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27 janeiro 2023

«Um dia no rio» - Rui Felício


Ninguém se lembrava de tanto calor como o daquela semana de Agosto de 1953. No Bairro, as persianas de madeira estavam todas fechadas. Só as abriam de noite para deixar correr uma aragem que refrescasse as casas.
Mesmo assim, o ar nocturno era quente, abafado…
No quintal do clube do Bairro, naquela noite passava um filme da II Guerra Mundial. 
Talvez influenciadas pelas atrocidades da guerra, as mulheres mais piedosas, abraçavam as suas crianças que também viam o filme, concluindo em voz sussurrada que este calor infernal era um castigo de Deus para os horríveis pecados que a humanidade cometia.
Um rancho de casais já tinha combinado ir na manhã seguinte passar o dia ao rio para fugir à canícula. Cestos de verga a abarrotar de croquetes, bolos de bacalhau, pataniscas, pão, torresmos, tachos, fogareiros a petróleo, talheres, toalhas de mesa, garrafas de vinho, bilhas de barro com água e gasosa para os miúdos já estavam preparados De manhã seria só pegar e arrancar…
A criançada fez o percurso em alegre galhofada e os pais ajoujados ao peso da traquitana que levavam , subiram o Alto de São João e iniciaram a descida para a Portela.
Descarregaram a tralha junto a um dos pilares da ponte, aproveitando a sombra do mesmo e as mulheres começaram logo a preparar o necessário para mas tarde assarem as sardinhas compradas de véspera às peixeiras da Figueira que vinham ao Bairro vendê-las.
“Sardinha da areia! Três dez tostões…”, apregoavam…
Os homens, de fato de banho, deitados na água rasa, nadavam, chapinhavam, riam…
Os miúdos completamente nus corriam na areia, brincavam ao agarra, e em louca algaraviada atiravam-se para a água. Todos sabiam nadar. Tinham aprendido na piscina do estádio…
- Vamos brincar ao submarino? perguntou um dos rapazes ao grupo que o rodeava.
- Vamos! Gritaram todos…
O primeiro deitou-se de costas na água. Os braços estendidos ao longo do corpo, só com os pés a bater foi deslizando em direcção à margem.
Um por um, os outros foram fazendo o mesmo e depois repetiram da margem para o areal com risos e palmas dos que já tinham regressado. 
A irmãzita de um dos rapazes, chegou-se a ele e perguntou-lhe:
- Mano, as meninas não podem brincar a esse jogo?
O rapaz empertigou-se como um oficial alemão e foi peremptório:
- Não, vocês não podem!
- Mas as meninas também querem… - insistiu  a miúda, a fazer beicinho.
- Não, já disse!
- Porquê?
- Ora… vocês não têm periscópio…

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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16 janeiro 2023

