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23 outubro 2019

«Caixa vazia» - João

"Sou de um tempo em que não existia SMS, Telegram, Messenger, Signal, Whatsapp ou sequer e-mail para as massas. Existia papel, um envelope e um selo, que podia lamber-se ou fixar-se com cola. Era um ritual moroso, envolvia colocar um papel numa posição adequada e sobre ele manejar um instrumento de escrita, que para a maioria seria uma esferográfica mas, para mim, era uma caneta de aparo.

Sou de um tempo em que todo o meu mês de Agosto era passado longe dos amigos e das raparigas de quem eu gostava, mais eu delas do que elas de mim, sempre existiu uma generosa dose de desequilíbrio nos afectos. Não existiam telefones móveis, e eu nem sequer tinha telefone fixo na casa onde passava as férias. Havia uma carripana da telecom que estacionava junto à praia e tinha umas cabines telefónicas, algo exótico para as gentes de hoje, mas que eu bem conheci.

A rapariga de quem eu gostava tinha prometido que escrevia. É certo que isso lhe custaria uns largos minutos, dependendo da minúcia até umas horas, mas ela prometera. Todos os dias, pela hora a que passava o carteiro, eu descia aqueles dois andares com excitação, de chave na mão, para rodar a pequena fechadura que segurava a porta da caixa de correio, de madeira escura por fora e clara por dentro. Aquele instante ao rodar a chave fazia da caixa uma espécie de schrödinger postal, a carta que eu desejava tanto estava quanto não estava. Durava pouco esse estado, porque abrir aquilo era rápido, e a excitação com que descera a escada, veloz, depressa se transformava numa profunda tristeza. Subia a escada vagaroso, às vezes com a dúvida sobre se o carteiro teria mesmo passado, mas sempre triste e muito cinzento. Talvez amanhã. Mas o amanhã estava a 24 horas de distância, e isso custava. Distância para repetir a tristeza, como havia de repetir-se todo o mês, à espera de uma carta que nunca veio.

Quanto esforço seria necessário para pegar num papel e escrever umas palavritas? Seria falta de envelopes? Dinheiro para o selo? Se fosse hoje seria mais fácil, mais rápido, em poucos segundos podia enviar uma coisa simples que fosse. Serviram-me bem todos aqueles dias de cara fechada e desconsolo a subir as escadas, porque pela vida fora havia de encontrar a caixa vazia muitas mais vezes, e ainda que não sentisse menor tristeza por isso, ao menos não me era sentimento estranho."

João
Geografia das Curvas

26 novembro 2018

«Lento» - João

"Passei a porta e ela fechou-se atrás de mim. Estavas à espera e fizeste-me sinal, apressada, enquanto me ordenavas “não digas nada”. Depois empurraste-me contra a parede e pressionaste o teu corpo contra o meu, primeiro com suaves movimentos de quem se ajeita, depois imóvel, em absoluto silêncio, de cabeça encostada a mim, o teu coração e o meu, primeiro mais rápidos, a pouco e pouco pacificando-se, a respiração conjunta, e as minhas mãos nas tuas costas, lentas carícias, e eu sem dizer nada como me pediste.

Findo um tempo, de certeza menos do que apetecia, separaste o teu corpo do meu, encostaste os teus lábios aos meus, docemente, devagarinho. Por fim, olhaste-me de um modo que eu não consigo descrever, nem para mim nem para a escrita, abriste a porta e deixaste-me ali, contra a parede, acompanhado pelo vazio, sem mais."

João
Geografia das Curvas

24 setembro 2018

«Protege o teu direito às bolachas» - João

"Há vinte anos – a conta é redonda, sem a preocupação de atirar ao alvo de modo certeiro – a minha preocupação com o açúcar era diferente da que tenho hoje. E a consciência muito menor. Hoje, o medo de morrer, a perda com essa coisa de morrer, do que fica, do que nos sentimos subtraídos, a noção de finitude, é imensamente maior do que outrora. Há vinte anos, ia eu escrever, um pacote de bolachas não era exactamente um conjunto de bolachas isoladas, era como um bloco uno, uma existência não dissociável em elementos menores. Um pacote de bolachas era para abrir e consumir até terminar. A eito. Gostava muito de bolachas.

A minha namorada de então convidou-me a passar por casa dela. Também gostava muito de bolachas, pese embora o físico dela fosse diferente do meu, não apenas nas coisas óbvias, mas na volumetria. Ela era de silhueta esguia, de certo modo uma gaja boa com as coisas certas nos locais adequados em dimensão certeira, e eu era, já, um portador de excessos, preparado para invernos de carestia em obediência à herança genética do homem das cavernas. Armazenar para sobreviver.

