Não é que eu não soubesse que filósofos são assim uma espécie estranha, uns escanzelados de figura mas com cabeleiras recheadas de ideias geniais, mentes abertas, se querem que vos diga. Embora mal alimentados, diria mesmo subnutridos, mas com a veia da criatividade a sair pelos poros, a carga do conhecimento a abater a linha dos ombros, o brilho da reflexão profunda a angustiar as olheiras… ou era o que eu pensava antes de conhecer o Assis Matoso.
E era aí que começava a estranheza, no raio do nome, porque o que ele era mesmo era Carlos Manuel. Mas pronto, eu fazia-lhe a vontade antes que ele se lembrasse que Witgenstein lhe assentava melhor, por via daquela obsessão de que não valia a pena indagar sobre os significados das palavras mas sim sobre as suas funções práticas. Tinha sido essa dica que me tinha feito arrebitar a orelha - a das coisas práticas.
Por exemplo “charro”, dizia ele, podia ser tudo o que se quisesse, mas o melhor sempre era lançar-lhe o isqueiro e fazer dele uma forma de vida.
A mim arrepiava-me um pouco que tudo se resumisse a uma estrutura lógico-formal, tanto mais que ali a estrutura volátil era ele, a esfumar-se para dar lugar a um palavreado contínuo e empastelado. E aos poucos, obedecendo à minha lânguida inclinação para a intelectualidade, ia-lhe dizendo que podíamos conversar no quarto. Porém, o Carlos Manuel, do alto dos seus quase dois metros, olhava para a cama e dizia que a metáfora visual ali presente se desmaterializaria logo que o olhar dele se desviasse para outra realidade; e que o real não era apreensível a não ser pela crença.
Comecei por beber-lhe as imagens linguísticas, à falta de melhor uso do órgão da fala. Depois insisti que podíamos existir em comunhão de fenómenos, que são coisas percebidas pelo corpo. E ele, que não, que toda a coisa em si não passa de percepção da consciência. Mas sempre do lado de fora do quarto. Quase garanto que ele nem me ouvia, tal era a fluência do seu raciocínio filosofal.
Recitava Kierkegaad quando se dirigiu para mim de copo na mão, como se dentro do copo estivesse a incerteza objectiva e o processo de apropriação daquela interioridade passasse pela ingestão rápida do conteúdo, assim de uma assentada.
E foi de copo emborcado e olhos no além-tecto, que o vi tropeçar nos cabos que atravessavam o chão da sala e estatelar-se sobre uma pilha de livros abertos, dizendo ainda que só Wagner podia salvar a cultura alemã.
E a mim, já a salvo, do lado de fora da porta do apartamento, só me ocorreu a máxima da Madame de Stael, que lhe atirei pelo eco das escadas: “quanto melhor conheço os homens mais gosto dos cachorros”.