É só descolar o selo... é lindo e ele irá gostar...-
Apenas uma única frase foi trocada meses depois entre nós. Sem que tivesse havido mudança de atitudes, passei esse ano lectivo com a pauta abrilhantada pelo “bom mais” depois de lhe ter dito no final do segundo período, e novamente em privado, que a nota “bom menos” não me agradara de sobre maneira.

A carta que ainda guardo como triunfo atípico duma época bem distante dos tempos actuais, valeu-me além da nota final, o gozo dumas boas punhetas tocadas às extensas das elucubrações lésbicas cuja leitura ainda hoje me serve de inspiração para alguns textos que vos confidencio neste espaço....


Charlie

28 janeiro 2008

A Santíssima Trindade

por Charlie

Devagarinho, quase sem fazer ruído, abriu as persianas da janela do quarto. A luz intensa do dia já bem desperto encheu o espaço e na cama um olhar estremunhado olhou sem ainda ver enquanto, por entre bocejos, a pergunta dominical soou:
- Que horas são?...-
Uma sensação de rotina amargou-a apenas no instante de engolir. Sorriu para ele e respondeu-lhe com um “bom dia amor”. Depois voltou a sorrir-lhe e disse:
- Levanta-te um pouco, ajeita-te, senta-te na cama que tenho uma surpresa.- Rodou o corpo e pegou no tabuleiro do pequeno almoço que tinha ficado fora do alcance visual do marido. Um enorme sorriso ligou-os enquanto ele já bem desperto aceitou o tabuleiro que pousou sobre o cobertor que lhe cobria as pernas. Olhou com satisfação como ele sorveu o chá quase a escaldar e apaladou os sentidos com a torrada quente barrada com manteiga. Apesar dos anos, da rotina e dos desencantos da vida, amava aquele homem, sentia-se bem com ele, da sua forma doce de ser, da sua dedicação e companhia.

Saiu dizendo-lhe ainda que iria demorar-se . Depois da missa teria de tratar duns assuntos e viria já tarde. Que ficasse deitado a descansar, disse à laia de despedida.
Chegou e ajoelhou-se encetando uma oração que interrompeu quase de imediato com o surgimento do padre. Mirou-a e instintivamente dirigiu-se ao confessionário. Sempre que ela estava na igreja ele já sabia ao que vinha.
Em voz baixa, ajoelhada sobre a almofada disse de si . Não de forma directa, mas em metáforas e rodeios que só ela entendia. Ela sabia que uma mulher deve ter no mínimo três homens na vida. Um a quem amasse, outro com quem gostasse de foder e finalmente, ou talvez principalmente, o que lhe pagasse as contas. Mas entre isso que era o seu lema de vida e a sensação de pecado entranhada na pele, como maldição perpetuada pela educação, só poderia haver o ajuste de contas entre ela e Deus.
Esperou que o padre a sentenciasse e absolvesse, ministro do altíssimo, mas homem. Olhou para ele. Que relação passaria a ter com ela se lhe dissesse tudo em palavras directas? Que olhares lhe deitaria e que outras frases sairiam da sua boca de prelado? Fosse como fosse, jamais foderia com ele, jamais toleraria sequer a aproximação de toque de mãos nas mãos, tão típicas das abordagens dos eclesiásticos. As mãos, essa espécie de sonda com que os corpos se descobrem mutuamente precedidos da nudez do olhar; o princípio da entrega...

Saiu pegando no telemóvel. Um modelo topo de gama oferecido pelo patrão, assim como a mala e a joía que adornava o decote. Rapidamente voltou-se fazendo o sinal da cruz.
- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo... - A Santíssima Trindade, o mistério e dogma incompreensível de como sendo três era um só... Tal como os desígnios profundos que a moviam em relação aos homens que lhe preenchiam a vida. Haveria algures mulheres com a sorte de terem um homem com as três valências, mas isso seriam as bafejadas pela sorte dos que acertam num primeiro prémio que nunca sai a ninguém e vai acumulando jackpots sucessivos.
Suspirou, e marcou o número.
- Sim, querido... sim, vou estar contigo...
Sorriu mordendo o lábio inferior.
Gostava mesmo de foder com ele...