Disse-me ela, então, que lá passasse por casa. Tinha comprado um pacote de bolachas para comermos juntos. Isso podia ser, ou estar muito próximo, do ápice da felicidade peri-conjugal. Havia um gosto partilhado por um determinado tipo de bolachas, algo que fazia as nossas delícias gustativas e que não sei precisar em que nível de satisfação estaria quando comparado com diversas actividades de gratificação física íntima. A expectativa era grande.

Comer bolachas, foder a seguir. Sem recordar com detalhe o que pensava à época, suspeito que fosse pouco diferente disto. Recordo, com alguma exactidão, que nos sentámos e abrimos o pacote. Ela removeu uma bolacha que trincou em pequenas partes, e eu removi outra, que abocanhei, inteira, numa sofreguidão de um mundo que não conhece o dia seguinte. Avançava determinado para a segunda bolacha. O pacote era, lembrem-se, uno, uma entidade contida, conhecida, para consumir do princípio ao fim, para nunca deixar a meio. Estatelei-me contra uma muralha de censura.

Não me deixou comer a segunda bolacha. Senti-me defraudado. Fora convidado para a sua companhia, para a intimidade, a pretexto de um pacote de bolachas que ela havia comprado para nós. E para mim, naquele tempo, poder comer bolachas com ela era soberbo. Mas negara-me a segunda bolacha, e ela mesma não viria a avançar para a segunda. Ficou assim, o pacote, com um universo de sabor aprisionado, e apenas duas, singelas duas bolachas comidas, sem mais. Eu sabia que estava gordo, eu sabia – mesmo que não tão bem quanto hoje – que aquelas bolachas não podiam fazer-me bem, mas eram as nossas bolachas, eu queria a minha parte, eu queria o sabor, tinham-me prometido um pacote, tinham-me criado expectativas, e tinham falhado. Eu ia comer bolachas, a seguir ia – ou assim pensava – foder e um dia ia casar e depois ia ter filhos e continuar a comer bolachas.

Recordo esse episódio sem saber porquê. Algo me levou a essa memória, de algo já tão arrumado e pacificado, e fez pensar que os avisos estavam todos ali. Tal como as bolachas, vários outros alimentos duravam semanas ou meses naquelas mãos. Talvez fosse esse o segredo da sua linha esbelta. Mas esse era também uma parte do segredo para nunca podermos ser felizes os dois, como nunca viemos a ser. As pessoas sempre terão uma míriade de coisas que nos irritam, e nós sempre tentaremos levá-las a mudar, mas ao fazê-lo estamos a introduzir-lhes limitação, a transformá-las naquilo que não são, e fazer delas algo diferente daquilo porque nos apaixonámos ou enamorámos. Se tivermos sucesso a mudar uma pessoa podemos vir a descobrir que essa pessoa já não é aquela que quisemos ter connosco. Se tivermos sucesso a mudar uma pessoa, podemos vir a descobrir que ela está em sofrimento.

Hoje sou uma sombra do que era há vinte anos. Em alguns aspectos, sou uma enorme sombra desse tempo, compensada pela luz em que me tornei noutros, a idade levou umas coisas e criou outras. Não como bolachas como naquele tempo, não porque delas não goste, mas porque outros mecanismos de controlo se impuseram. Porque o açúcar me cansa, me prejudica. Mas quero a liberdade de comer um pacote completo se me apetecer. Quero a liberdade de avançar para a segunda bolacha sem a censura que se assemelha a uma palmada na mão. Menos que isso, era sofrer. E por isso, ou também por isso, nunca fui feliz para sempre com aquela mulher que ficou no meu pretérito. E do quanto me lembro, também não fodi naquela noite. A bolacha negada viria a ser, literal e figurativamente, um sinal do fim.

Nunca insistas numa relação com uma mulher que não te deixa comer as tuas bolachas."

João
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17 setembro 2018

«Quarenta e dois Norte» - João

"Nunca havia passado a norte dos lados de Coimbra, dizia. Era um provável contorno involuntário da verdade, porque certamente já o tinha feito em trabalho, mas não era de trabalho que se falava então, era de emoção, e essa, repetia, a norte de Coimbra não existia. Como podia isso ser, pensava, se é a norte, no Norte, que está a alma (para quem a tem lá). Era preciso corrigir isso.

O ponto que separa Portugal da Galiza é necessariamente diferente daquele que o separa da Andaluzia, não só porque são dois rios diferentes, porque num se quebram os ossos ao entrar na água e no outro sempre se tolera melhor, ou porque as nuvens e a chuva são de outra espécie. São diferentes porque as pessoas são outras, porque o vento é outro, as cores e os montes são outros, como a areia que a praia tem. O Minho, esse Norte, é um Norte diferente, é cardeal, definidor, o Minho das águas geladas, da nortada agreste que salpica a pele com a areia, e do calor tórrido que se sente quando se deixa o mar e se entra nas serras, dos povos com sacholas em terra dura de seixos, as mulheres com bigode, nas feiras com collants por cima dos pêlos das pernas e por cima destas as meias brancas com raquettes e as socas de madeira. A vender pitos, ovos, e couves, entre alfaias agrícolas, facas e panelas, grelhas e loiças.

