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18 junho 2023

«Ao nascer o dia» - António F. de Pina

O lusco-fusco matinal
Dissipou-se repentinamente.

Rarefeito e sonolento
Adejava luzidio ao longe
Um pequeno aceno no balanço
Que a brisa lhe imprimia ao passar.

Se era uma carícia ou um beijo
Não sei.

Mas sei que eras tu a sua autora
Pela inebriante claridade 
Difundida no teu sereno olhar.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



11 junho 2023

«Das zonas inóspitas» - António F. de Pina

Ama cada zona inóspita
Do que queiras
Como se fosse a mais bela
A mais pura
E sente-lhe no toque
O macio da entrega
E aromas que despertem
Os sentidos adormecidos
Depois
Sente o êxtase
Imperativo e mavioso
No limiar indefinido e fortuito
Do transcendente.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



04 junho 2023

«Dos espaços» - António F. de Pina

No feixe do teu olhar há um espaço que me ocultas
Mas que eu anseio
Porque é o único que faz refulgir o meu ocaso
E se tudo o que na vida fulge é consumado
Fica apenas o sal que o sol da água não retira
Tornando crespo o branco sentir onde me espraio
Aquém da sombra desse espaço que me ocultas
Mas que eu anseio.

(No meu olhar há um feixe que alvorece
Que se ergue neste tempo de baixeza
E desse alvor quando quando a neblina esmaece
Surge o fulgor esbraseado da incerteza.)

Esse é o espaço que me liberta outra visão
No sossego brando e fascinante do teu rosto
Mesmo na sombra mais lilácea e entardecida
E eu pasmo de espanto neste canto sem acordes
Enquanto o silêncio cerra lento as cortinas
Do espaço que eu anseio e que eu preciso
E que tu me ocultas com tenacidade rigorosa
Por detrás desse meigo e enigmático sorriso.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



28 maio 2023

«Mãos pendulares» - António F. de Pina

Foram as mãos esdrúxulas e graves
Que inventaram palavras agudas
As únicas que sobreviveram
Ao silêncio.
Tinham arestas vivas e gumes no silabar
Que nem a candura do teu olhar
Amaciou.
Na Na estrutura delas só pétreas e frias colunas
De textura rugosa e maciça
Permaneceram.
No pulsar dinâmico e febril dentro do peito
Apenas a morte navegava num périplo
Repetitivo e infinito.
As palavras tinham tronco e membros e alicerces
E raízes intravenosas de sofrimento e de amor
A deslizar entre os dedos.
Se eram mãos pendulares ou não
Não sei.
Mas sei que se ergueram num repentino desabrochar
De cravos rubros e cardos estelares
Numa luminosidade alva e nua
Como um grito um som um sentimento.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



21 maio 2023

«De mim falo» - António F. de Pina

De mim falo de mim falas de mim falam
De mim sentes o que eu sinto nas palavras
Das que entram pelos espaços das ameias
E pelas frestas das muralhas que tu espalhas
De mim espalho só olhares que não te ferem
Sobre as ondas cristalinas do teu ma
Nos balanços que lhe incutes com segredos
Na carícia que flutua na consistência do olhar
Por isso irrompem alvoradas pelos poros
Na luz difusa que os lábios febris contêm
No beijo crepuscular de pétalas ruborizadas
E abrem-se puros horizontes de neblina
Nos destroços destes tempos conturbados
Onde os pássaros sobrevoam divertidos
Deixando vivos filamentos nus e alados
E assim eu sinto que tu sentes este querer
Que enraíza nos meus sonhos já cansados
E que cresce destemido a florescer
Entre os cactos os granitos e os luares
E como se não bastasse essa ilusão
Quero erguer-me deste chão não por vencido
Mas para acordar e provocar a agitação
O alvoroço de águas quietas nos meus sonhos
Que na sua leveza tímida apenas enchem
A serena e suave concavidade das tuas mãos.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



07 maio 2023

«Intensidades» - António F. de Pina

A intensidade existe
Na palavra crespa que tormenta
O despertar dos meus sentidos.
Na plúmbea névoa que condensa
O querer estar aqui de pé
Tenaz mas nunca contrafeito.
A intensidade existe
Na miragem real deste planalto
E descompassadamente
Neste pulsar louco
De contentamento.
Existe no poder hipnótico dos teus passos
Na flagrante leveza do passar.
A intensidade existe
Na labareda irrequieta dos teus olhos
Na tua pele expectante e pálida
No teu gesto simples e aveludado
No arrepio do toque.
A intensidade existe
No sublime som que sai do peito
Em torvelinho intenso embora efémero.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



30 abril 2023

«Alvuras» - António F. de Pina

Amei-te como quem trinca
Um pomo rubro e reluzente de vontade
Sentindo sempre o saciado insaciado.