Charlie

21 janeiro 2008

O Explorador


Senti-lhe o coração bater intensamente quando, vindo do umbigo a desbravar as sendas do desconhecido, descansei os lábios e a língua no vale que os dois montes ofereciam. Mais além e por entre os cumes, um olhar prolongava-se pelo imenso mundo interior que eu apenas aflorava e que lhe sabia, na minha missão de explorador de mistérios, existir sob a frágil pele. Um vulcão prestes a explodir e a engolir-me a todo instante levando-me nas suas profundezas e infinitos, e que agora me transmitia os avisos de erupção próxima em batidas aceleradas e arrepios de pele.


Lentamente e em espiral subi e desci pelas encostas dos montes, ora um ora outro, detendo-me no cume para descanso e dar de beber às sedes. Em cada subida olhava brevemente e sentia como o horizonte entrava naquele paradoxo de ser cada vez longínquo e grandioso enquanto mais e mais se precipitava sobre si mesmo numa ameaça de dilúvio universal, do fim dos tempos, do juízo final.
Pelas veredas, dedos incessantes procuravam caminhos tantas vezes percorridos e sempre tão cheios de novos mistérios, recantos de escondidos regatos escorrendo das fontes do Eden onde só os Deuses podem saciar-se.


Avancei mais um pouco por entre as margens prestes a ceder, consciente do Momento estar ao capricho dum mero gesto que eu geria parcimoniosamente, todo aquele corpo preso da medida do tempo que obedecia ao meu querer, à minha vontade, agora parado no seu avanço inexorável naquele instante de que eu era seu mestre e senhor.


Umas unhas rasgaram-me a pele fazendo-me soltar um grito que emoldurou a explosão telúrica.
Arrastado pela onda de choque, estava a poucos instantes da queda sem fim e sentindo como já não mais poderia mais voltar atrás, precipitei-me no infinito, mergulhando entregue a mim mesmo e ao destino, morrendo e renascendo num novo céu, rumo a outro eu, a outra viagem, ao voo de outra descoberta...


Charlie

15 dezembro 2007

Descoberta


Oh quantas vezes te descobri,
Bocado de sonho...
Neste Eu-Ninguém da Terra deserta.
Por vezes nas pontas dos meus dedos
Outras nessas que são dos teus,
perdi-me, desafiando os céus,
da rota vã que teimava certa...
Mas foste sempre carta secreta.
Nau, gaivota e novidade.
Todo um mundo que se derrete
Naufrágio, lençol de Verdade imersa
Onde todo o eu se desconhece
Quando mergulho, sendo já sem ser,
no mar que é teu, à descoberta...

Charlie

Nesse mar aberto, cinzento e tão profundo
onde o mistério de ti se perde, qual lamento
perdido que foi para mim, para ti, para o Mundo,
perdido para sempre, para sempre na imensidão do tempo...

E fosse um dia a vida, um momento pleno,
fosse a tua boca o mar profundo, fogo ardente...
Mais me perderia eu, nesse salgado sereno
onde me perco eu mesma, tão doce, docemente...

Euzinha

10 setembro 2007

O Senhor Matos

... Aquelas mulheres não tinham cona. Não fodiam!...