«A Florbela» - Rui Felício


Naquele tempo, o Dr. Alberto Noronha era reconhecido como o mais elegante peralvilho da cidade de Coimbra.
Pelo menos uma vez por mês deslocava-se a Lisboa, à alfaiataria Rosa & Teixeira, da Av. da Liberdade, para mandar fazer os seus fatos.
Como advogado, de reconhecido renome, havia quem dissesse à boca pequena que não era de grande competência. Porém, a sua fama granjeara-lhe clientes de grande poder económico.
Ganhou muito dinheiro.
Já como janota, toda a gente via o homem mais elegante de Coimbra.
Nunca casara. Era o eterno conquistador celibatário, com o sonho  de vir a ser amante de uma actriz, cantora ou bailarina de 1ª linha.
Estas ligações duravam enquanto cintilasse o brilho da estrela. Logo que ofuscasse ele encontrava um pretexto para a finalizar e partir para outra.   
A sua tara implicava que essa relação, conquanto fugaz e efémera, fosse pública e desse brado na cidade.
Quando alguém o questionava sobre a sua idade, invariavelmente a resposta era:
- Anda à volta dos quarenta. Durante mais de uma dezena de anos esta resposta repetia-se sempre.
Os antigos colegas da Fac.Direito, todavia, afirmavam que teria mais de cinquenta.
As mulheres, por seu turno, diziam que a sua idade rondaria não mais de 40.
Aconteceu naquele ano, que o TAGV programou três espectáculos de Ballet com a Companhia do Ballet Gulbenkian.
 A estrela da Companhia era uma belíssima bailarina portuguesa de origem escandinava.
Conhecida a noticia da vinda ao TAGV da Companhia Gulbenkian, o Dr. Alberto Noronha, começou de imediato a tratar do necessário para preparar o camarim daquela bailarina de modo a proporcionar-lhe o conforto adequado ao seu estatuto.
Na véspera da estreia, ia realizar-se o ensaio geral. Entrou no TAGV de braço dado com a estrela da Companhia a quem se dera já a conhecer no Hotel onde estava instalada.
A bailarina ficou espantada com o conforto do camarim, com espelhos, luzes e um sofá. Agradeceu ao Dr. Noronha o bom gosto na decoração. Mandou-lhe um beijinho sonoro e repenicado com um gesto da mão sobre a qual soprou na sua direcção.
- Dá licença? 
Era o Director de Cena que abria a porta do camarim, acompanhado por uma mulher de ar doentio, idosa, com olheiras, pobremente trajada.
- É a costureira que o Sr. Dr. pediu.
- Muito bem, Obrigado. 
A bailarina, mirou-a com ar de comiseração e atreveu-se a perguntar-lhe.
- Está doente?
- Já estou boa. Tive uma doença grave. Tive alta do hospital há três dias.
- Bem, vamos a isto! sentenciou a bailarina, sentando se em frente ao espelho e começando a maquilhar-se.
- Sente-se aqui!, e intimou a costureira a sentar-se na cadeira a seu lado.
Fixando o olhar, através do espelho, no Dr. Noronha, refastelado no sofá, a estrela do Ballet comentou:
- Já ouvi a seu respeito que você adora artistas.
- É verdade, respondeu ele.
- E há quanto tempo dura essa doidice?
O Dr. Noronha estalou os dedos.
- . Isso já passou há muito. Bem vê, estou velho agora. Orço pelos quarenta…
- E qual foi a sua última paixão. Como se chamava?
- Foi há muito. Está esquecida. Não sei nada dela. Nem sei se terá morrido já. Chamava-se Florbela. Era actriz  cabeça de cartaz em teatros de Lisboa.
Acrescentou:
- Há mulheres que são como os passarinhos. Os que não foram mortos a tiro ou engaiolados, nunca ninguém lhes encontra os cadáveres.
. Meu caro Doutor, agora tem de sair, porque me vou despir.
 Logo que ele saiu, a costureira ajudou-a a despir.se.
Mirou a bela bailarina, agora nua  e atreveu-se a comentar:
- A senhora tem um corpo fantástico.
Ao mesmo tempo que ela lhe ajustava o vestido de seda, prendendo com alfinetes algumas pregas, escutou a bailarina que lhe disse com ar admirado e algo desdenhoso:
- Acha?
- Eu também já fui bem feita de corpo, mas.. não tive juízo: fiei-me demais nos homens.
A costureira não resistiu a dar-lhe um conselho:
- Se quer aceitar um conselho, filha, preste mais atenção à sua arte do que a todos esses engatatões que fazem das mulheres um objecto de luxo e nada mais. Só assim a senhora evitará o hospital e a miséria.
A bailarina, com má cara, disparou:
- Mas afinal quem é você para me estar a fazer esse tipo de observações?
- Desculpe minha Senhora. Eu, eu sou a Florbela…

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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30 abril 2022

«O segredo» - Rui Felício

«Mistério» - Adão e Eva dão as mãos
enquanto tapam os seus sexos com folhas - 
F.F., Barcelos - coleção de arte erótica
«a funda São»
Ao contrário do que reza a Bíblia, Deus criou a Mulher em primeiro lugar.
Tinha idealizado que ela gerasse filhos de forma espontânea. Evitaria assim a disputa entre macho e fêmea que tantos e tantos males poderia trazer ao mundo.
Mas Eva, desconsolada por ver que todas as fêmeas do Paraíso tinham o seu macho, excepto ela, pediu encarecidamente a Deus que criasse o Homem.
Deus tentou dissuadi-la explicando-lhe que o homem, pela sua natureza de macho, seria arrogante, havia de querer ser sempre o primeiro, ser ele a mandar, ser o mais importante, recusando um papel secundário na relação com ela. 
Eva respondeu-lhe que não haveria mal em que o homem assim pensasse. Ela fingiria que  era ele quem mandava, mas que, na realidade, seria ela, Eva, a comandar secretamente as suas atitudes sem que ele se apercebesse.
Deus, na sua magnanimidade, acedeu com a condição de tal segredo se manter para todo o sempre.
E gerou o Adão...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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14 janeiro 2022

«O Belo e o Feio» - Rui Felício

Nas últimas décadas, tem vindo a ser recuperado o conceito de beleza helénica, de linhas equilibradas, simétricas, suaves, expurgadas de imperfeições.
As mulheres eram apresentadas de seios pequenos, erectos, nariz atilado, lábios cheios, cabelo tratado.
Os homens, de cabelo encaracolado, olhos profundos, peitorais firmes, musculados, ventre liso e pénis pequeno.
Pelo meio dos séculos, o conceito de beleza passou por variados padrões. Todos se lembram das matronas anafadas da Renascença ou das macilentas mulheres da época romântica.
Ou dos homens rudes, guerreiros, mal lavados dos tempos da Reconquista Cristã.
Ou  mesmo dos efeminados cavalheiros do séc XVIII, de cabelos empoeirados e finas pernas envoltas em apertadas meias de seda.
O belo e o feio são conceitos, são modas.
Mas, transversal a todas as épocas é o conceito imutável de que a beleza resulta mais daquilo que se é, do que daquilo que se aparenta ser.