Amei-te como quem tacteia
O crescente crepitar dos poros claros
A incendiar o macio da pele nua
Em cada gesto de dedos estelares.

Amei-te como quem ouve
O eco do grito linear desse desejo
O som efervescente de um beijo
E o som do brilho vertical do teu olhar
A deslizar
Pelas paredes desmaiadas do meu rosto.

Amei-te como se fosse
Um pavio esbraseado e solto
Na morfologia complacente do teu corpo
Entre cortinas de crepúsculo e luar.

Só não sei
De onde vieram todas as asas livres
Que nos fizeram emergir e planar.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



16 abril 2023

«Passados presentes» - António F. de Pina

Refulgente olhar que a treva encerra
Voa em recessão ao centro da terra
Sem deixar esperanças na alva clareira
Do sonho que é a vida mas tão passageira.

Rútilos cabelos que a saudade aflora
Penosos punhais que não vão embora
Pendentes presentes sobre o teu semblante
Bocas tresloucadas que haurem o instante.

Com sofreguidão exaure-se o tempo
Num mar de paixão e contentamento
Rompem labaredas pelas frestas dos dedos
Que queimam as asas que nascem dos medos.

Mas os anos passam no giro da vida
Luz de candeeiro no fim da torcida
O cabelo branqueia já custa a calçada
O coração bombeia na artéria cansada.

E defronte ao espelho o olhar desliza
Como que levado pela própria brisa
Fica a sombra escura sempre decidida
Do sonho que é a vida como despedida.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



09 abril 2023

«Naquela tarde» - António F. de Pina

Naquela tarde
Havia um bailado de aves
Sob a chuva miudinha
Posso jurar.
Havia dormência no olhar
Constante como ausência
Prenúncio ruim e circunstante
Na dolosa angústia enraizada.
De repente despertei
E num sobressalto
Translúcido e inesperado
Surgiste tu.
A precisão dos teus passos
Desafiava o som descompassado
Borbulhante e solto
Da pluviosidade desaguante
Na sarjeta.
Afagavam-te o rosto
Diminutas gotículas
Que serpenteavam a gravidade
E a ternura do momento.

Tinhas os olhos febris
E uma luminosidade crepuscular
Nos lábios entreabertos.
A tua respiração era ofegante
Descomedidamente
Apressurada.
Por vezes o desejo
Adivinha-se no tremor
Dos dedos e da voz
Ofuscando o nosso redor:
Miragem de um horizonte rubro
Palpável como se fosse real.
Não existia tempo nem destino
Apenas um cúmplice silêncio
Rigoroso e vertical
Naquela amálgama
De sentidos despertados.
O resto
Não digo
Porque me deixa saudoso
Melancólico
E definha-me o pensamento. 

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



02 abril 2023

«Ansiedades» - António F. de Pina

Trazias nos olhos um brilho de mulher
E um sorriso prematuro como um beijo
Um torvelinho em cada braço sem saber
E o linho claro de um conceito no desejo.

Porque as palavras para aquém da fluidez
Emaranhadas nas teias da nossa mente
Lembram sangue lembram Pedro e Inês
Neste tempo que é urgente estranhamente.
Quase não lembro qual era a sensação
Na presença real do teu corpo abstraído
De ter tudo sempre tão presente tão à mão
E tão distante ao tocar-lhe embevecido.
Mas eras tu feita saudade permanente
Amazona deste tempo galopante
A esbrasear gritos em cada fria madrugada
Numa implosão de ansiedade requerente
Que resumidamente
É quase tudo é quase nada.

Trazias nos olhos um brilho de mulher
E um sorriso prematuro como um beijo
Um torvelinho em cada braço sem saber
E o linho claro de um conceito no desejo.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



26 março 2023

«Variações cupidinosas» - António F. de Pina

I
Faísca que implode do olhar
Na rubra sintonia que desponta
Em cada madrugada desmedida.
Chispa que atiça a labareda da palavra
Que espreita da neblina matinal
Ou do raio solar que se esconde na cortina.
Faúlha que cresce e que cresta
A sofreguidão de um beijo apaixonado
Entre a entrega e o olhar que não se estranha.