Olhou para ela.
Da mesma forma como o havia feito milhares de vezes para outras mulheres.
Desviando de forma consciente os olhos das protuberâncias dos peitos, do convite esguio do ventre a escorregar para vale das pernas em direcção ao mais oculto e reprimido dos seus desejos.
Continha-se no soslaio de um cumprimento evitando o olhar e ruborizando-se no reflexo carmim com que num sorriso lhe correspondiam à saudação.
- Bom dia, senhor Matos, como está...?
E seguiam no seu deambular rumo aos seus destinos, enquanto ele recuperava do imenso esforço que havia feito e da sensação de tremenda insegurança que o encontro breve com elementos do sexo feminino lhe deixavam.
Desta vez, o mesmo de sempre. Mal elas tinham saído da sua esfera, afastando-se, e o dia abria-se novamente na paz da sua solidão.
Tal como agora.
- Esta mulher... - atreveu-se ele, recuperando-se nos seus pensamentos. - Dava-lhe grande foda. Faria dela tudo o que me apetecesse. Mordê-la-ia toda. O pescoço, as mamas, o umbigo e a cona... Sim, a cona... Deve ter uma cona dessas iguais às das gajas das revistas. Boa e lisinha, a juntar umas pernas dessas que eu lamberia desde os pés até ao cerne, ali mesmo até ao biquinho. Beijaria todo o seu corpo... Ai! Que vontade de foder que esta gaja me dá...! E depois ela, agarrada a mim, a gemer de gozo e eu a entrar nela, mais e mais e mais até tudo explodir... Ela e eu...!
Seguiu para casa. Numa pressa tremenda, respiração ofegante a colocar a chave a titubear na fechadura que se abriu finalmente.
Tirou o chapéu, o casaco e seguiu para a sala. Num instante voltou todas as fotos que tinha em cima das prateleiras da estante. Aquelas mulheres não tinham cona. Não fodiam. No meio dos demais parentes, a sua mãe, as manas, as três sobrinhas e as tias; tudo voltado para a parede.
Suspirou e abriu a braguilha. Mão cheia e olhar fechado.
Seguiu para a casa de banho, mirou-se ao espelho e fechou os olhos. Agora ela estava ali. Sentada à beira da cama. A despir-se peça a peça, camisa, saia. Agora o soutien, as meias altas, ficando só no resumo da última peça que ela tirava já lentamente, lavrada a polegar, e na moldura do sorrir com que havia devolvido, um quarto de hora antes, o breve cumprimento.
- Bom dia, senhor Matos...
- Bom dia... - respondeu ele entre dentes cerrados numa voz que tremia ao ritmo do corpo enquanto continuava de lábios traçados sob os dentes. – Dizes bom dia...? Tu queres é que eu te foda... E és tão boa... Tão... boa... Alice... ah... És tão... ai... ai... Tão... boa...

Charlie

16 junho 2007

Os Terrores de Santo António Uns Dias Depois


Foto: Malandrices das Caldas


Santo António, santo de pau
ao pular de carnes em fogo
Quase queima o altar
onde o prendem os devotos

É o ouvido das confissões.
De meninas em hormonas
De senhores em aflições
e ele santo: - Por quem me tomam?-

Mas diz isto muito baixinho
preparando a tal desgraça
Pensam que eu sou muito bonzinho
- 'Pera aí que isso já te passa! -

- Ele, que minutos a quer na cama,
E ela p'ra vida na cama o quer
e eu no meio desta mama
-Tenho é mais que fazer.

Deito então as mãos à obra
encho-os de beijos e manjericos
dou-lhes maçã, escondo a cobra
depois de casados, já não é comigo

Fico livre por mais um ano
Salto do altar e nada sobra
Sou perfeito, do sino badalo
que entre copos e saias dobra.

Charlie

O OrCa ainda consegue dar uma ode depois de outra:

"ao António e aos outros santarrões:

o Santo António ladino
é bicho de grande escola
ao colo traz o menino
na toga a sarapitola

santo cioso de bilhas
de que as moçoilas se ufanem
vai às fontes minhas filhas
quebrando-as mal as abanem

no mais nós somos tristonhos
mas nos santinhos que temos
fazêmo-los seres medonhos...
são santinhos como demos

danados p'rà brincadeira
namorados, garganeiros
arranjam sempre maneira
de se safarem lampeiros

vão à fonte pelas bilhas
mas tudo o mais não enjeitam
são santinhos-maravilhas
com as moças bem se ajeitam

sejam mais novas, mais velhas
por trás de moita ou postigo
mais ladinas, mais azelhas
a todas chamam um figo..."


O Nelo não pode ouvir falar em odes que quer logo pôr-se no meio (a chamada sandes de Nelo):
"Orca melhér faz um tempão
Que nam te via aparesser
Neste broshe que é da Ção
Ela como tu, uma grande melhér

Tameim és do Çanto Toino
Deçe Çanto de pau feito
Ai melhér que já nam á homes
cumo os avia tam a jeito

Mas os tempos stão mudados
Nada éi d´antigamente
Çó tu Orca, melhér çabes
cumo as coizas stão diferentes

e per iço fizeste beim
em botar a puezia
Ao menus ainda á alguéim
Que enche o Nelo de alegria

Fico intão sperando em fogo
Teu bater há minha porta
Morro çe te tardas, fofo
Meu querido home-Orca.

