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29 março 2023

«Diálogos improváveis» - Charlie

- Santo padre, pequei... 
- Fala, meu filho. Abre a alma, Deus é misericordioso.
- Sou um facho e um racista.
- Isso é muito feio, todos são filhos de Deus. 
- Minto e insulto de quem não gosto.
- Meu filho, isso é ainda mais feio. Jesus disse: dá a outra face se alguém te esbofetear. 
- Mas é mais forte do que eu. Santo Padre, lembro-lhe que fui escolhido por Deus.
- Bem... os Evangelhos dizem que Deus escreve direito por linhas tortas... mas tens mais pecados? 
- Santo Padre, acho que não tenho mais pecados, e na linha de conduta que Deus me indicou no caminho da pureza, vou apresentar uma proposta de lei para castigar os pedófilos. Quero contribuir para erradicar o pecado do mundo... 
- Meu filho, repito-te os santos ensinamentos: o perdão, compreensão, tolerância para com a fraqueza humana e a certeza de que no arrependimento está o caminho da salvação... Olha, toma lá um chocolatinho e ali na Sacristia tenho mais. Anda lá que Deus perdoa-te todos os pecados.



27 junho 2014

O Alívio

Costumava vê-la sem ligar muito.
O aspecto era pouco atractivo, digamos sem eufemismos, até repulsivo, coisas da natureza de que lhe não cabia ser ou não culpada.
Pertencente a uma etnia nómada, tinha enviuvado cedo, rixas, e ficado por aí.
O único filho que a graça divina lhe tinha oferecido padecia de uma doença mental ligeira, o que não o impedia de ter crescido um belo mariola, digamos, um patife.
O Orelha Ratada, ao que parece tinha sido à sorrelfa de uma noite, ainda muito pequeno, a dormir no chão da barraca.
- “Ai, ele não é bom” dizia a mãe quando alguém o repreendia. A jeitos de pedido de desculpa.
- “ Dê qualquer coisinha senhor” continuava no seu apelo à solidariedade
Foi quando me enrolei com a filha de uma merceeira, dessas que dantes havia nas aldeias e cidades, de caixotes de legumes e fruta à porta, que comecei a reparar mais nela.
-“Dê qualquer coisa, senhora” despertei eu do choco no primeiro andar e a mãe da conversa com uma freguesa,- que o rapaz é engenheiro,- filtrada por entre as tábuas do sobrado.
Desmontado de uma e montado na promoção rápida, saltei suavemente da cama e fui espreitar pela cortina.
Lá estava diante da porta da mercearia, de maçã acabada de achar num dos caixotes expostos à entrada, a provar a saliva e dentes por entre as palavras de rotina.
-“Uma coisinha senhora…..” e mastigava.
- “Não te dou nada! Desaparece!”
-“Ai que mulher tão má…” dizia enquanto a outra repetia que não lhe dava nada. Que já tinha tirado fruta das caixas, e que se calhar já levava nos bolsos mais meia dúzia de peças, e fora daqui!
-“Ai o caraças!” reparei eu para o chão do quarto para onde uma pinga tinha escorrido da glande.
-“Não faz mal Carlos- riu-se também já levantada e encostada a mim-, vou buscar um bocado de papel. Mas olha lá para baixo. A minha mãe corre sempre com ela e sabes o que ela faz?”
Abanei a minha ignorância. .“ se calhar tira umas coisas das caixas…”
-“Não. Isso é o normal. Mas olha lá bem para ela”
-“ Um bolinho pá criança, senhora. Tá doente lá na barraca….”
-“Já não é nenhuma criança, vá mas é que tem bom corpo para trabalhar….”
Estava de pernas afastadas, de saia escura até aos pés, roendo a maçã achada, enquanto a merceeira continuava as anti-delícias.
-“Já sabes que eu não te dou nada, não, porque é que insistes?!”

Um bom meio minuto depois afastou-se deixando uma mancha que devagar se alastrava no sítio onde estivera.
-“Não usa cuecas”
-“Pois, e onde está é sempre o sítio certo para o alívio” rimo-nos, meio divertidos.
-“Tu também não tens”
-“Olha quem fala, mas isso não é sempre…”
-“ A minha mãe fica fula, e quando o Orelha vem, ainda fica pior, mexe em tudo”
Afastou-se rogando uma praga, e eu aproveitei o intervalo para sair e comprar cigarros.
Foi no regresso que me cruzei com ela outra vez, melhor, ia tropeçando.
Voltou-se  de rosto em expressão de desagrado que a sua infeliz condição ainda mais enfatizava.
-“Ai,... é das maçãs… Não prestam”
E afastou-se do local empestado pelo alívio da súbita indisposição intestinal…

04 abril 2014

Isto anda a correr pelo Face-Book, mas como lhe achei uma piada do caralho, nada melhor do que partilhá-lo aqui neste Blogue, ( ou Broshe, como diz o Nelo)


Os problemas do nosso País são essencialmente agrícolas: excesso de
nabos; falta de tomates e muito grelo abandonado.

O Casamento é um relacionamento a dois, no qual uma das pessoas está
sempre certa e a outra é o marido.

A mulher está sempre ao lado do homem, para o que der e vier; Já o homem está sempre ao lado da mulher que vier e der.

Se fores chata, as tuas amigas perdoam;
Se fores agressiva, as tuas amigas perdoam;
Se fores egoísta, as tuas amigas perdoam;
Agora experimenta ser magra e linda!
Tás feita!