O Minho das princesas carregadas de ouro – o ouro disfarça as outras jóias que lhes habitam o corpo, porventura menos peludas que as das mulheres das feiras – nas procissões da Agonia, dos gigantones e dos bombos, das bolas do Natário, do Minho dito rio, do Lima, do Cávado, dos enormes penedos da Peneda, a desolação de Castro Laboreiro, no planalto, naquela estrada que segue sozinha até acabar num estendal isolado de algum eremita.

O Minho da Arga, onde as nuvens que chegam do Atlântico nos tocam o nariz, o vale do Lima se abre de um lado, e do outro Caminha, Cerveira, e o rio que nos separa da Galiza, espaço natural de namorados, uma teimosia da água a separar duas terras tão parecidas, de gente tão igual.

Como podia isso ser, de não passar a norte de Coimbra? Se foder no Minho é sempre tão diferente de foder aqui em baixo?"

João
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11 abril 2018

«A falta» - João

"Não sou quem tu viste, sou mais, e para quase toda a gente, tão menos. Estou feita de cabedal, curtida, resistente. Deixo que pensem em mim como alguém que não quer saber, que não quer sentir. Sou dura. Eficaz a magoar. Sei espetar e rodar. Como sei abraçar, deixar rolar a lágrima quando a emoção me toma, sei dizer as palavras que puxam e apertam, mãos, pernas, cabelos em cócegas. Sei dar, dar muito de mim, dar quase tudo

nunca ninguém dá tudo, nunca ninguém pode dar tudo, é humanamente impossível
mas pode ficar-se perto

entregar-me sem reserva, deixar tombar as minhas defesas, as minhas barreiras, as coisas que me desconfortam ficam quase despidas e levadas em poeira quando estás perto. Sei tudo, sei tanto, e ninguém vê. Sou tão estupidamente dura, tão cruel, porque me falto, porque me falta, porque tudo quanto há não é tudo quanto preciso, porque me furto, porque nos intervalos da noite sei que me falta, sei o que me falta."

João
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21 outubro 2017

«Lúcia» - João


"A Lúcia não era a rapariga mais bonita da escola

a rapariga mais bonita da escola, naqueles tempos, era outra. Suponho que era isso que fazia realmente a diferença, aos onze anos ou coisa parecida não escolhemos exactamente as paixonetas pelos valores ou planos de vida, escolhemos pela cara bonita, pelas mamas, enfim, pela embalagem, e se lá dentro vier algo de muito simpático, tanto melhor

mas era mais experiente que muitas. Não sei se era mais velha, não me lembro, desculpem, já lá vão 30 anos, mas era tida por todos como uma rapariga mais experiente, que teria vivido coisas que as outras ainda não sabiam sequer o que eram. O meu primeiro beijo, de lábios nos lábios, não me recordo com quem foi, ou quando. Trinta anos esmagam muitas coisas mas as verdadeiramente marcantes tendem a resistir. Depreendo, por isso, que não foi marcante esse momento. É pena, devia ter sido. Mas a Lúcia, continuemos, tinha um ar menos virginal e não estava tão presa na hora das curtições. O meu primeiro beijo deve ter sido a alguma colega no famoso jogo do bate-pé, essa lista de coisas impossíveis para a idade, naqueles finais de 80, e não ficou na memória, mas o primeiro beijo com língua, esse sim, lembro-me bem, porque foi estranho. Foi a Lúcia quem mo ofereceu, nem sei se diga por favor, como que para ensinar o desgraçado do puto que tinhas as hormonas aos saltos e nunca tinha usado a língua senão para lamber o creme dos bolos. O sítio já nem deve existir, era uma espécie de bosque nos arredores da cidade, a turma toda fora da escola, uns coleguinhas à espreita nos arbustos e eu sentado num muro todo escavacado com a Lúcia à minha frente a prestar-se para me ensinar qualquer coisa.