Nelo, broshista de çervisso"

20 maio 2007

As noites claras V

Episódios anteriores.
As noites claras ( I), ( II), (III) e (IV)
por Charlie

Entrou para o carro após ter apressado o passo numa quase corrida inconsciente que ela abrandou ao dar-se conta da mensagem que a sua pressa lhe poderia transmitir. Jamais deixaria passar-lhe a sensação de estar a sentir o fogo interior que a tomara desde esse instante na noite anterior, em que num redescobrir do mistério genuíno, ele lhe chegara ao pé, no Bar reservado da discoteca, e lhe oferecera uma bebida.
Há muito que não experimentara aquele formigueiro no estômago, aquele arrepiar de pele, subitamente recuperados dos anos doces da memória.
Agora que entrara no carro e se instalara delicadamente, fazendo o corpo deslizar sobre o tecido do banco, assentou. Levantou os olhos de expressão quase infantil e olhou para ele sem expor em demasia a sua verdade interior. Sorriu-lhe e cedeu, após uma pausa dramática simulando uma hesitação, ao beijo breve nos lábios que ele lhe ofereceu e que ela desejava intensamente.
Não podia estabelecer laços de afecto com os clientes neste viver que vivia paradoxalmente dos paradoxos dos afectos. Mas a verdade é que toda ela fervia por ele. Sentia o que há muitos anos deixara de experimentar. Verdadeiramente apaixonada.
Este homem, apenas mais um como ela fizera por pensar na noite anterior quando chegara a casa, mexera com o mais profundo que existe na alma humana. Franqueara fronteiras que ela de repente, ali sentada no carro, apesar de toda a sua experiência e postura interior, descobrira serem tão frágeis como no primeiro dia em que vira o sol nascer do lado contrário do mundo. A sensação eterna do primeiro beijo que se repete ao infinito quando os lábios tocam nos de quem de verdade se ama…
Sem saber porquê nem a que propósito, veio-lhe a imagem do seu avô à mente. Lembrava-se do dia em que ele morrera e da aflição da sua mãe a procurar em casa por todas as gavetas, colchões e tábuas de soalho, esconderijos onde pudessem estar escondidos maços de notas. Corria na Vila que ele, velho e avarento, tinha imenso dinheiro embora vivesse de forma parca e reservada. Em diversos lados encontrou notas em envelopes, mas procurava o que ela sabia existir em casa algures.
Sorriu com o reviver da imagem primeiro sorridente da sua mãe e depois de desconsolo quando, ao abrir a caixa finalmente encontrada sob um alçapão debaixo da mesa da cozinha disfarçado com uma carpete, repararam como uma fina camada de papel transformara uma fortuna num rendilhado, ora contínuo ora em peças soltas, obra prima dos ratos. Da caixa de dinheiro, apenas uma parte fora salva com idas ao Banco, diligências feitas junto ao gerente, muitas vezes repetidas, onde ela pela primeira vez descobrira ainda adolescente, a superior importância dum sorriso em contraponto às lágrimas com que a sua mãe lhe enchera o gabinete.
- Ai senhor Nunes. – Dissera chorando pela décima vez. - Se soubesse a falta que me faz esse dinheiro… Agora que ela vai daqui a um ano para Lisboa para os estudos na faculdade... Veja bem que estão aí as poupanças duma vida.-
Ele respondera-lhe – Minha Senhora, - Que tinha toda a razão. Mas que as notas já não corriam. Só no Banco de Portugal é que lhe poderiam trocar, além de que uma grande quantidade estaria irrecuperável por muitas peritagens que lhe fizessem. Poderiam salvar uma percentagem mas o que ali estava era, em boa quantidade quase apenas e só, pó de papel. Valera então nessa altura o olhar que ele pousara nas pernas de saia curta, demorando-se apenas um segundo, após o que subindo devagar pelo corpo e lhe colhera sorrisos e brilhos num rasgo de sonho efémero. Não compreendera muito bem na altura a sua mudança de atitude, subitamente mais prestável e solícito, assumindo as diligências necessárias para a recuperação das notas inutilizadas. Mas como ela agora via, vida de experiência feita e novamente de volta ao interior do Mercedes cor de prata, mais mexe com o mundo sonhar com o improvável tornado provável por uma hipótese remota ao alcance da mão que todos os oceanos de lágrimas chorados.
De repente, num gesto nervoso, voltou a pôr os óculos escuros. Numa atitude mal disfarçada de desconforto abaixou-se escondendo o rosto ao fingir procurar qualquer coisa dentro da mala. Ali mais à frente, à esquerda logo a seguir ao arco, um homem a olhar vaga e distraidamente para eles estava pondo a chave à porta, descansando os sacos que trazia no chão à entrada.
O carro passou lentamente deixando-o para trás.
Ela inspirou fundo, pousou a mala e encostou-se pondo-lhe a mão na perna. Mordeu-lhe levemente o ouvido e sussurrou:
- Querido... Apetece-me que me leves a almoçar ao Guincho…-

10 maio 2007

As noites claras IV

(continuação)

por Charlie
...rompia em lágrimas e fogueiras de ciúmes que ele jamais lhe havia demonstrado...