O amor é como a gripe, apanha-se na rua, resolve-se na cama!

A falta de sexo provoca amnésia e outras merdas que agora não me lembro...

Não procures o príncipe encantado. Procura, antes, o lobo mau: ouve-te melhor; vê-te melhor e ainda te come.

Toda a gente se queixa de assédio sexual no local de trabalho. Ou isto começa a ser verdade ou então despeço-me!

A mulher do amigo é como a bota da tropa; também marcha!

14 março 2014

Análise simbólica das manifestações diante do Parlamento

Mais uma manifestação de descontentamento , e certamente muitas outras virão diante do Palácio de São Bento.
O edifício onde funciona a Assembleia da República data do Séc XVI.
Construído em estilo neoclássico, poucos edifícios poderiam exprimir melhor o que existe no Homem no que toca à sua subconsciente matriz organizacional no que ao simbolismo do Poder diz respeito.
Assente sobre a sublimação do falicismo, a fachada do edifício replica essa eterna referência e é assim com muita naturalidade que o imóvel transitou do seu objectivo original, mosteiro Beneditino, para sede de Poder, mal esse Poder extinguiu as ordens religiosas, um dos braços de uma outra expressão de Poder que na essência tende a ser sempre e apenas um.
É diante do edifício que se têm produzido ciclicamente manifestações e é no pormenor particular do afrontamento simbólico do Poder instituído que devemos centrar a nossa atenção.
Tecnicamente é fácil tomar o edifício se foram consideradas as alas laterais, que estão praticamente ao mesmo nível da entrada principal. As escadarias diante do edifício são um enorme inconveniente, já que uma
pressão de massas nas laterais empurra quem defende o edifício para os lances inferiores fazendo perder a eficácia de uma eventual cortina de defesa.
No entanto, os manifestantes colocam-se sempre na parte inferior das escadarias, olhando de baixo para cima para o edifício, num alinhamento com o topo do triângulo, o Falo ancestral, o Poder.
É um momento de enorme carga simbólica. Ao colocarem-se na parte mais baixa da escadaria, elevando o olhar, assumem a sua posição no que à pirâmide de Poder diz respeito, reconhecendo a sua subalternidade enquanto afrontam esse mesmo Poder. Não é a tomada do Poder que é pretendido, mas sim a contestação do mesmo, e a tomada de lances de escada, no sentido ascensional, emerge do mais profundo do Homem no que à sublimação para o campo do simbólico, relativamente ao fenómeno da erecção fálica diz respeito e quanto à projecção do mesmo como expressão de força.
Se olharmos para as fotos do edifício e as suas imediações teremos diversas perspectivas do mesmo. Vistas
as fotos mais antigas reparamos como as escadarias, que hoje são vistas como ante-câmaras abertas do edifício, eram apenas um ornamento externo e que uma rua dava acesso directo a um pequeno lance de escadas à entrada principal.
 O facto de terem feito um contínuo do empedrado ligou de forma absoluta a escadaria ao edifício, potenciando por esse motivo todas as manifestações e operações de confrontação ao Poder.
O que o futuro nos irá trazer, só aos Deuses cabe responder, mas os dados estão lançados e o Homem, sendo eterno, é de forma eterna que os dados se organizam, sempre da mesma forma, dando sempre as mesmas respostas.
E a haver acontecimento digno de nota, não será certamente pelo facto de assistirmos a manifestações.
Mas estas são certamente de levar em conta, se não se quiser consultar os oráculos.