Dos arbustos vinha a surpresa de alguns que exclamavam olha olha a Lúcia e o João estão nos linguados. Agora não me passa pela cabeça chamar linguado a nada mais que um peixe, mas era assim, talvez ainda seja assim, eu já estou noutra vida em que as coisas não têm esses nomes, os beijos já não se dividem em categorias, ficámos pragmáticos, talvez menos pacientes para categorizar as etapas da sedução, as conquistas. Um beijo é um beijo e pronto. A língua é um adquirido. Algures nos arbustos creio que estava a rapariga mais bonita da escola

fazem-se algumas coisas idiotas quando se é novo. Como naquele dia em que ela tinha um vestido verde às bolinhas pretas, e ali para os lados do pavilhão onde tínhamos educação visual, ela, eu, e mais um par de namorados, decidimos ir para perto do campo da bola competir pelo beijo mais longo. As opiniões dividem-se, mas estou capaz de jurar que o nosso foi o vencedor, ainda que por muito escassa margem, milissegundos talvez, porque a páginas tantas o beijo já era tortura e assim que se percebesse que um dos pares tinha desistido, o outro desistia logo depois, para repousar os músculos e subtrair os corpos às posições desconfortáveis em que se estava. E no mais, por aquela altura, já todo o campo de jogos, e seu público, tinha parado o que estava a fazer para nos observar. Assim como os meteoros, que brilham muito e morrem a seguir, também nós tivemos o nosso momento de fama naquela escola preparatória, capazes de parar toda a gente e por um momento (enfim, perto de dois minutos talvez, logo se vê que foi um beijo principiante e pouco treinado, ainda que convicto e excitante) os mais populares do pedaço

mas naquela altura, não obstante o interesse que existia, a relação ainda não, e em rigor eu andava a tentar treinar para um dia mais tarde, quando estivesse com ela. Esse dia viria, de facto, e num dos longos caminhos em direcção à casa dela, num namoro lento da estrada a subir, pergunto desajeitado e até mesmo rude – hoje parece-me profundamente rude – se ela dava linguados. Merecia que me tivesse dado um, sim, mas na cara, um peixe na cara, mas discreta lá me disse que sim, e quando nos despedimos no local de sempre, trocámos um dos piores peixes que alguma vez a terra viu. Não o diria por ela, coitada, diria por mim. Viria a melhorar, mas aquele foi francamente mau. E eu sabia. Talvez me tenha condicionado para o futuro, há inseguranças que nos marcam, essas sim, e persistem por 30 anos, talvez por 40, por 50, enquanto estiver vivo, enquanto me lembrar.

A vida, pouco preenchida nos amores, não me trouxe muitos lábios, nem os faciais nem os outros, para beijar. Mas ainda coleccionei, nem sei, talvez duas ou três críticas negativas. Construtivas, é certo, sem intenção de magoar, mas definitivas naquilo que entretanto se tornou a minha convicção e orienta este textículo: de facto, eu beijo mal. Acabei por me refugiar noutros talentos, noutras coisas que, vendo bem, talvez tenham o dom de satisfazer muito mais uma mulher do que um beijo, por muito importante que ele seja no despertar de desejos, que é. Mas disso, nem a Lúcia, nem a rapariga mais bonita da escola, viriam a saber."

João
Geografia das Curvas

13 março 2017

«Corredor» - João

"O problema é que o dia chegava ao fim mas ela não chegava ao fim com ele. Ficava como uma saudade que não se sacode. Vinha um dia, e depois outro, e por fim se a via, tudo voltava ao lugar, como arrumar caixas nos seus lugares, como sair do ar quente e respirar por fim um ar fresco que devolvia à vida, que dizia que ainda havia salvação, que podia rir de novo, que a pele podia arrepiar-se. E tempos sobre tempos assim mostraram-lhe a verdade das coisas. Era estranho. Era estranho dar por si naquele espaço a pensar na ausência dela, e tão estranho que aquela ausência fosse tão imensa naquele momento e espaço, e afinal uma ínfima parte de todo o tempo e todo o espaço que ainda havia para trilhar. Daquele corredor fechara-se a porta, desligara-se a luz. Sobrava-lhe esperar que assim como lha haviam fechado, um dia a abrissem."
João
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06 fevereiro 2017

«Baixo, gordo, careca, pobre» - João

"Não tenho nada para te dar. Não tenho nada para ti. Sou baixo, sou gordo, sou careca, sou pobre. Tenho umas boas mãos, são quentes, sei tocar os pontos todos que arrepiam, sei explorar os pedacinhos de pele que causam frio e calor, sei libertar as torrentes do teu sumo. Tenho um bom caralho, de boa gente, apresentável, competente, honesto. Tenho um bom conjunto de neurónios, articulo ideias, transporto do vazio à gargalhada sem suar. E no entanto, ainda assim e apesar de tudo, todos os dias me convenço que não tenho nada para te dar. Porque sou baixo, sou gordo, sou careca, sou pobre."
João
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26 dezembro 2016