Com um sorriso no rosto dobrou a esquina inferior da rua onde morava.
Vindo por aquele caminho, a subida era mais íngreme e custosa, mas ele sentia-se hoje dono duma euforia que fazia dele a leveza duma ave.
O peso dos sacos de plástico do supermercado sorria-lhe nas mãos, perante o pensamento que trazia nela. Como ele a amava!
Dentro de si conscientemente afastava a imagem de vê-la nua nos braços de outros homens que lhe compravam o corpo, a quem ela entregava os lábios, com quem ela fundia as carnes e prazeres. Para ele, para a sua interioridade construída, fingia que ela tinha um emprego qualquer com um horário imprevisível, irregular. Afastava todos os pensamentos que o magoavam nas horas de desespero em que a verdade, tão habilmente maquilhada com eufemismos e enganos, rompia em lágrimas e fogueiras de ciúmes que ele jamais lhe havia demonstrado
Mas hoje sentia que ela teria o dia livre e assim, depois de ter feito uns pagamentos, regressara a casa. Mansamente deslocara-se ao quarto e, sem fazer nem o ruído dum alfinete a cair no chão, detivera-se largos minutos a olhar para ela.
Gostava tanto daquela mulher. Tê-la a dormir na sua cama, saborear o gosto da sua pele, sentir a sua feminilidade, era o seu sonho realizado….
Inspirara fundo e regressara à sala. Pegara num papel e lápis e com letras grandes deixara um recado ao canto da mesa de forma a que ela a pudesse ver se porventura pensasse em sair.
Saíra depois com um largo sorriso a antever a cara de surpresa que ela faria quando ele lhe pusesse o pitéu à sua frente quando estivesse sentada à mesa.
Já no Supermercado comprara os camarões, a carne seleccionada, os demais ingredientes, condimentos, alguns acessórios e duas garrafas de vinho verde.
Agora de regresso planeava como tudo decorreria. Faria o almoço com o prato que ela tanto gostava, e só o antever-lhe a cara de satisfação enchia-o de gozo e leveza.
Sem que ele desse por isso, uma erecção ia-o tomando à medida que antevia o seu sorriso e a mão dela posta por cima da dele, nas ocasiões em que ela toda em brilhos de olhar lhe dizia quanto era bom que ele existisse na sua vida, e o beijava e mergulhavam um no outro; os corpos no Éden em que ele sentia que toda a sua alma e corpo lhe pertenciam.

Olhou distraidamente para a rua vazia despertando do seu sonhar ao som do ronronar doce do carro que a descia sem pressas e pôs a chave à porta. Olhou para o relógio após ter pousado momentaneamente os sacos no chão do hall de entrada. Era quase uma da tarde e ela tinha-lhe pedido para ser acordada perto da uma.
Em cima da mesa ainda estava o papel com o recado que lhe tinha deixado. Foi até ao quarto e chamou-a ainda antes de abrir a porta.
Espreitou.
Estava vazia. Talvez tivesse ido tomar outro duche.
Apressou o passo voltando a chamar enquanto abria a porta da casa de banho.
Ninguém...
Voltou novamente para a porta da rua franqueando-a à luz forte do dia.
Espreitou para o lado de cima da rua, semicerrando os olhos: Vazia!
Olhou depois para baixo.
Ninguém.
Lá ao fundo, de onde ele há poucos minutos viera subindo para casa, apenas um Mercedes cor de prata dobrava a esquina...