11 janeiro 2012

O julgamento

Com um finar de martelo culminou a sentença que, em voz monocórdica e olhando para ele como se fosse transparente, ditara. As últimas frases, ou melhor, os últimos parágrafos haviam-lhe soado em surdina, de tal forma o desfecho previsível e desfavorável se ia compondo como resultado do julgamento onde todas as testemunhas, uma após outra, tinham colaborado para o desmontar do seu argumento de defesa. Um leve burburinho elevou-se discretamente na sala enquanto os papéis se guardavam nas pastas e vozes imperceptíveis se trocavam entre os agentes de justiça.
Rodando o corpo para trás, de forma a ficar bem de frente para cada uma delas, fitou as testemunhas, uma após outra. Em vão procurou os seus olhares que preventivamente se distraíam pela sala, chão, tecto, adereços e outros olhares, evitando de forma ostensiva o seu.
Agora que o momento passara, distendendo a tensão,  com alívio para uns mas com a morte na alma para ele, via nitidamente em cada um dos rostos a personificação dos sete pecados capitais.
A gula, pensou ele, ao olhar para um dos que, sabendo a verdade, tinham alterado os factos de forma a comprometê-lo. Fácil de comprar, pensou: bastaria uma boa jantarada ou duas ou uma saída à noite. Depois olhou para o outro, por sinal ainda aparentado. Magro, de óculos finos e fato austero era a imagem da avareza. Este teria sido quiçá o mais fácil de comprar. Uma leve sugestão de despesa extra se o caso tivesse tido um desfecho a seu favor, acrescentado talvez de alguma vantagem se fosse condenado.
Depois olhou para ela, a invejosa. Desde criança que fora assim. Essa também não seria difícil de convencer, estava convencida à partida. Desde que eu ficasse mal, mesmo que ela não beneficiasse coisa alguma.
Passou depois o olhar para outra. A ira: uma pessoa má. Não tinha amigos, de tal forma era rancoroso, incapaz de perdoar a mínima falha alheia. Sempre disposto a desenterrar antigos diferendos, mesmo que estes não tivessem qualquer importância ou que esta se tivesse esgotado pelo passar do tempo. Sim! Com este teria sido também muito fácil, pois nos encontros e rodas de amigos há já muito acontecidos, ele levara-o a melhor nos argumentos, coisa que o aborrecera profundamente e tinha levado a afastar-se.
A seguinte era a soberba em pessoa. Pensou um pouco mais demorado como teria sido possível comprar aquela testemunha, convencê-la a dizer algo que sabia não ter acontecido, mas depois fez-se-lhe luz. Também aqui a palavra aplicada no registo certo teria espoletado a característica-chave da sua personalidade. Algo do tipo: "ele anda a denegrir o teu trabalho, diz isto ou aquilo". Sendo artista e extrovertido e não cabendo em si pela falta de humildade, uma frase teria bastado, o resto seria questão de cozinhado.
De propósito saltou o sexto pecado, guardando-o para o fim, enquanto se deteve no elemento que personificava a preguiça. Detestava-o e dissera-lhe isso mesmo por mais de uma vez. Incapaz de dar uma ajuda a alguém, ficava a olhar, aparentemente alheio, sempre que alguma colaboração lhe era pedida. Mesmo se alguém estivesse aflito a precisar de uma mão, jamais se disponibilizara a dar uma ajuda. Ele sabia que  nunca poderia ter estado naquele sítio, pois vira-o entrar para casa dela, cruzara-se com todos eles, os anteriores, quando tinha ido ter com ela, essa que de propósito guardara para o fim: a luxúria. Meu Deus! Como ela era fogo na cama. De todas as vezes que subira aquelas escadas ele, agora condenado, cumprimentara-o, ao preguiçoso, com uma tirada jocosa, ao que ele ruminava algo vago do tipo: "vai-te lixar"... mas ela… ela... Meu Deus! - repetiu de novo dizendo-o inconscientemente em voz alta. Veio-lhe à memória, como se fosse um só momento, todos os instantes, desde o abrir da porta, dos lábios sôfregos e mãos infinitas e dos seus corpos a explodir e morrer um no outro e, ainda, a efervescente forma como se tinham conhecido… mas agora?...
Condenado a vinte e cinco anos, a indemnizar com a incontornável perda de bens por falta de recursos suficientes, ia perder, além de todos os meios de fortuna, toda a vida social e profissional. Os amigos, até mesmo os mais verdadeiros, iriam um após outro rareando as visitas até ficar completamente entregue a si mesmo, à sua revolta e solidão. A família, pouca e distante, fora a primeira a afastar-se.
Mas porquê? - interrogava-se uma e outra vez…
Um coração acelerado e alimentado pela angústia e revolta surda não lhe davam outra resposta que não as gotas de suor frio que lhe humedeciam a testa.
Naquele momento, em que todo o céu desabara sobre si, confuso e demasiado próximo dos acontecimentos, não conseguia descortinar uma razão válida ou um motivo, por mais leve que fosse, para que tivesse sido condenado por um crime que não cometera. Sem dúvida que algumas implicações circunstanciais o poderiam ter indiciado, mas bastaria a palavra honesta das testemunhas para que ficasse de forma cabal inocentado. No entanto…
Fechou os olhos e, por uns momentos, reviveu o fogo da paixão dessa cujo testemunho fora determinante para a sua condenação. Luxúria, luxúria! Paixão... e depois... Deu-se conta como passava da sensação de agrado para a desolação e a raiva impotente e como o suor lhe empapava desconfortavelmente as axilas e lhe escorria pelo couro cabeludo até ao colarinho e como, mais abaixo, uma impressão de molhado denunciava as virilhas invadindo igualmente as roupas íntimas pelo fluido orgânico; suor e mais suor a juntar ao calor intenso que o tomava.
Um abanar do corpo fê-lo querer abrir os olhos, em natural reacção, mas surpreendentemente reparou como não conseguia. Seriam os funcionários da presidiária, talvez, diligentes em dar corpo à decisão judicial, mas a luz apagara-se, sentia-se ainda mais confuso e debalde tentara dizer uma simples palavra.
- Acorde! - ouviu ele distante enquanto esperava que os guardas o levassem para o cumprimento da pena. Apenas um -“Ãhn? “- atordoado lhe saiu como vaga resposta.
- Acorde, está na hora de tomar os medicamentos. Esteve toda a noite com febre alta e pesadelos... - ouviu ele agora, já de olhos abertos para aquela voz feminina, que momentos antes estivera sem a farda de enfermeira a incendiar-lhe os sonhos...
- Fartou-se de falar, senhor Dr. Juiz...

15 março 2011

Contos de BaR...

... descobrir-lhe os clítoris que existem numa mulher sob todos os poros da pele...