«The thin» - João

"Eu não quero ter frigorífico, troco-o por ti, quero ter-te a ti. Eu não quero máquina de lavar, lavo-me em ti, contigo, os dois debaixo da água, eu não quero um palácio, quero-te a ti, eu não quero um carro caro, quero andar a pé contigo, não quero os trópicos, estou bem contigo sentada num murete qualquer da cidade a falar-te baixinho, eu não quero muita coisa, quero só encostar a minha cabeça ao teu peito e ouvir o coração bater, e saberei então que batem os dois ao mesmo ritmo, o mesmo compasso. Nunca te esqueças do que outrora te disse. Nunca te esqueças, porque to proíbo. Irei atrás de ti se te esqueceres, cravar-te-ei a pele se te esqueceres, gritar-te-ei ao ouvido se te esqueceres. Nunca te esqueças, não to autorizo, mesmo que te diga que esqueças, minto-te, minto-me, mesmo que te bata, sinto carícia, dou carícia, mesmo que te vire a cara, morro de desejo por ti. Se me esqueceres, definho, destruo-me. Ninguém me dá mais que tu. Eu não quero mais que isso. Não quero menos que isso. Quero-te a ti. Through thick and thin, e agora, estou segura, é o thin, em que não sinto nada, digo que não sinto nada, vivo como se não sentisse nada, mas sinto tanto, tanto, que o thin é um translúcido que me cobre e mascara. Como sempre fiz."
João
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12 dezembro 2016

«Lágrimas de Inverno» - João

"Viesse alguém dizer que era um amor de Verão, uma travessura de corpos despidos ao ar e ao Sol, e não poderia enganar-se mais, que o Sol era privilégio de outro hemisfério e os corpos despidos, só despidos no calor de um espaço fechado e na travessura, sim, na travessura de um segredo. Na verdade, chovia. Estava frio. Não havia praia, não havia namoros de calor nos salpicos do mar, não havia trapinhos leves e esvoaçantes, o tempo era de roupa quente, de botas, de salpicos do choro das nuvens a bater nos vidros embaciados das casas, dos carros, de tudo.

A gravidade, essa gravidade que nos prende os pés ao chão, puxava-a sobre ele. Naquele momento a sua cona estava encostada a um caralho duro, incrédulo, e ela decidiu ir na gravidade. Relaxou os músculos e caiu sobre ele, deixou-se penetrar, devagar, o caralho a entrar, a sentir aquela massa pulsante dentro dela, e ele o calor, a fornalha, o impossível. Olhou-o naquele instante. Viram-se nos olhos. Vieram-se nos olhos. Se não havia praia, se não havia senão um imenso frio, havia ali a confirmação, a certeza, a garantia do que se vira nos olhos, do que as caras e os corpos gritaram. E depois com os cabelos a saudar-lhe a face, de lábios encostados ao ouvido dele, a provocá-lo, a perguntar-lhe algo que ele nem sequer percebia naquele instante, de tão espantado, de achar tudo aquilo tão impossível, tão improvável, tão desejado, tão perdido dentro dela.

E depois? Que praias e neves viriam a seguir?"

João
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20 novembro 2016

«Raspas de sono» - João

"Detiveram-se estacionados um bom tempo, de mãos nas mãos e dedos curiosos, a pensar entre eles quanto tempo era preciso para se fecharem dentro de casa. De quanto tempo precisavam para se foderem até à medula espinal e depois conseguirem ir trabalhar como seres humanos funcionais, capazes de o fazer depois de uma noite bem dormida. As promessas quebravam-se sempre. Hoje vamos dormir, mas depois não, bastava um milímetro de pele na pele ou um aconchego de corpos quentes e quando davam por isso já nem estavam a tentar resistir, estavam num completo estado de abandono, fodendo-se sem espaço nem tempo, essas coisas da física que interessam muito pouco a quem se quer muito. De quanto tempo precisavam afinal. Barricar-se-iam em casa, desligariam os telefones, deixariam encher a caixa do correio. Um mês, talvez. Pensaram que ao fim de um mês a fundir-se entre foda, amor e paixão haviam de conseguir dormir juntos sem se tocarem muito, e de sair normalmente em direcção ao emprego de cada um, fazendo as suas coisas sem pensar em sair a correr para foder o que não se fodera de manhã. Mas a carne é fraca. E um mês talvez fosse demasiado tempo sem conseguir ao menos comprar algo no supermercado. Deixar o corpo comer algo mais que o corpo do outro. Quinze dias. Ficavam assim, a meio, em quinze dias de pós-laboral. Concordaram que ao final de quinze dias abririam as janelas só para deixar o ar limpar. E talvez chegasse. Talvez fosse suficiente. Talvez ao décimo-sexto dia conseguissem finalmente dormir uma noite inteira e passar um dia completo sem calores e suores. E a roupa. A roupa. Lavar a roupa era preciso. Quinze dias de foda naquela casa, sem parede, bancada ou ombreira que ficasse por tocar. O tempo era trabalho, estrada, foda e raspas de sono. E sem roupa não se podia sair mais dali. E o tempo passaria a ser só foda e raspas de sono. E fumo venenoso a pairar, só para disfarçar o cheiro que a ninguém deixaria dúvidas da loucura que ali se vivia. Já só havia camisas dele e pouca coisa dela, a máquina a centrifugar, a vibrar, o programa a encher, rodar e esvaziar, e as janelas abertas, o tabaco a disfarçar, tímido, o fedor a foda, e ao décimo-sexto dia o sono continuava em raspas. Afinal, se tivessem sido espertos, tinham logo escolhido um mês inteiro. Só para ter a certeza."
João
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31 outubro 2016