II
Mão sábia que dissemina no espaço
Do amor puro a semente a flor aberta
Como janela que não cerra o horizonte
Que os teus olhos ainda albergam a brilhar
Nem os gestos simples e intrínsecos
Do voo das nossas aves a passar.

III
Procurar em todos os quadrantes
Apenas um feixe um fulgor do teu olhar
Como quem esgaça uma vidraça embaciada
Que teima em ocultar do teu sorriso o cintilar
Depois deixar esvoaçar todos os sentidos
Na tendência convergente e terna de te amar
E ouvir as melodias tecidas de harmonia
Como porta lenta que se abre em nós
Ao romper da alvorada em cada dia.

IV
Fremir impetuoso abraço
Arfar
Embargo no corpo
Cada vez mais lasso
Toque de pele
Com os lábios a contornar
O embaraço
O sentido da visão
Cada vez mais baço
Trejeitos dedos crespos
Que não conseguem agarrar
O denso espaço
Explosão conjunta imensurável
Que se abre em flor no teu regaço
E estranhamente
Um imperceptível cansaço.

V
Fruto ainda verde que se colhe
Na morna estação do lusco-fusco
Ao amadurecer a flor que o gerou
Polpa que se prova quem provar
Aroma que se entranha nas entranhas
Quando irrompe das cortinas do olhar
Pois cada gesto é um sorriso prematuro
Conjugado em cada tempo deste verbo
Constante profundo abrangente
E imutável como o sol
Que nasce para nós sempre a brilhar.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



19 março 2023

«Nunca me ocultes» - António F. de Pina

Nunca me ocultes as fontes do teu riso
De onde brotam filamentos de ternura
Nem teças sonhos que escureçam ou denigram
As incandescentes madrugadas que são minhas.
Nunca me ocultes a carícia da nascente
No caudal aveludado dos teus dedos
Não me peças névoas nem penumbras
Nem silêncios nem destinos. Só poemas.
Nunca me ocultes o murmúrio ou o som
Que trazes desprendido em cada beijo.
Diz-me apenas no rubro do desejo
Diz-me apenas: "Meu amor estou aqui!"

Nunca me ocultes o teu claro e terno olhar
Nem a serena refulgência do teu rosto.
Não me ocultes o som macio do mar
Que trazes humedecido no teu peito.
Não me segredes palavras cruas de dor.
Só aquelas que amanhecem os conceitos.
Não me ocultes os passos da tua noite
Nem o súbito luar da lua cheia
E não me perguntes para onde eu vou
Nem contes os meus passos indecisos.
Diz-me apenas com sentidos mais precisos
Diz-me apenas: "Meu amor estou aqui!"

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



18 fevereiro 2023

O silêncio e o gume da palavra

Livro de poesia e textos de António F. de Pina. Edição de autor, 2022, 136 páginas.
Prefácio de Mário Rui Simões Lopes. No primeiro de quatro capítulos, ""Amor, sentimentos e saudades", oferece-nos 40 poemas de "poesia pura, lírica, bucólica e erótica, onde canta a mulher e a natureza".
Exemplar doado à coleção pelo autor. 

05 fevereiro 2023

Luís Gaspar lê «Amor como em casa», poema de Manuel António Pina


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina
Manuel António Pina (Sabugal, 18 de Novembro de 1943 – Porto, 19 de Outubro de 2012) foi um jornalista e escritor português, galardoado em 2011 com o Prémio Camões..

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

11 janeiro 2023

«Sossega» - António F. de Pina

Sossega
De nada te vale turvar o olhar
Imbuindo a chuva miudinha na areia
Ou encrespar a suave neve cristalina
Eriçando os pelos nos poros dormentes
Crispando as unhas no assombro luzidio.

Sossega
Não toques a esquina da angústia
Com os dedos ansiosos de penumbra
Não fujas da planura envolta em brisa
Nem te mostres no concerto começado
Com o som que sai singelo do conceito.

Sossega
Deixa-me desatar-te os nós cerrados
Que te impedem os movimentos serenos
E ver quanto mar pode abarcar o teu peito.