Rui Felício
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18 dezembro 2021

«Fazer amor com controle» - Rui Felício


Vai para quinze anos fui parar ao Hospital de Santa Maria com uma tensão arterial altíssima. Estive umas horas no Banco de Urgências a fazer sucessivas medições da pressão arterial, ao mesmo tempo que os médicos de serviço me iam fazendo engolir comprimidos nem sei bem para quê.
 Lembro-me apenas de, a certa altura, também me terem dado uma injecção  com a finalidade de me obrigar a urinar. 
Explicaram-me que a expelição da urina pode facilitar a descida da pressão arterial. Não me doía nada, sentia-me relativamente bem, mas os valores das medições continuavam altos. A médica de serviço disse-me:- Não posso deixá-lo sair daqui com a tensão arterial tão elevada. Corre o risco de lhe dar alguma coisa já à saída do Hospital e voltar aqui com algum problema grave.
- Vai ter que ficar aqui em observação esta noite.
- Ok. Respondi eu. A Doutora é que manda.
Permaneci até às quatro da manhã no SO e depois mandaram-me para uma enfermaria com a tensão arterial já estabilizada.
No dia seguinte depois de almoço uma médica veio ter comigo à enfermaria, conversámos e ela disse-me que me ia dar alta acompanhado com uma receita de uma série de comprimidos para ir tomando.
--------------------------------------------------
Daí a 15 dias voltei ao Hospital para uma consulta que tinha ficado marcada pela médica. Auscultou-me e disse-me que estava tudo normal e que me ia mandar fazer uns exames.
 Perguntei-lhe quais seriam as precauções que devia ter no que respeita à alimentação. Mandou-me reduzir ou mesmo eliminar o sal, as carnes com demasiadas gorduras, enfim essas coisas que todos já ouvimos falar...E, claro, que deixasse de fumar.
Não me falou numa coisa que me preocupava e que para mim não é menos importante que a alimentação e o tabaco
.
Perguntei-lhe: Doutora e sexo?
E ela, franzindo o sobrolho: Diga?!!!
Retorqui-lhe, explicando: 
Sexo, Doutora! Fazer amor! Na minha ignorância de medicina, parece-me que a tensão arterial pode descontrolar-se quando se faz amor. E queria que me dissesse que precauções devo tomar. Ela compreendeu e recomendou:
 Bom, são coisas naturais a que o organismo se adapta, não havendo razão para medidas especiais,  mas reconheço que nada custa prevenir  os riscos. 
 Recomendo-lhe que, nesses momentos, mantenha algum controle da tensão, evitando excessos e exageros.
Como sou obediente, desde então, tento fazer amor ( quando calha...) com o medidor de tensão apertado no meu braço e o tubo ligado a um monitor que comprei e mandei pendurar na parede do quarto, para onde olho de vez em quando, fazendo o que a médica mandou:
Controlando a tensão arterial que o monitor vai indicando...

Reedição de um conto Felício publicado aqui em 3 de Setembro de 2016

Rui Felício
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11 dezembro 2021

«Violência doméstica» - Rui Felício


O Xavier era um miúdo irrequieto, ingénuo e, por causa da sua traquinice, era o bombo da festa na escola e em casa.
Fomos colegas na primeira classe da escola da Rua dos Combatentes.
Um dia, no recreio, contou-me a tareia que na noite anterior a mãe lhe tinha dado.
Só porque entrou no quarto dos pais sem bater à porta..
Furiosa, a mãe levantou-se, berrou-lhe que estava farta de o avisar para não entrar sem bater e pedir licença. 
Baixou-lhe as calças e desancou-o com fortes palmadas no rabo. Até ainda tinha as marcas!
- A minha mãe é uma fera - choramingava o Xavier - E não foi só a mim que ela bateu. O meu pai também deve ter levado. Eu bem o vi com as calças em baixo.

Rui Felício
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27 abril 2020

«Exéquias fúnebres» - Rui Felício

Em Torres Novas havia uma Agência Funerária que ganhou fama por fazer sempre um arranjo floral muito artístico relacionado com a profissão do falecido, e que colocava em lugar de destaque durante o velório.
Toda a gente conhecia, elogiava e recordava alguns dos mais bonitos desses arranjos, cujas fotografias a Agência exibia com orgulho na montra do estabelecimento.

Eu próprio me recordo da bela tesoura feita de flores construída quando morreu a D. Ermelinda costureira, de um molar florido feito para o funeral do dentista Dr. Tomás ou de uma ferradura composta por pequenas flores silvestres, quando faleceu o Ti João ferrador.

Certa noite, muitos torrejanos enchiam a capela mortuária ao lado da Igreja de São Pedro. Vinham velar o corpo do defunto Dr. Alfredo Bismark, figura grada da cidade e respeitado médico. Ao lado da urna, destacava-se uma enorme coroa de flores em forma de coração, em homenagem àquele eminente cardiologista.

Sentada a um canto, a D. Celeste abafava o riso. Uma amiga perguntou-lhe baixinho porque se ria tanto. Quanto mais a outra queria saber a razão do riso, mais incontrolável ele se ia tornando. A ponto de a D. Celeste se ter levantado com a mão a tapar a boca e saído da capela onde explodiu em enormes gargalhadas, sempre com a amiga atrás dela.