Há quanto tempo não me trespassava aquela sensação adolescente.
Vocês sabem, é já tão clássica...
Vê-se um homem sentado diante de uma senhora que está, ou que chega, com o seu acompanhante. Costuma ser um tipo que conhecemos mais ou menos bem, ou se calhar nem por isso. Às vezes é a tal pessoa do bom dia no café da manhã ou o caixa do Banco onde vamos (ou temos de ir) amiude e que chegou há pouco ou outro ser qualquer que emerge das coisas indiferentes das grandes cidades e que naquela ocasião, sem saber-se bem porquê, nos vê naquele Bar e resolve sentar-se connosco à volta de uns "Scotch-on-the-Rocks".
- Olá, por aqui?! Então que tal?.... Está à espera de alguém, ou podemos...?-
- Não, façam favor… é um prazer… sou Carlos e você… é? Ah, muito prazer…mas sentem-se. O que querem tomar?.-
Uns sorrisos e umas coisas de circunstância, -Sabe, moro aqui próximo, e você? Se não me engano é para estes lados, não é? -
Depois vem a segunda rodada, a língua solta-se e a conversa trepa. Uma hora mais tarde, já o terceiro está na agonia da calote polar a descongelar dentro dos copos altos e a pedir uma urgente acção Escocesa contra o aquecimento global. Copos renovados, gelo até ao cimo e um pires de frutos secos e pipocas com sal.
- É pá, você sabe lá o que me aconteceu há dias lá no Banco? – continuaria o tipo se fosse bancário, mas calhou ser da repartição de Finanças onde tivera que deslocar-me nesse mesmo dia: - ... Já era a quarta vez que aquela senhora me tinha telefonado no espaço de uma hora, a perguntar por mim e eu a mandar sempre a dizer que não estava. Você conhece o género, não se lhe pode dar trela e o chefe da repartição é novo, quer mostrar serviço e põe o pessoal a bulir que nem uns mouros. Mas o sacana do Filipe ou não sabia ou fez que não sabia - sabe como é essa coisa agora do desempenho - descaiu-se e lá tive que ir e…-
Falava ininterruptamente, quase sem dar espaço para réplica enquanto passeava o olhos por entre as outras mesas, retornando o olhar para os interlocutores para regressar novamente para o balcão e os outros frequentadores, enquanto entre dentes uns cajus mastigados rodavam entre dentes e sons.
Foi aí que de repente senti o toque suave a subir pela ponta das calças, o dedo grande a levantar o tecido enquanto a parte interior do pé subia levemente dois ou três centímetros pela nudez da minha perna.
- … Já viu o que é, ter que estar com o telefone encostado ao ouvido e mexer no teclado? Bem, foi uma barracada… Acabei por nem fazer uma coisa nem outra…-
Olhei de soslaio para ela, que se fingia de distraída pelos trabalhos em tinta da china, elaborados no registo sensual, com que o dono do “Copus” tinha decidido decorar as paredes do estabelecimento. Descalcei o meu sapato e os dedos, subitamente acordados para o espaço, procuraram os seus. O tagarela tinha-se calado e mastigava uns cajus enquanto despia uma tipa que tinha acabado de entrar e que ficara junto ao balcão. Olhou para mim e piscou o olho: - Boa, no linguajar de qualquer gajo.
Agora o pé dela estava exactamente no meio das minhas pernas. Não resisti e, súbita mas discretamente, desci ambas as mãos sob a mesa, segurei-lhe por instantes o pé, acariciando-o, enquanto a mirava sentindo-lhe a feminilidade toda imersa em mim.
- Sabe, amigo - voltou-se ele, subitamente de regresso ao argumento… Desculpe, não fixei o seu nome...
- Carlos, respondi quase a engasgar-me…
- Ah sim, Carlos, já me tinha dito, mas eu… Epá, naquele dia saí de lá era quase meia noite, tá a ver? E depois não é só isso,…-
O pé ora carregava um pouco sobre a dureza da erecção para regressar depois às leves passagens de veludo onde o toque, de tão leve, era terrível e excitantemente quase apenas sugerido. Um deslize entre margens de músculos e sonhos, nascentes de aves loucas de tantos fogos incendiadas…
Fechei os olhos durante uns breves segundos em que a conversa sobre IRS, taxas e multas soaram a cento e cinquenta mil anos-luz e voltei a abri-los para encarar dois olhos fascinados, felinos e terríveis no seu sorrir a sobressair do copo. Imaginava-a nua, os meus dentes a percorrer-lhe o pescoço e ombros, a língua a passear-se pelo poema dos seus peitos, os dedos a desbravar e a descobrir-lhe os clítoris que existem numa mulher sob todos os poros da pele e fundi-la finalmente, num abraço, num único instante interminável e profundo de sexo intenso...

Um estremecer surdo e interior percorreu-me todo o corpo. Apertei a bebida, mordi o lábio e olhei para o tecto em tijolo que caiu sobre mim em milhões de estrelas quando as pálbebras em cortinas fechadas se abriram para o mais profundo infinito interior. Deixei-os ficar assim durante mais uns segundos, os mesmos que duraram o Big Bang: dizem que foi menos de um quarto de um milionésimo de segundo, mas eles sabem lá o que é um segundo quando apenas existe a Eternidade e não há ainda mundo a girar à volta dum sol, aprisionado no tempo que depois de dividido por essa ínfima expressão da matéria - o Homem - em milhares de milhões de bocados, dá para fazer os Segundos de toda a História do Universo.
- Você parece estar com sono - interrompeu o tagarela.
Abri os olhos para o copo que se aguentara na mão e bebi um golo lento, respirando profundamente depois.
- Não é nada - respondi - de vez em quando sabe bem fecharmos os olhos e olharmos para… o infinito, não sei se me entende.
- Oh, se entendo… - respondeu, dando pelo levantar do indicador e a expressão do rosto a indicação nítida de que iria dissertar sobre o tema.
- Querido… adiantou-se ela evitando ter que interrompê-lo, enquanto ao rodar o corpo na direcção do companheiro acabava de fechar as pernas, acabando assim de rejeitar o pé que eu lhe acabara de colocar sobre o púbis.
- Desculpa , mas precisava de ir-me embora.-
Olhou-me uma fracção de segundo, regressando depois para ele.
- Sabes como amanhã tenho que estar lá cedo…