(continua)

Charlie

01 maio 2007

As noites claras III

por Charlie

... Amo-te como nunca amei mulher alguma...
Guardou a nota de duzentos €uro, dada pelo cliente da noite anterior, novamente na bolsa do telemóvel e continuou crescendo para o dia. Narciso a cobrir-se de folhas e pétalas diante do espelho, terminando por dar, em passo de dança, uma volta completa em frente dele seguindo a imagem, uma vez finalizada a toilette em toques suaves de maquilhagem.
Saiu do quarto em direcção à sala. Em cima da mesa estava um papel estrategicamente colocado ao canto da mesma de forma que ela o pudesse ver quando se deslocasse para a porta da rua. Tinha um recado escrito por ele, qualquer coisa a dizer que traria algo para almoçarem juntos.
Experimentou aquela velha mas sempre estranha sensação. Um misto de emoções complexas, controversas. Atravessadas pelos fantasmas dos sorrisos das descobertas da adolescência, alternando as clareiras de sol com névoas já esgotadas e secas de amargura.
Lembrou-se novamente destes últimos meses. Desde a noite em que o conhecera e dos dias seguintes. E dos outros e outros que se lhe seguiram. Das suas juras de amor eterno e incondicional. Da inquietação que lhe angustiara a alma perante a intensidade da paixão, entrega e doçura daquele homem.
A verdade é que se sentira com ele de novo no princípio, nos anos da magia, embora mantivesse o sentimento sob uma capa de cinza parca e apenas morna. Deixou o coração só levemente aflorar o desejo que todos temos de nos entregar sem limites à fogueira dum grande amor na infinita paixão da primeira vez.
Contudo, ela acumulara todas as experiências que acabam por moldar e endurecer o carácter de quem faz da vida o seu modo de vida.
Surgia-lhe diante dos olhos lembranças dos caminhos percorridos.
Inicialmente perdendo-se pelos desvios, atalhos terminando em becos, que derivam das ingenuidades de principiante. Das paixões intensas dos primeiros tempos, estrelas brilhantes que se desfaziam em céus de nada, desilusões e mágoas. Dos homens que lhe haviam jurado a Eternidade e a Lua esfumando-se depois na esteira dum cigarro. Dos que a haviam agredido, das taras e manias e dos tristes e impotentes. Dos pais de família que acabavam por mostrar as fotos da mulher e filhos que traziam na carteira e que a faziam sentir-se mal, enojada consigo própria por aflorar uma estória que não era dela. Da sensação da alma trocada por um prato de lentilhas. Por tudo isto passou, vencendo etapas, circulares e concêntricas, fechando o coração cada vez mais atrás de cada sorriso estudado e de efeito conseguido.
Até arrefecer de um todo com o tempo, até tornar-se indiferente à partilha das emoções. Até ser só ela, afinal e por fim, o centro do mundo, o único ser vivo que importava à face da Terra, abocanhando o viver perigoso como o peixe em vertigem morde o ar em saltos de queda livre fora de água.
Ela dissera-lhe isto diversas vezes, tentando dissuadi-lo.
Afirmara-lhe então que tudo não passava de uma ilusão e que já não tinha espaço para amar e estabelecer laços de afecto com mais ninguém. Dissera-lhe em tom frio que jamais poderia ser de um homem só. Que não queria prisões e que vivia só para ela. Que era a única forma de não ficar a sofrer; a sua defesa. Que a esquecesse. Que ele não passava dum cliente como tantos outros. Um mais entre tantos que se tinham apaixonado por ela e que tão pronto arrefecesse a chama que o enlouquecia, deixa-la ia como os outros num passeio qualquer passando para a puta seguinte.
Mas ele, passando por todas as provas a que uma mulher pode sujeitar um homem, acabara por conseguir que viesse viver consigo.
- Vem! – Dissera com os olhos rasos de lágrimas. – Amo-te! Amo-te como nunca amei mulher alguma. Vem viver comigo. Gosto de ti como és, e nunca te imporei nada. És livre para fazer o que quiseres. Só preciso de sentir-te junto a mim. Cuidar de ti, dar-te o meu calor nas noites de descanso. Afogar-te em amor. Ver-te nas manhãs e…-

Acabou por vir terminar primeiro algumas noites em casa dele, um porto de abrigo e mais tarde deixou-se ficar embora tivesse mantido o seu apartamento próprio onde repousava de vez em quando; o seu reduto de solidão. Soubera-lhe bem ao início ter este homem que cuidava dela. Respondia à sua dedicação com momentos fugazes e, de longe em longe, a partilha de um ou outro dia de descanso em que ele regozijava com a graça concedida de tê-la só para si...