- Que coisa, Celeste! Que diabo te faz tanto riso?
- Viste a coroa de flores em forma de coração ao lado do caixão do Dr. Bismark?, perguntou ela à amiga, por entre as gargalhadas que não parava de soltar.
- Sim, vi. E daí? Já sabemos como trabalha esta Agência Funerária. Se ele era o maior cardiologista da nossa terra, tem toda a lógica que lhe tenham feito uma coroa em forma de coração…

- Por isso mesmo eu me rio, disse a Celeste. Estou a imaginar como será quando o meu marido morrer. Que tipo de arranjo floral lhe vão fazer. Ele que é o único ginecologista da cidade.

Rui Felício
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11 fevereiro 2020

«Cheiro a desejo» - Rui Felício

Quando viu aquela bela mulher vestida com roupa de cabedal, o homem ficou com um nó na garganta, salivou de desejo, as pernas tremiam-lhe, teve vontade de lhe tocar com os dedos, os olhos semicerrados, o coração a bater desordenado, a respiração ofegante...

O cheiro que dela emanava fez-lhe imaginar os estofos de um carro novo!

Rui Felício
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09 outubro 2019

«Intenso desejo» - Rui Felício

Cautelosamente, com os dedos trémulos, ele puxou devagar, quase sem lhe tocar no corpo, a ponta da túnica acastanhada que a cobria e lentamente fê-la deslizar para o chão.

Livro «Anatomia do desejo»
Simon Andreae, 2003, Campo das Letras - Editores
na colecção de
arte erótica «a funda São»
Afagava-a ternamente enquanto a tirava, como que a dizer-lhe que não tivesse receio, que ele seria meigo, doce, cuidadoso.

Era a primeira vez que um homem a despia. Sentia-se insegura, mas ao mesmo tempo o corpo humedecia-se, abandonava-se ao calor e ao toque das suas mãos.

Por baixo da túnica acastanhada, já mais frenético, quase impaciente, tirou-lhe a veste que ainda lhe escondia o corpo.

Não conseguia despegar o olhar daquela pele branca.

Não era já só imaginação! Ele agora sentia aquele corpo desnudo nas palmas das suas mãos, irresistível, parecendo convidá-lo a prosseguir.

Os olhos humedeceram, marejaram-se-lhe de lágrimas, antecipando o climax, os músculos retesaram-se contendo e prolongando o desejo de a ter plenamente.

Por fim, descontroladamente, penetrou-a em repetidos, rápidos e firmes movimentos.

Era doido por cebola picada…

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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25 setembro 2019

«O Louva-a-Deus» - Rui Felício


A alcunha de “Louva-a-Deus” assentava-lhe que nem uma luva.
Na verdade, os dois berlindes esbugalhados que lhe sobressaiam das órbitas quando tirava os óculos de lentes grossas, em tudo se assemelhavam aos olhos do conhecido insecto.
A imagem compunha-se quando foi para Mafra e lhe vestiram a farda verde militar.
Fizeram-no alferes e mandaram-no, como tantos outros, para a Guiné.
Integrado na sua Companhia, estacionou em Farim e passou a frequentar a casa comercial do Sr. Pompeu, comerciante branco que na sua loja, vendia tecidos, arroz, tabaco, açucar e variados enlatados. Num anexo à loja funcionava um bar onde os militares e população bebiam cerveja, whisky e petiscavam moelas em molho picante e frango assado à cafreal.
O Louva-a-Deus, aliás, o Alferes Eduardo Oliveira, tinha sempre no Bar, por sua conta, uma garrafa de whisky que ia parcimoniosamente vertendo no copo, sob o olhar sorridente e amável da Leonor, mulher do Sr. Pompeu que se afadigava em servir os clientes.
A Leonor era uma apetitosa mulher beirã, de trinta e poucos anos, de seios fartos, ancas largas e coxas robustas, que o Eduardo não parava de seguir nas suas deambulações atrás do balcão tosco de madeira, deixando galopar a imaginação à medida que os vapores do álcool lhe iam ampliando os sonhos.
Um dia perguntou-lhe porque é que ele, a partir do segundo copo, tirava sempre os óculos antes de voltar a deitar mais whisky no copo. O Louva-a-Deus explicou-lhe que sem óculos não via quase nada e que assim, tirando-os, não sabia se estava a deitar muito ou pouco.
O riso dela mostrou uma fiada de dentes alvos na boca carnuda entreaberta, cheia de promessas que um concupiscente piscar de olho alimentou no Eduardo a esperança de maiores avanços futuros.
A sintonia entre os dois aumentava de dia para dia.
Distraídos toques de mãos sobre o balcão eram o inegável sinal do desejo mútuo que ambos claramente nutriam um pelo outro.
O Sr. Pompeu de vez em quando, aproveitava colunas militares para ir a Bissau negociar a compra de mercadorias para a sua loja, ficando lá de um dia para o outro.
Nessas noites, o Eduardo subia ao 1º andar por cima da loja onde a Leonor ansiosa o esperava para noites insaciáveis de amor.
Um mês antes de terminar a sua comissão e regressar a Lisboa, sucedeu o inesperado.
Daquela vez, a coluna militar em vez de regressar na manhã seguinte, voltou a Farim durante a noite e, no quarto, a Leonor e o Louva-a-Deus, ouviram o ferrolho da porta ranger e o Sr. Pompeu, cá de baixo, gritar:
- Leonor, meu amor, vim mais cedo. Estás acordada ainda?
O Eduardo, aflito, precipitou-se da janela, saltando na escuridão da noite.
Tão desastradamente o fez que bateu com o joelho numa pedra fracturando a rótula.
Esgueirou-se, seminu, para o quartel, a gemer baixinho e a coxear, com os olhos fora das órbitas de susto e de dores.
Um mês depois, já na sua terra natal em Vinhais, ainda claudicando do joelho, era respeitosamente cumprimentado pelos conterrâneos, admirado como herói da guerra da Guiné, onde, como fizera constar, tinha sido ferido em combate...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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07 agosto 2019