10 fevereiro 2011

Memórias da Praça



Passou mais uma vez pela praça.
Seria naquele dia talvez a quarta ou quinta vez, não o sabia ao certo, mas isso também pouco ou nada importava. O importante era sentir o penetrar do seu corpo por aquele espaço, sentir por momentos a vertigem das aves sobre a sua cabeça quando cruzava o centro do empedrado e com um único relance enchia num voo de olhar todo o vazio ao seu redor, até ao ponto onde as pedras postas no chão mudavam de sentido, subindo na vertical, fazendo paredes delimitadas por aberturas, portas, janelas, varandas. Respiradouros por onde os cheiros dos seus mundos interiores comunicavam com o espaço comum que ele agora atravessava.
Agora a luz da tarde começara já a cair e o sol, a incidir de forma oblíqua, expunha de forma crua como as nossas memórias se guardam no que é belo e eterno. Quase todas as paredes mostravam estragos da invernia. Bocados de tinta danificada expunham vestígios da trama dos tijolos ao mesmo tempo que os verdes de musgo tingiam aqui e ali os recantos mais abrigados das construções. O próprio chão, pesasse embora o sol magnífico de todo aquele dia, cheirava a humidade e, nalguns sitios, como junto às sarjetas, a mofo e a coisas estragadas.
Parou mais uma vez sob aquela janela. Não tinha noção de há quanto tempo tinha sido mas o cheiro dela continuava tão fortemente implantado nas suas narinas como se a tivesse mesmo ali junto a ele.
Perante si correrram rapidamente as cenas que agora o faziam sentir a angústia de não ter com quem repartir a doçura que a sua saliva segregava. As esperas de dias, as mensagens de olhar, o ir e vir, e finalmente o primeiro encontro. Lembrou-se de como tinha sido e a intensa alegria que os dois tinham partilhado. Nem sempre isso acontece nos primeiros encontros mas no seu caso particular...
Naquela ocasião, tinham-se aproximado de imediato mal ela aparecera cá em baixo. Saíra subrepticiamente, à socapa, pois nem é preciso dizer que os quartos de sentinela lhe tinham criado problemas com os seus em casa.
Assim, sem mais demoras e eufóricos, tinham seguido juntos pela rua do centro da praça até ao pequeno jardim que ele conhecia desde a mais tenra idade e que ainda há pouco, quando ele ali estivera, alguém estava a regar. Durante o percurso, desejosos um do outro, tocavam-se, aproximavam as bocas sôfregas e pelo facto de ser então já noite, o calor dos corpos transmitia-lhes a mesma sensação de conforto e envolvimento que ele agora sentia olhando para cima, quente de sol e de memórias, agora elas já todas relva no jardim que servira de cama aos seus desejos....
Um ruido familiar fê-lo voltar-se para trás e de imediato as memórias se volatilizaram. Era a sua amiga, o sua maior amiga. Por um instante engoliu o amargo. Fora por ela que tinha abandonado aquele amor no exacto dia a seguir ao seu primeiro encontro quando ela mudara de cidade. Porque é que trocamos tantas vezes o amor pela amizade? - Interrogava-se agora mudamente, como tantas vezes tinha feito, quando estava zangado com ela, mas acabando por regressar sempre e sempre, como algo predeterminado e a que inexplicavelmente não podia fugir.
Agora já estava próxima e ele ensaiou um esboço de sorriso que ela respondeu com uns traços de rosto franzido e voz de enfado:
- Onde tens andado? Procurei-te por toda a parte! Vá, que temos de ir embora.-
E dizendo isto tirou do bolso e prendeu com firmeza o fecho na trela...

28 abril 2010

Diálogos maduros...

Por Charlie

... o que é feito dessa jovem maravilhosa?...