«Não ser e não estar» - João

"Habituara-se a sentir-lhe o cheiro. A princípio era estranho, mas depois tornou-se tão natural quanto o oxigénio que lhe preenchia os pulmões. E mais que natural, tornara-se delícia, um gostinho especial, do cheiro o sabor, como que lambendo os dedos de guloso perante grande espanto, porque afinal, afinal, ele era um gajo estranho. Estranho na diferença, era certo, das coisas que mais ninguém fazia, e isso era seguramente de notar. Habituara-se a sentir-lhe a pele. Conhecia bem a pele. Os pontos exactos onde exercer pressão, onde fazer cócegas ou, tão melhor que isso, onde excitar, preparando para a maratona. Mesmo que fosse um segundo, ou um minuto, era maratona. Mas depois deixou de sentir o cheiro e deixou de lamber os dedos como rebuçado aprazível. Depois a pele desapareceu e só existiam sinais de fuga e ocultação, de quem respirava o mesmo oxigénio mas não queria partilhar. Até que um dia houve morte, mesmo, literal, daquela que leva os corpos ao chão, debaixo da terra, para não respirar mais. E quem aqui ficou teve de viver com o cheiro que não havia, os dedos sem graça, a pele que em lado algum se encontrava para tocar. E ficou pesado o encolher de ombros de resignação, de se conformar com o resultado de ter desaparecido antes de tempo, a inevitabilidade de um não poder mais, em oposição a um não poder porque não. E sempre pairava no ar a ideia de que esse não ser e não estar teria sido apenas e só um imenso disparate."
João
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26 setembro 2016

«E assim se fez» - João

"A noite começara a cair. Já havia caído muitas vezes antes, e sabia-se que cairia muitas mais vezes depois. Mas a brisa era agradável, ondulando cabelos, a excitação era grande, arrepiando a pele aqui e ali, e com a queda da noite, cairam também as roupas, e depois sobre elas, num atabalhoamento cego, os corpos. Havia laços nas tuas meias, foram lidos pelas minhas mãos, como se elas fossem scanners que marcavam na memória todo e qualquer pedacinho do teu corpo. A noite estava toda espalhada pelo chão, pelo ar, o céu negro, e a pergunta de outrora pairava fresca, como tantas vezes antes, como tantas vezes depois. Como vamos fazer isto, perguntava. Como vamos fazer isto, perguntaste, malandra, quase ao meu ouvido, para me lembrar, para me dizer como era. Vamos fazer isto assim, pensarias tu talvez. E assim se fez.

Não sabia explicá-lo. Era sinistro e apaixonante, e a pergunta perdia valor a cada momento, deixava de ser importante saber-se como se ia fazer, conquanto se fizesse, e fazia-se, como nunca, como sempre, como nunca mais se encontraria."

João
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02 julho 2016

«Inerte» - João

"Lembro-me perfeitamente de estar adormecido. Tinha combatido um sistema de som pouco cooperante para ambientar aquele espaço com algo etéreo, uma banda sonora que elevava ao sagrado o que já o era no silêncio. E tinha adormecido. Despido, enfiado numa cama, à espera que as horas se deitassem também elas, que os minutos tombassem como peças de dominó, enquanto o meu corpo inerte desejava o teu. Não tenho uma imagem perfeita da tua chegada, mas sei que tudo se passou muito depressa. Recordo o barulho na porta, que me resgatou de um sono muito leve e inquieto. A partir desse momento foi tudo demasiado rápido. Não sei se não virias já a despir-te no elevador, não sei se na tua cabeça não vinhas já nua no teu pensamento, mas seguramente procuravas algo, e esse algo era o corpo que aquecia a cama por ti. Tão depressa estou a ouvir-te abrir a porta quanto estou a sentir-te entrar para a cama, praticamente nua, senão mesmo nua, terás de me perdoar por não o saber, o arroubo foi tal que te puxei a mim e sim, acredito que sim, que viesses já nua, que os teus mamilos estivessem prontos ao meu toque, que a tua cona estivesse já livre ao meu caralho, porque da porta aberta ao teu orgasmo foi um ponteiro de segundo. A tal momento a música era só a nossa respiração ofegante, e perfeição. Demasiada. Talvez o problema fosse esse. Demasiada perfeição. A perfeição é como a esmola, e o ditado popular que se aplica às esmolas é o mesmo para a perfeição. Desconfiou-se. E quando se desconfiou, o ponteiro de segundo recuou, a nudez cobriu-se e deste passos de volta à porta, fechada, e o meu corpo, inerte tombou."
João
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16 junho 2016