«Noutros tempos» - Rui Felício


Corria o ano de 1199.
Ainda de madrugada, o Rei D. Sancho I, saiu de Coimbra com o seu numeroso séquito a caminho de Belmonte onde iria conceder foral àquela vila serrana.
A meio caminho, mandou parar numa propriedade de um nobre nas margens do rio Alva.
Eram 10 horas da manhã e foi recebido com grandes mesuras e vénias pelo proprietário que, de imediato, mandou matar dois vitelos que iria mandar assar para repasto do Rei e da sua comitiva.
Este procedimento não era uma simples cortesia. Era normal e obrigação dos ricos-homens darem estalagem e alimentação ao Rei e ao seu séquito pelo tempo que demorasse a sua visita.
D. Sancho disse-lhe que estava fatigado da viagem e ordenou - lhe que lhe indicasse aposentos para descansar.
A um sinal do rico-homem, a mulher deste levou o Rei para a casa senhorial e indicou - lhe o melhor quarto onde Sua Majestade poderia recuperar energias.
O Rei pegou no braço da jovem mulher e arrastou - a para a alcova onde desfrutou do seu belo corpo durante algumas horas.
Por volta das 3 da tarde o rico-homem foi ao quarto, entreabriu a pesada porta, enfiou a cabeça e, respeitosamente, comunicou ao Rei que o banquete estava servido.
Claro que não deixou de ver a sua mulher a dormitar no peito cabeludo de Sua Alteza Real, mas nada disse.
Logo que D. Sancho se encaminhou para a mesa montada em frente à casa dando início ao repasto juntamente com os seus acompanhantes, o proprietário da quinta senhorial chamou uma dúzia de trabalhadores e ordenou-lhes que se servissem da sua mulher a seu bel prazer.
Em seguida mandou que lhe tosassem o cabelo, e que lhe colassem na pele do seu corpo nu, penas de galinha e de pato com o esterco do galinheiro.
Mandou que a montassem no dorso de um burro virada para as traseiras do animal, que espantou com uma chibatada.
O burro, com a mulher nua em cima aos gritos, desatou a zurrar, desaparecendo em louca correria no pinhal próximo.
O Rei soube do que se tinha passado e disse ao homem:
- Não era preciso exagerar tanto! Tens de aprender a administrar a justiça de forma mais civilizada.
O homem retorquiu:
- Assim farei, meu Senhor, quando voltar a acontecer.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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10 junho 2019

«A vida mudou...» - Rui Felício

Felizmente, ao contrário da maioria, ela não foi afectada pelas novas medidas das autoridades.

Mas nem por isso deixa de lamentar as mudanças operadas. Não tanto por sua causa, que não chegou a ser atingida, mas, principalmente, pelas suas amigas e amigos que se encontram, muitos deles, praticamente proibidos de aparecer, relegados para esconsos, fétidos e obscuros recantos, a pouco e pouco caídos no esquecimento, desprezados, inúteis, condenados a vegetarem até que lhes chegue a morte inglória.

Os poucos que ainda se lembram dessas amigas e amigos, acabam por gradualmente se irem afastando. Na verdade, os tempos actuais levam ao esfriamento dos sentimentos, pela absorção do frenesim da vida, em que impera o egoísmo e a preocupação com a própria vida, mais do que com a dos outros.

É bela, de corpo bem desenhado. É sempre bem vinda, adulada até, nas mais badaladas reuniões, festas, acontecimentos sociais e políticos.

Ao contrário das graves, injustamente menosprezadas, ela, a palavra esdrúxula, é das poucas que ainda se faz acompanhar do acento agudo, seu companheiro inseparável, que lhe acaricia, carinhoso, a sílaba tónica.

(excepção à regra do Acordo Ortográfico)

Rui Felício
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15 dezembro 2018

«Um Natal diferente» - Rui Felício

(Há muitos anos, em Bissau,no tempo da guerra de África)