Olhando vagamente para a linha-mar do horizonte emoldurado pela vegetação típica daquelas ilhas e que os abastados do mundo tinham transformado nos resorts para onde transportavam durante uns dias os tiques do modo de vida do qual pretendiam descansar, moveu as excrescências adiposas e voltou-se para a companheira.
Mesmo junto a eles tinham acabado de passar duas estampas de mulher. Lindas e jovens, de corpos a desafiar a mente em lances sucessivos de poesia, vinham ajeitando os bikinis ao mesmo tempo que sacudiam os incómodos grãos de areia. Um apetite, pensou deliciado mordendo o que restava da sandes.
Rodou lentamente a bebida de enfeites ridículos e incaracterísticos que os seus dedos gordos seguravam, sorveu lentamente pela palinha multicolor, e enquanto seguia as linhas sinuosas dos movimentos de ancas deixou escapar:
- Lembras-te como começámos?-
Ela mirou-o por detrás dos óculos de sol que lhe cobriam totalmente os olhos. Sem dizer palavra imitou o gesto e deu um golo também na sua bebida.
- Se me lembro...-
E fechou-se de novo no seu silêncio, olhando por trás do conforto anónimo das lentes escuras que lhe permitiam, cómoda e despudoradamente, olhar para onde muito bem lhe apetecesse.
- Éramos então tão jovens...Acho que tu nem tinhas ainda feito os dezoito.
- Já tinha dezoito. – Interrompeu ela.
- Pois. Mas terias talvez mesmo acabado de fazê-los...-
- Enganas-te, que uma semana depois de nos termos juntado fiz os dezanove.
- Bem, isso pouco ou nada interessa. - acrescentou ele à pressa e já visivelmente agastado – A verdade é que éramos tão jovens, tão pobres mas tão cheios de sonhos e crentes no futuro... Lembras-te da nossa primeira casa? Um terceiro andar na parte antiga, o chão a cheirar a tábuas velhas... E os alguidares, baldes e latas que púnhamos por toda a parte quando chovia?
- Sim, lembro-me. – respondeu novamente em tom vago enquanto voltava a atenção de forma explícita para um belo exemplar macho que a poucos metros passeava os seus bíceps junto à mansidão cálida das águas turquesas.
Uma pausa sobreveio levando os olhares a divagar pelos areais, pelas águas, pelos corpos expostos, pelos pensamentos.
- De alguma maneira tenho saudades desses tempos, da paixão que nos consumia, da entrega genuína em sessões infinitas de amor. - Recomeçou fazendo uma curta pausa.
- Agora... - continuou - temos uma mansão enorme, carros de alta cilindrada nas garagens, casa de praia e de campo... A vida sorriu-nos, viajamos várias vezes ao ano, fizemos fortuna, mas por vezes... Sabes? Por vezes sinto a nostalgia da juventude e simplicidade desses tempos...-
Ela escutara em silêncio. Ajeitando a alça do fato de banho, olhou para ele, fez a linha do olhar passar por cima das lentes escuras e parou fixamente nos olhos do seu companheiro.
- Escuta, se tens saudades desses tempos é fácil. Pegas numas destas jovens de dezanove anos que passaram aqui agora mesmo, e que armado em basbaque tu ainda não paraste de mirar, e os meus advogados põem-te num ápice de novo e cheio de sonhos num terceiro andar com goteiras a morar com ela...
Num compasso de espera antes da réplica ficou a mirá-la, às marcas que o tempo acrescentara na pele a anos de exageros trazidos pela abundância.
- Lá estás tu com o mau feitio do costume. Porra! Diz-me lá o que é feito da jovem maravilhosa que conheci nessa altura? Fico a pensar o que é feito dela quando me ponho a olhar para ti...
- Querido... Não sabes o que é feito dela, dessa jovem que conheceste? Não sabes? Pois olha-me para essa tua enorme barriga... Está toda aí. Comêste-la! –

21 dezembro 2009

Limbo....



Uma breve aragem atravessa o espaço.
Tem o sabor morno de mãos que se sentem de olhos fechados
a meros instantes de rasar a pele.
Levemente e sem ruído, uma das abas do cortinado enche-se de ar
desdobrando-se depois num drapejo
onde todo o seu interior se espalha
sobre o sono
em lances de água à beira-mar.
Roda um pouco sobre si mesma,
a pele suada de repente tornada fria
no contacto com as línguas,
subitamente mares, que de dentro de si a envolvem.
Sente o vermelho doce que nasce nos olhos
antes do despertar e diz:
Não!...
Não desperta!
e afunda-se numa sinfonia de mãos
onde as suas são gaivotas
num céu acabado explodir
em sóis e estrelas de silêncio e gritos.
E o ar passa...
Traz o escuro morno
através do sono do corpo
em remanso

da espuma

em descanso ...

Charlie

19 novembro 2009

A garrafada...


Fui ainda a tempo de desviar a cara para o lado antes que uma garrafa ainda meio cheia de cerveja me atingisse em cheio, embatendo atrás de mim, na parede forrada até meio com ripas de madeira escurecida de verniz já muito sovado, sem brilho e estalado, por onde parte do conteúdo do vasilhame ficou a escorrer.
- Só me trazes para sítios destes - disse quase a gritar ao meu companheiro de farras antes de sairmos apressadamente daquela casa de putas onde tinha estoirado a sessão de pancadaria.
- Ainda bem que o gajo não reparou que foste tu. – disse ele já na rua em jeitos de evitar que me adiantasse a pregar-lhe um bom par de estalos.
- Sacana! Então tu é que começaste com a porra dos recados e a atirar papelinhos, e vens dizer que fui eu?
- Epa...'Tás a ver como foste tu?
- Eu?!....'Tás parvo...!
- Sim! Não vês como tu é que és um parvo que só me arranjas enleios?
- Eu?!... Enleios?! Mas se foste tu quem andava a atirar os...
- Raios te partam! Se fosses um gajo como deve ser tinhas logo sacado a gaja que te estava a fazer os olhinhos e não seria preciso eu estar a safar-te a jogada, meu panhonha da porra!
- E quem te disse que eu queria ir com a gaja? Com aquela ou com qualquer outra dali, daquela choldra?
- Além de parvo ainda te armas em esquisito...
- Não é ser esquisito, mas...
- És esquisito, sim, vai-te foder!
- Escuta, ó merdas! Seja como for, foste tu a acertar com o papelinho dentro do copo de uisque do careca, não fui eu, por isso vai lá à bardamerda com a tua tirada.
- Heeehe... foi boa a parte em que o gajo pensava que era o tipo dos brinquinhos que estava na outra mesa logo ao teu lado.
- Pois mas aquilo ensarilhou-se tudo uns com os outros e eu é que quase levava com uma garrafa nos queixos..
- Também diz-me lá o que farias se te caísse o que ele apanhou dentro do copo.
- O quê? Um papelinho?
- Não... Um preservativo...