«O estrondo» - João

"Quando encontramos algo que nos agrada e se torna alvo do nosso desejo, o que é natural fazer-se? Que vontade temos? Queremos envolver-nos com o objecto do nosso desejo, queremos rodear-nos dele, queremos que o desejo nos cubra em todos os milímetros do corpo, como se mergulhássemos inteiramente naquilo que desejamos e nos tornássemos unos. Essa é a reacção normal. Eu vejo, eu sinto, eu quero, eu tomo.

Às vezes, porém, eu vejo, eu sinto, eu quero, mas não tomo. As pessoas não tomam. Não interessa porquê, porque as razões são tantas que é impossível elencar. E o que acontece quando o objecto de desejo está à vista, parece possível tomá-lo, mas não se toma porque algo impede? Fantasia-se. Pensa-se que se pode, que se consegue, que é uma questão de remover um ou outro obstáculo, mudar uma coisa ali, uma coisa acolá. Mas se o tempo passar e o desejo não for a piscina do nosso mergulho, a alma encrava. Olhamos, desejamos, e não nos banhamos. E é então que a solução se desenha. Foder tudo de uma forma tão explosiva que não sobre nada, na expectativa de não ver. Se eu vejo e parece possível, eu sonho e desespero. Se eu rebentar com tudo, eu deixo de ver e deixo de sonhar e deixo de fantasiar e deixo de desejar.

Aplica-se então o estrondo. Rebenta-se a bomba. Se uma não chega, rebenta-se outra. E depois do estrondo ficam cacos. O engraçado disso, ainda assim, é que dos cacos o Universo fez planetas, a atracção gravitacional não deixa os cacos soltos para sempre. E às vezes a bomba é só barulho, para enganar, para iludir. Por um tempo, até a gravidade fazer o que sempre faz."

João
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09 junho 2016

«Parede» - João

"Frente a frente, anos passados de distância, as palavras inicialmente trémulas e um apelo. Estou cansada, querido. Não podes ser um cabrão? Custa-te assim tanto? Tens de ser sempre esse homem bom? Não quero que faças amor comigo, quero, hoje quero, que sejas um cabrão comigo. Não me abraces nem me beijes, que estou cansada de não sentir, quero que me atires contra a parede, à bruta, que me arranques a roupa do corpo, quero sentir o teu caralho rasgar-me a cona, quero sentir-me rebentar contigo, o corpo a bater na parede enquanto me fodes com ganas, quero afundar profundamente as minhas unhas na tua pele, quero que entres fundo em mim, quero sentir dor, faz-me doer, faz-me sentir, faz-me qualquer coisa porque eu estou cansada, entendes? Estou cansada.

O olhar tinha súplica. Ao dele, veio um assomo de saudade. Depressa o guardou, e não abriu a boca. Não lhe respondeu. Pegou-lhe no pulso, rodou-a de costas para ele e empurrou-a contra a parede. E doeu-lhe. Como ela queria."

João
Geografia das Curvas

02 junho 2016

«Deste infinito» - João

"Temos tudo ali. De um lado está a serra. Na verdade, as serras, que são várias. A cidade está em frente, mas longe o suficiente para não incomodar, logo a seguir o mar imenso, que vai muito para lá do que se vê e do que se molha, e depois a areia que não termina, que se alonga, caprichosa, por quilómetros a perder de vista. Estou sentado numa cadeira. Melhor dizendo, estou apoiado numa cadeira, porque sentado seria generosidade, estou num plano inclinado muito confortável, atirado para cima da madeira, com as pernas esticadas e cruzadas, os braços a apoiar-me vagaroso ao Sol que falso se move no céu como se a Terra estivesse quieta às nossas ordens. A intuição, a telepatia, porventura o cheiro, não sei dizer, avisam-me que te aproximas. Sinto o sangue correr mais depressa dentro do meu corpo, sinto a tua mão tocar o meu ombro, os teus lábios a saudar-me a pele, e o teu corpo, o teu meu corpo, a sentar-se lânguido na cadeira ao lado, e os silêncios não eram embaraço entre nós, por muito que fossemos capazes de conversar longamente, de encontrar concordâncias em tudo e discordâncias fortes se disso houvesse necessidade. Trocámos o olhar, profundo, e soubemos que estava tudo ali, as serras, a cidade, o mar, a areia infinita, eu pousei a minha mão na tua coxa, tu colaste a tua mão à minha, entrelaçando os dedos, e a seguir morreste."
João
Geografia das Curvas