O Clube de Oficiais do QG de Bissau, tinha restaurante, bar, cinema, piscina e uma ampla área arborizada de mais de 20 hectares, ponteada por pequenas vivendas, onde viviam as altas patentes do exército. Era da capital que dirigiam a guerra da Guiné. Bem instalados, a maior parte deles nunca tinha posto os pés no mato que esse era o lugar para os milicianos...
Naquela sexta-feira à noite, véspera da noite da Consoada, o Major Beltrão estava em casa e mirava a sua mulher a arranjar-se para ir ao Clube de Mulheres de Bissau à reunião semanal de chá beneficente a favor da população desprotegida.
Aquela reunião iria ser diferente, mais sofisticada, por ser época de Natal.
Olhava-lhe a longa racha do vestido azul que deixava ver a parte lateral da coxa bem desenhada, apetitosa, provocante. O decote generoso mal escondia os seios alvos, firmes, palpitantes. Em frente ao espelho, ela retocava com baton vermelho vivo os lábios sensuais e o desejo do Major começava a tornar-se incontrolável. Não resistiu e pediu-lhe para ela não ir. Que ficasse em casa, que a sexta-feira era um dia especial e adequado para fazerem amor.Ela respondeu-lhe que também era isso o que lhe apetecia, mas que, sendo mulher de um oficial superior, parecia mal não ir. Era por causa do bom nome dele que fazia o esforço de assistir àquelas enfadonhas e cínicas reuniões de mulheres.
O major estranhava era que ela se aperaltasse toda, que se vestisse de forma tão sensual, para ir àquelas reuniões semanais. Além de que a maior parte dos seus colegas nunca lhe tinha falado nesse clube de mulheres. Já à porta, ela sorriu-lhe, beijou a palma da mão, soprou-a em direcção a ele, a simular um beijo, saiu e meteu-se no carro.
O major, desconfiado, chamou o ordenança, meteu-se no jeep e ordenou-lhe que seguisse o carro da mulher.
Pelo caminho, perguntou ao soldado se a mulher dele também ia ao Clube de Mulheres. O soldado sorriu e esclareceu-o que ela nunca saia de casa sozinha. Isso é que era bom!, dizia ele...Àquela hora estava a lavar os tachos e as panelas e a preparar as coisas para a Consoada do dia seguinte.
«Mulher escoltada»
1960. Taça em porcelana com mulher levantando
a saia, com meias de ligas, mostrando dois
soldados de chumbo. Peça de Raymond Peynet
para a Rosenthal, da colecção de
arte erótica «a funda São»
Na sua opinião, as mulheres têm de ser tratadas sempre com duas pedras na mão.
Ná! Com ela isso não aconteceria nunca. Andava sempre de rédea curta. E quando, por distracção, punha o pé fora do estribo, levava logo uma arrochada para se manter no lugar que lhe competia...- Ponho as mãos no lume por ela! Desculpe-me dizer-lhe, meu major, mas tem que ser mais rigoroso com a sua esposa para ela não descarrilar.
Chegados à baixa da cidade, viram a mulher do major a bambolear as ancas e a entrar no edifício do tal clube.
Desconfiado e roído de ciúmes, o major ordenou então ao soldado que fosse lá dentro e a trouxesse à sua presença. Ela é loura, como tu sabes, e está com um vestido azul. Minutos depois, o soldado saiu aos berros, arrastando uma mulher, toda descomposta, ao mesmo tempo que lhe ia descarregando uma saraivada de murros e pontapés.
O major saiu do jeep e gritou-lhe:
- Ouve lá, estás maluco? Essa é morena e tem um vestido vermelho. Não é a minha mulher, que é loira e traz um vestido azul!
- Pois não, respondeu o soldado, fora de si. Esta é a minha! Já lá volto para ir buscar a sua.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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10 novembro 2018

«Surreal» - Rui Felício

«Mãe galinha»
2009. Uma galinha esconde, protege e vigia um
casalinho que só se vê quando a levantamos do
suporte. Vinda do México para a colecção de
arte erótica «a funda São»
Tinha uns nove anos de idade...
Ela, mais nova, tinha uns olhos vivos que me miravam cúmplices sempre que, pela manhã, eu saía de casa e imediatamente a procurava.
Corria na minha direcção roçando o corpo no meu. As minhas mãos acariciavam-na e sentia que ela gostava.
A boca fina, os pés descalços, o corpo aveludado, tornavam-na a minha grande amiga, confidente dos meus sonhos de criança.
A Maria ouvia, em silêncio atento, tudo o que eu lhe confessava.
Partilhava com ela os meus anseios, as fantasias das minhas brincadeiras.
Entre nós, de há muito, se estabelecera uma relação que mantínhamos em segredo.
Que se fortalecia a cada dia que passava...
Dava-lhe guloseimas que ela saboreava, suavizando o olhar que tanto me enternecia, forma de me mostrar o seu agradecimento.
Entre muitas outras, fora aquela que eu escolhera.
Não porque fosse especialmente bonita. Mas porque o seu olhar era diferente do das outras, porque faiscava quando se cruzava com o meu.
Ela abandonava as brincadeiras com as amigas, correndo para mim logo que me via...
...........................
Numa segunda-feira, quando eu regressava da escola para almoçar, estranhei não a ter visto.
A minha mãe chamou-me para almoçar. Entrei em casa, sentei-me à mesa já posta e o meu coração acelerou loucamente.
Ali estava a Maria, nua, o lindo corpo dourado, deitada em cima da mesa.
A minha mãe tinha decidido assar no forno a minha galinha de estimação, ali ainda fumegante...
Não consegui almoçar...