Charlie

02 maio 2009

D. Leonor

D. Leonor (1458-1525)

Rainha de Portugal nascida em 1458 e falecida em 1525. Prima e esposa de D. João II



"Leonor... Lianor... Eleonora... Lianora... Alienora... Eulianor... Lenore... - Misericordiosa... Compassiva... " El-Nor ou !Allah nuur, ou "noor" (em árabe): "DEUS É A LUZ."
(Dr. Francisco J. Velozo)

***

Aproximando-se das vidraças, D. Leonor olha para o céu estrelado e deixa-se levar pelos pensamentos que pertencem ao seu filho e esposo falecidos. Ao seu irmão e cunhado levados pela voracidade das traições palacianas, e na sua solidão.
Junto a si, a sua aia e confidente arruma diligentemente os aprumos e tecidos dos aposentos reservados à soberana...


- Oh! Estas estrelas. Este firmamento! Que estranhos arranjos nos céus descrevem nestas noites as voltas do meu destino. Tudo está escrito nas estrelas. Ai... e como vejo de repente gravada a forma como as intrigas e o
infortúnio levaram a minha felicidade aos poucos. Estou morta para a vida, o meu filho tragicamente falecido pela queda do cavalo. O meu esposo morto em vida, levado pelo desgosto, deixou-se finar abandonando-me a esta solidão... Estou rodeada de tragédia e eu mulher só e sem a força dum homem ao meu lado, sem a sua presença quente nas noites do meu corpo, que definha sob o segredo dos desejos e que amortalha o sentir no sublimar da caridade!


- Em que pensais, minha soberana, que vejo os vossos olhos tomados desses brilhos que são o resumo gotejante das tristezas da alma?

- Minha boa aia, confidente e amiga. Faz já três anos que se finou o meu marido em desgostos, e mais de oito que quis o destino trocar as voltas e fazer com que o meu filho jamais visse as lajes que haveriam de cobrir os meus restos mortais.

- Oh minha soberana, quanto me penitencia a vossa dor de mãe e esposa neste pesar que é de todo o Reino, mas cuidai que sois vós vista pelas gentes como Rainha dos sofredores? Não é o povo que vos apelida de Princesa Perfeitíssima com todas essas obras generosas que vós tomastes em mãos, e que por isso vos ama? A recente Misericórdia que tanto tem minorado as maleitas e sofrer dos desafortunados? E o que dizer do apoio às artes, a esse novo génio do nosso sentir, Gil Vicente, e a todos que são sabedores das letras e demais artes?
E a vossa obra primeira, o Hospital das Caldas? Acalmai o vosso pesar. O povo adora-vos...


- Ai amiga, que só vós para me despertar um sorrir agora. As Caldas... Acaso sabeis como surgiu esse Hospital? Vejo um ar de interrogação no vosso olhar. Dir-vos-ei. Essa zona então desabitada, era um reduto de rituais da água e de fertilidade ancestrais e pagãos. As mulheres e homens vinham de longe amenizar, entre outras maleitas, as infertilidades das suas entranhas envoltas em símbolos e objectos representativos dos prazeres das carnes.
Pernoitavam na vila de Óbidos, enquanto nos dias certos se entregavam às forças maiores em práticas e rituais semi-obscuros e vistas como diabólicos pelo Clero. Foi graças ao meu defunto esposo, acedendo ao meu pedido, quem tomou mãos e, pela força da coroa, impôs que dessem largas ao culto de forma cristã de forma a sedar o Clero, e que se fixassem, com toda a sorte de apoios, as populações junto ao edifício que mandei erguer no sítio das termas. Foi ainda na vila de Beja que me viu nascer que decidi tomar em mãos este desígnio, por ocasião dum estranho presente que me foi ofertado por um primo.


- A julgar pela forma como tem crescido o povoado, bem podereis assentar no êxito das vossas medidas, minha soberana.

- Não sei, minha boa amiga. Não sei se teriam sido as minhas iniciativas, ou se apenas fui a visão ajuizada que deu luz e dia ao que todos na noite da alma sentiam.

- Mas, minha Rainha, o que vos fez, nessa altura, tomar em mãos semelhante tarefa, estando vós ainda em idades plenas de verduras da carne e limpidez de espírito?

- Sorrio levemente, minha boa amiga... há todo um mundo dos sentidos que nos ferve no íntimo como as palavras brotam das bocas dos poetas sem que eles saibam explicar as nascentes da alma. Mantende em segredo para todo o sempre, minha aia e, sob juramento de silêncio, isto que vos entrego em confissão; a minha devoção a obras de caridade é tudo o que me é permitido como soberana no desejo profundo dum afecto inexplicável, que me rói a alma e que me consome. Vinde aqui junto a mim e vede o que eu guardo neste pequeno cofre cujo acesso vos está vedado. Bem sei da vossa cara de espanto mas isto que vós vedes foi a oferta do meu primo de que vos falei. Este objecto de culto, este falo feito dos barros que ladeiam as terras das Caldas termais, foi o que me fez deslocar lá na primeira ocasião, e sentir após um breve contacto com as águas como esse local me fez sentir mulher e o corpo em flor... Sim, minha amiga. O meu corpo de mulher queima em desejo. Mas o recato, a minha postura e dignidade, não me permitem amar de outra forma senão com a entrega às causas que abracei. Amo o meu povo nas obras que lhe dou, na aventura das artes, com a chama com que entregaria o meu corpo ao fervor dum amante. E será em campa rasa junto ao povo que devolverei o meu corpo ao barro de que ele é feito, tal como este falo, num último gesto de amor e entrega. É este o meu segredo, e agora também o vosso. Guardai-o com a vossa vida. Que jamais saia de entre nós o que vos confiei...