26 maio 2016

«Aquece-me» - João

"Nos contos de fodas há príncipes e princesas. Há castelos. Figuras mágicas, e além das fodas, há as fadas. Ali havia sobretudo o conto de foda, que era a expressão visível da magia. A foda não era o fim último, era a casca que envolvia a magia, todas as rodas dentadas que encaixavam na perfeição, rolando sem atrito, e sem óleo. E não havia castelos. O lugar, de certo modo, era lúgubre, tangencial ao feio senão mesmo secante, e gelado. No fundo daquelas escadas, rodada a chave na velha fechadura, revelava-se masmorra urbana da qual faltaria apenas escorrer água pelas paredes. E os corpos chegavam ali a tiritar, e mais ainda tiritavam quando se desnudavam, e ela pedia, docemente, aquece-me, e venciam o frio dos lençóis bicolores, que quando neles deslizavam a princípio era como deitar o corpo em blocos de gelo, e depois o calor criava uma fina película de água que lhes permitia mover sem dificuldade, e por fim do gelo se fazia fornalha, e o tão doce aquece-me que ela pedia dava lugar a ordens, verbos que se impunham, palavras soltas como labaredas ou salpicos de uma fornalha, e não existiam príncipes nem princesas, havia a casca da foda onde cona e caralho ocupavam o fosso da orquestra enquanto as suas cabeças e corações tomavam o palco num pleno domínio da arte. E no fim, sobrava um calor que afastava o frio imenso. Se alguma coisa podiam dizer, e na verdade podiam dizer muitas, era que calor nunca lhes faltou."
João
Geografia das Curvas

04 abril 2016

«As nossas sombras» - João

"Desço apressado a rua que outrora subimos vagarosos. Adiante seguiam todos os outros, e nós deixámo-nos ficar para trás, numa conversa doce de namoro, a tactear o outro, e tu agarrada ao meu braço, não porque me amasses, não porque me quisesses foder, não porque eu fosse tudo para ti, mas apenas porque as pedras da calçada estavam escorregadias como tu, da noite húmida, e não querias espalhar-te ao comprido, não mais do que já estávamos, ao comprido, tu e eu, a subir a rua devagar e devagarinho, sem vergonhas de quem nos olhava lá do alto e perguntava por nós. Desço apressado a rua que outrora subimos, e vejo do outro lado, no outro passeio, as nossas sombras, e por momentos quase consigo ouvir-nos falar, quase consigo ouvir-te rir, e sobretudo quase consigo ouvir-te dizer como já me fodias. Quase consigo ouvir-te dizer como me queres."
João
Geografia das Curvas

28 março 2016

«O frio à vinda» - João

"As histórias, e os nomes, são fictícios, concedo, mas a mensagem não, não é fictícia. A Catarina e a Teresa partilham algo. Uma, e outra, têm um frio imenso que as trespassa depois do orgasmo. Para elas, à explosão de se virem, sobrevém um desconforto de tremuras que abalam o corpo. Os minutos que passam, resolvem. A pouco e pouco – um pouco menos se tiverem a delicadeza de as aquecer – os corpos regressam ao normal, mas antes disso é o ártico. A Catarina viveu a sua sexualidade. A Teresa não. São um pouco a antítese uma da outra. Uma viveu o sexo e depois parou, a outra nunca o viveu e depois começou. Nenhuma delas fez algo errado (ou certo). Fizeram o que fizeram, o que sentiram querer fazer. E se as suas vidas não se afectaram com isso, então nada se pode dizer disso. As vidas são o que são. O frio então? A Teresa, naquilo que não fez, no tempo em que não fez, viveu numa cultura de forte censura do sexo, em que o sexo era, e é, entendido como um pecado, uma coisa feia e suja, que apenas tem lugar por insondáveis desígnios divinos para procriar, e se dessas pessoas dependesse, a procriação seria diferente nunca usando as partes. A Catarina, que viveu o sexo de forma mais intensa e depois sentiu desejo de abrandar, não terá sentido o sexo como sujo, mas terá sentido vontade de o tornar mais envolvente. E para uma, como para outra, o orgasmo tem memórias. Por razões tão diferentes, uma vem-se e lembra-se de um sexo porco, a outra vem-se e lembra-se de um sexo superficial. E a cabeça, que é malandra, manda os corpos sentir frio, porque de algum modo o orgasmo que tão bem lhes sabe lhes fala de coisas que não estão inteiramente resolvidas, ou que vieram desaguar, como águas soltas, em coisas que não sentem estar totalmente de acordo com aquilo que são."
João
Geografia das Curvas