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
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27 outubro 2018

«Ciúme, amor e paixão» - Rui Felício

«Seximorfoses»
2000. Desenho original da colecção de
arte erótica «a funda São»
Mil vezes me apaixonei, mas apenas três amei verdadeiramente.
A paixão surge inesperada, quase violenta, irracional, sem conceder tempo a amadurecer e estabilizar o sentimento que lhe subjaz.
O amor é o diamante que o fogo da paixão não consumiu , depois desta se esvair em chamas.
O amor, quando existe, incombustível, perdura ao longo dos tempos, lapidado ou não, inesquecível para todo o sempre.
O ciúme, essa verdadeira doença, é comum à paixão e ao amor, mas vai esfriando com a solidificação da confiança.
Estou a passar por um momento em que ainda não sou capaz de aquilatar se o que sinto é paixão fugaz ou se já é amor duradouro.
O que sei é que o ciúme me morde, me deixa inquieto, inseguro, doente...
Hoje, como tem acontecido desde há uns tempos, voltei a beber a bica na esplanada do Café Central no centro da Ericeira. Como sempre, sentei-me no canto mais próximo da porta, ao lado dela, onde já estava, esperando a minha vinda...
Sorri-lhe. Pedi-lhe que me guardasse o Diário de Noticias que tinha acabado de comprar na tabacaria do outro lado do largo.
Simpática como sempre, permitiu que lhe colocasse o jornal no colo.
Ao fazê-lo, rocei a mão no seu braço sentindo uma intimidade que ambos disfarçávamos tentando ocultá-la dos olhares do Mário Lino que nos observava, acabado de chegar como quase todos os dias acontece àquela hora.
Cumprimentou-me, dissemos umas quantas banalidades sobre o tempo e ele perguntou-me delicadamente se eu não me importava que ele se sentasse ao colo dela, visto que a esplanada estava cheia.
Apanhado pela inesperada pergunta, só me ocorreu dizer-lhe:
- Desde que ela não se importe, murmurei...
Mais de ouvir do que falar, ela pareceu assentir, ajeitar-se e ele sentou-se ao colo dela, agradecendo-me.
Estupefacto, recolhi o jornal que o Mário Lino me devolveu, roído de ciúmes por causa daquela elegante, bonita, limpa e arejada cadeira de alumínio que tem povoado os meus sonhos...

Rui Felício
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20 outubro 2018

«Faz hoje anos» - Rui Felício

Estudantes de Coimbra... das Caldas
na colecção de
arte erótica «a funda São»
O Quim Reis desafiou-me e eu, sempre pronto, acedi.
Ele namoriscava uma moça da terra da avó dele e queria ir até lá para estar com ela.
Tarei era a terra próxima de Vila da Feira onde teríamos que nos dirigir.
A dormida não seria problema, garantiu-me o Quim Reis. Ficaríamos uns dias em casa da avó, uma vivenda grande e antiga de rés-do-chão e primeiro andar. Quanto à viagem teríamos que a fazer à boleia pelo que, para a facilitar, convinha que fossemos de capa e batina.
E assim fizemos. Saímos do bairro e postámo-nos ao pé da Estação Velha.
Depois de três boleias diferentes, lá chegámos a Tarei.
As vindimas tinham ocorrido uns dias antes pelo que na manhã do dia seguinte, fomos convidados para irmos provar o vinho “monstro”, corruptela popular para designar o mosto.
Era um liquido dulcíssimo, obtido após a fermentação inicial, em que a quantidade de açúcar ainda elevada e não completamente convertida em álcool lhe dava um travo agradável ao paladar, encorpado, quase mastigável.
Já não me lembro de quantas adegas visitámos. Pareceria mal não retribuirmos a simpatia dos convites, razão pela qual em todas bebíamos um ou dois copinhos do néctar.
À tarde, regressados a casa, as tripas começaram a revolver-se, pois que o vinho “monstro” provoca desarranjos intestinais, segundo nos explicou serenamente a avó do Quim.
Depois de sucessivas correrias para a casa de banho até ao anoitecer, a juvenil idade ajudou a restabelecer a normalidade. E ainda bem, porque nessa noite estava programado, no terreno fronteiro à casa, um bailarico para assinalar o fim das vindimas.
Ao som de uma concertina, um bombo e um violão, os convidados dançaram freneticamente as modas que os músicos iam tocando.
O Quim com a sua namorada.
Eu, com a criada de servir da casa.
Mau grado o calor, e porque outra roupa não tínhamos levado connosco, dançámos vestidos de capa e batina.
A minha parceira de dança e eu, que os calores do tempo e da juventude incentivavam, enrolávamos os corpos colados num misto de alegria e desejo.
A certa altura, a rapariga, certamente convencida, pelo traje que usávamos, que nós éramos seminaristas, segredou-me:
- Você, para padreco, é muito atiradiço...

Rui Felício
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06 outubro 2018

«Deleite» - Rui Felício

«Copo de leite da vaquinha»
Arte da Ritzenhoff na colecção de
arte erótica «a funda São»


Lácteo céu, entremeado
Por rasgões onde o sol espreita
O meu amor, minha maleita
Fico quieto, inerte e só.
És um céu triste e pesado,
Meu confidente e meu deleite.
Mas que, desfeito, és leite em pó

Rui Felício
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29 setembro 2018

«A força do amor» - Rui Felício

«Rocha vulva»
Pedra recortada com minerais
no interior, da colecção de
arte erótica «a funda São»

Mil vezes a olhei, indiferente
Muitas outras a pisei, inconsciente.
Aquela lisa laje de granito
Estática, fria, estéril
Transformou-se em fecundo útero.
Rachou, alargou e permitiu
Que brotasse das entranhas
A bela, frágil e perfumada flor
Germinada pela inusitada força
Das suaves gotas do amor.