© todos os direitos reservados



09 janeiro 2023

«A patroa» - Neca Rafael

Fado cantado por Lourenço M.
no 21º Encontra-a-Funda
Apesar de estarmos velhos
Eu disse assim à patroa
Usa a saia p'los joelhos
Porque ainda estás bem boa

As outras são bem felizes
Por trazerem pernas nuas
Tu quase nem tens varizes
E as que tens são só tuas

Porompom pón, 
poropo, porompom pero, peró,
poropo, porom pompero, peró,
poropo, porompom pon
(bis)

Apesar de estarmos velhos
Eu disse assim à patroa
Usa a saia p'los joelhos
Porque ainda estás bem boa

As outras são bem felizes
Por trazerem pernas nuas
Tu quase nem tens varizes
E as que tens são só tuas

Porompom pón, 
poropo, porompom pero, peró,
poropo, porom pompero, peró,
poropo, porompom pon
(bis)

04 janeiro 2023

«Olhar-te» - António F. de Pina

Olhar-te
É ter a Primavera florida a despontar
Da timidez crepuscular que se finita.

   É como olhar para o Sol intensamente
   Com o brilho ocelar liquefeito em lágrima.

Olhar-te
É penetrar a densa opacidade do teu conforto
E sentir o peso subtil do silêncio da atitude.

   É libertar todas as sinfonias inacabadas
   E sentir-me leve e planar numa cortina de som.

Olhar-te
É sentir fantasmagóricas ondas de luz
A clarear ardósias negras no pensamento.

   É transpor a barreira do som em apneia
   E sentir-me esmaecer no abraço que me dás.

© todos os direitos reservados

02 janeiro 2023

«Serapião Pimenta» - José Castro Carvalho / Álvaro Martins

Fado cantado por Lourenço M.
no 21º Encontra-a-Funda
O Serapião Pimenta
Que já passou dos oitenta
P’ro que lhe deu, vejam bem
Foi pedir em casamento
A filha do Chico Bento
Que nem vinte anos tem (bis) 

Com tal diferença de idade
Havia necessidade
A fim de evitar sarilhos
De fazerem ambos testes
E lá foram um dia destes
Saber se teriam filhos (bis)

Exames fizeram então
Seguindo a prescrição 
Tudo muito estudado
Uns vinte dias depois
Lá compareceram os dois 
P’ra saber o resultado (bis)

A sua análise está bem
Nenhum problema contém
É o que assinala esta cruz
Está a menina um espanto
E está apta portanto 
P’ra casar e dar à luz (bis)

Ao ver o seu resultado
O Pimenta entusiasmado
Logo ali pediu a Deus
Que tudo lhe perdoasse
E lá do alto mandasse 
A bênção prós filhos seus (bis)

Tenha calminha Pimenta
Porque o seu teste apresenta 
Uma cruz, mas mais um “i”
Boa saúde, de facto
Para casar está apto
Mas só p’ra fazer xixi (bis)

26 dezembro 2022

«Elisa»

Fado cantado por Lourenço M.
no 21º Encontra-a-Funda
Oh minha querida Elisa
Se ainda vives sozinha
Nem que eu fique sem camisa
Volta outra vez a ser minha

E se amas mais algum
Nisso não há desavença
É mais um ou menos um
A mim nem faz diferença

Acho até melhor negócio
Pois dá bem mais regalia
O que importa meu amor
é ter as contas em dia

Não se rala, como vês 
Este pobre que te ama
Vem tu e ele, que os três
Usamos a mesma cama

Mas para não dar salsada
A cama vais repartir
Comigo estás acordada
Com o outro, a dormir

Com coisas bem divididas 
Não há lugar a tristezas 
Dás-me amor, boas comidas 
Ele fica com as despesas

Acredita pois em mim
Tenho muita competência
Uma sociedade assim
Nunca pode abrir falência

19 dezembro 2022

«Disputa» - Tó Barbo

Poema lido no
21º Encontra-a-Funda
Disputa como se fosse
Uma palavra obscena
Que descarrilou profunda e plena

A briga que nos obriga
A levantar a voz e a luta
Desenraizada de quem não disputa

Disputa ou não tu é que sabes
E assumes bem o que dizes
Quando astutos se empinam os narizes

Não te amofines nem te envolvas
Com quem peleja e disputa
No palco negro da certeza absoluta

Por causa da paixão surge o ciúme
E rancor e ambição e disputa
Na altura que te aprouver mais resoluta

Depois escuta

Que se o repto é dirigido a quem disputa
A palavra mais balofa e devoluta
É a que existe no dicionário da má conduta

E entre tantos que surpresos se adivinham
Ladeados por um porco que disputa
Há sempre um assumido e grande filho da puta

Tó Barbo