Afastou o pensamento e deu um último toque no seu aspecto ao espelho do bar ao canto da sala. Sob uma outra luz, a maquilhagem parecia-lhe agora um pouco desequilibrada. Retocou, rodando a face enquanto os olhos seguiam fixos a imagem reflectida.
Voltou a ler o bilhete, inspirou fundo, e saiu para o dia a transbordar de azul.
O Verão estaria aí, não tardaria.
Ligou o telemóvel e marcou um número, desligando quase de seguida, elevando os olhos.
Ao cimo da rua o Mercedes cor de prata descia devagar. Acenou com os óculos de sol e apressou o passo, toda tomada de um sorriso aberto e cheio de luz.
Era ele, o novo cliente…

26 março 2007

As noites claras II

Por Charlie

-...A primeira vez é a que custa.....-

Despertou estranhamente muito antes do que esperara ser acordada conforme horas antes lhe pedira. Ainda sentia a cabeça dorida da noitada anterior e voltou-se longamente para outro lado derramando o corpo sobre a maciez dos lençóis. Tornou a fechar os olhos voltando a abri-los numa fina tira, apenas a linha que liga o sono ao despertar, por onde observava as lâminas de luz que das persianas traziam fatias quase imperceptíveis do dia para dentro do quarto.
Durante os minutos soltos da semi-vigilia, apontamentos vagos, meros fragmentos da sua vida passaram-lhe diante dos olhos. A aldeia, a sua mãe, a escola na Vila e os primeiros insípidos namorados, e depois a vinda para Lisboa. Para a Universidade onde nunca chegara a completar todas as cadeiras do primeiro ano. Veio-lhe com toda força a lembrança da primeira noitada de copos com uns colegas. Da doçura de ter feito amor com aquele pelo qual se havia apaixonado loucamente, e do amargo e profunda mágoa que lhe rasgara a alma quando ele mesmo, no meio de risadas e cerveja, e esfumadas as juras de amor ditas no auge, lhe pedira para ir também com os outros...
Rodou o corpo na cama e esfregou o púbis contra o lençol do colchão, olhos novamente fechados, arrastando a lembrança incómoda das lágrimas e o desespero que então lhe haviam tomado todo o ser quando se afastara a fugir e as semanas seguintes em que tudo fizera para esquecer-se dele, pesasse embora o inevitável de se encontrarem frente a frente entre as aulas por diversas ocasiões. Ele sempre devidamente acompanhado de novas namoradas que ela fingia não ver enquanto ostensivamente o ignorava. Desaparecia então o mais depressa que podia para o refúgio de si própria onde se alimentava da dor e da autocomiseração, chorando no seu quarto enquanto olhava para os livros sem ver..
Depois, cansada de tudo, num salto em frente, um outro namorado para esquecer a fogueira de mágoas daquela paixão, e outro a seguir, e outro. Fora ela mesmo quem mais tarde se rira de si própria e da sua ingenuidade de jovem mulher quase ainda adolescente quando descobrira as outras fronteiras que o sexo franqueava. Lembrou-se da angústia da primeira vez que abrira o corpo a um estranho, um homem que mal acabara de conhecer…
- A primeira vez é a que custa...- Levara esta frase dentro de si, quando tendo gasto todo o dinheiro que a mãe lhe enviara nas noitadas e paródias que se haviam tornado rotina, fora apertada pelo senhorio para pagar de imediato os três meses da renda do quarto que estavam em atraso. Olhara-a gulosamente enquanto ela saíra porta fora sem dar resposta mas ela nem lhe olhara para os olhos quando na manhã seguinte lhe tocara à campainha e entregara uma parte comprometendo-se a pagar o resto nos dias seguintes...

Levantou-se, subiu um pouco as persianas afogando em luz o quarto, remetendo os pensamentos para as fronteiras das memórias distantes, enquanto mordiscando os lábios apreciava ao espelho as formas ainda jovens do seu corpo seminu. Olhou para o telemóvel e inspirou. Tirou-o da bolsinha olhando através da fresta da porta do quarto para a sala, certificando-se que estava só.
Retirou a nota de duzentos Euro dobrada em quatro que havia separado das outras, horas antes deixadas em cima da mesa, e que o homem com quem vivia tinha guardado aquando da sua chegada.
Experimentou um breve sorrir.
Este cliente prometia...

(Continua)