Rui Felício
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16 setembro 2018

«O fiel Black» - Rui Felício

Celibatário por opção, durante anos, o Dr. Mário de Castro, era, sempre foi, um homem de rotinas. Há trinta anos atrás, quando se empregou no Banco de Portugal comprou casa no Jardim da Parada em Campo de Ourique, onde ainda vivia.
Todos os dias saía de casa as sete e meia da manhã, tomava o pequeno almoço na Pastelaria Doce Camélia, na esquina da Rua Almeida e Sousa com a Tomás da Anunciação.
Apanhava o eléctrico na Ferreira Borges que o levava até ao Chiado, descendo depois a pé até ao Banco na Rua da Conceição, onde chegava pontualmente a um quarto para as nove.
Há meia dúzia de anos adoptara o Black, um fox terrier nervoso e agressivo com qualquer estranho que se aproximasse da porta, mas meigo e completamente fiel ao seu dono.
No ano passado o Dr. Castro finalmente foi atingido pelo cupido e casou-se com a Candida, empregada da Doce Camélia que o atendia todas as manhãs.
Trinta anos mais nova, a Candida era uma rapariga bonita, de olhos negros profundos. O corpo esbelto revelava o viço da juventude, a sensualidade, que se adivinhava incendiar-se ao mais pequeno toque, ao mais leve roçar.
Deixou o emprego quando se casou, ficando em casa com o Black que aos poucos se foi habituando à sua nova dona.
A agora respeitável D. Candida rapidamente percebeu que a solidão e placidez da sua nova situação social e de desafogo financeiro colidiam com a azáfama de empregada da pastelaria.
O Carlos, estudante no Instituto Superior de Economia, a São Bento, e frequentador da Doce Camélia, encontrou-a um dia no Jardim da Parada. Reconheceram-se, ela contou-lhe que tinha casado e, apontando com o dedo para um quarto andar, disse-lhe que era ali que morava agora.
- Quer conhecer a minha casa?
O Carlos acompanhou-a mas, ao transpor o portal, o Black rosnou-lhe, ladrou-lhe, mostrou-lhe os dentes raivoso.
Nos dias seguintes, aos poucos, o Carlos levava uns mimos para o cão, afagava-o, foi conquistando a sua confiança.
Agora, o Black, abanava o rabo quando ele entrava, lambia-o, mostrava o seu contentamento.
Estava conquistado!
Adormecia no sofá, enquanto o Carlos e a Candida, no quarto, se entregavam aos prazeres do amor de dois jovens sedentos, apaixonados.
Um dia, a Candida, como um suicida que se deixa atrair pelo abismo, insistiu com o Carlos que gostaria que ele conhecesse o marido.
Queria que se tornassem amigos, tanto mais que ele estudava Economia, o mesmo curso do Dr. Castro.
- E assim a vizinhança não estranhará as tuas vindas cá a casa, explicou ela, perante alguma relutância do Carlos.
Combinaram um encontro falsamente casual na pastelaria, onde ela lhe apresentaria o marido.
Depois desse encontro, o Dr. Castro disse à mulher que tinha gostado muito do rapaz. Pareceu-lhe educado, bem parecido, conversador e inteligente.
Fiquei encantado, sabes?
- E se o convidássemos para almoçar cá em casa um dia destes?, sugeriu-lhe o marido.
- Acho uma óptima ideia, meu amor, respondeu-lhe a D. Candida, com um beijo.
Ficou aprazado para o sábado seguinte.
Ao meio dia desse sábado, lá estava o Carlos.
Veio abrir-lhe a porta o próprio Dr. Castro, desculpando-se antecipadamente, com um aviso:
- Temos cá em casa um cão um bocado agressivo com estranhos. Não se assuste, meu amigo, que eu ponho-o na ordem.
Estupefacto, o Dr. Mário de Castro, viu o Black, arfando de contentamento, saltar para o colo do Carlos, lambendo-lhe as mãos, feliz, quase sorrindo...
Inteligente, percebeu tudo.
Desfez o casamento. Voltou ao celibato...

Rui Felício
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11 agosto 2018

«O costureiro» - Rui Felício

«Mulher nua»
Lucia Casatti, Itália, 2004
Óleo sobre tela, 90x61cm
Colecção de arte
erótica «a funda São»


Meigo, atento, ele despiu
aquela bela mulher.
Observou-a, perspicaz,
Sentiu-se de novo rapaz
mas manteve o sangue frio
Porque a profissão o requer.
Pelo corpo nu deslizou
as mãos suaves, cuidadosas
rodeou-lhe as curvas formosas
e nalgumas as quedou.
Nas ancas, nos seios cingidas...
Para costurar o vestido
de cerimonia, comprido,
precisava das medidas...

Rui Felício
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