Charlie
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A D. Leonor deu-nos a honra de fazer o 69º comentário a este texto:
"Ah, Plebeus, que consumis as vossas existências nestes rodeios... mas como vos compreendo. Tanto que guardo e que teria para dizer-vos. Contentai-vos contudo com este breve vislumbre. O que sei é muito mais que podereis alguma vez saber, mas sem que saia uma palavra da minha boca, calar-me-ei feliz se algum mortal as desvendar e as revelar ao mundo..."

03 fevereiro 2009

Horas tardias.

Por Charlie


... mesmo à porta de casa, correndo o risco de serem vistos por alguém...

Tinha sentido o momento em que silenciosamente dera entrada pela porta embora estivesse colocado numa posição em que não a poderia ver.

Num mero reflexo e sem ver as horas, olhou para o relógio.
Lentamente levantou o copo mirando como as gotículas que se haviam formado num ápice, confluíam agora em formas de arte por pequenas estrias rumo à base, interrompendo o percurso pela hecatombe dos dedos indicador e polegar, simetricamente interpostos à acção incontornável da gravidade. Um golo breve, a marca dos lábios e o sentir da outra presença na sala, relegaram o momento de contemplação para um plano indefinido.
- Não te fazia de pé, pensava que estivesses a dormir...-
- Onde estiveste? –
- ... Demorei-me mais do que esperava inicialmente e a reunião foi...-
- Julguei que te tivesse acontecido algo, - Interrompeu.- estavas com o telemóvel desligado. Podias ao menos ter dado um toque para eu ficar descansado, ou....pedir a alguém que telefonasse. -
Replicara ao encetar do diálogo com a sua companheira sem lhe olhar directamente nos olhos, mas terminara, após uma pausa cirúrgica, a frase num enfoque frio e intenso, esperando ler-lhe os sinais na expressão devolvida.
Ela colocara um após outros, o dedo indicar, o médio e anelar sobre as costas do sofá oposto ao do seu interlocutor. Afastou o olhar rodando o corpo ligeiramente traindo o desconforto que aquele instante lhe trouxera, mas num relance retomou a postura e voltando a pousar a mão respondeu:
- Sabes querido como tem sido difícil aos patrões manter a empresa com a crise a avolumar. Tivemos uma reunião muito complicada. No fundo, todos queremos apenas segurar os nossos postos de trabalho, e fiquei com a Marta a compilar os apontamentos, as resoluções, passar ao computador, imprimir, arquivar uns e preparar a distribuição de outros documentos...Enfim....-
- Entendo. As coisas não estão fáceis. Mas da próxima vez se vires que vais demorar, agradeço que me digas algo, um toque, um SMS basta. Entendes?-
Esperou um pouco e deu mais um golo voltando a pousar o copo.
- E as reuniões? Já terminaram?-
- É isso que eu queria dizer-te; amanhã iremos ter uma outra, um encontro com accionistas. Possivelmente poderá prolongar-se sabe-se lá até que horas... Depois desta com a comissão de trabalhadores...estou exausta....Vou deitar-me. É já tão tarde...-
Despediu-se dele com um fugaz beijo que ele correspondeu com a mesma fugacidade ficando a fita-la enquanto ela desaparecia por detrás da porta que dava acesso aos espaços mais íntimos dos aposentos.
Fechou a porta da casa de banho e mirou-se ao espelho afastando a alça direita do vestido. Aquela dentada no ombro...Meu Deus!...O que é que aquele homem lhe tinha feito! Não bastara a loucura das duas horas no seu apartamento a seguir à reunião. Já de regresso e ali mesmo à porta de casa, correndo o risco de serem vistos por alguém, metera-lhe a mão entre as pernas, a boca a percorrer desde o ouvido aos lábios, passando pelo pescoço, peitos, ventre e baixo ventre, e finalmente, regressando, o ombro onde lhe deixara a marca enquanto todo o seu corpo ardia e estremecia na febre mista de gozo e angústia de poderem ser descobertos.
Inspirou fundo e encetou o ritual do despir e dos preceitos de higiene.
Na sala, ele certificara-se de que ela não o poderia ver nem ouvir. Rapidamente pegou no telemóvel e carregou na tecla verde.
- Sim.- disse em voz sussurrada...-Foi por pouco amor. Mal cheguei a casa, e só tive tempo de preparar uma bebida, sentar-me e fazer de conta que estava à sua espera. Tinha acabado de fechar o carro na garagem quando ouvi, vindo da rua, o bater da porta dum veículo e ouvir a voz dela a dizer à colega até amanhã. Felizmente não precisei de esperar pelo elevador. Foi só entrar e subir enquanto ela procurava a chave para abrir a porta do prédio... Como? Não... ela não desconfia de nada, amor. E sabes? Amanhã tem outra reunião! Não é formidável?...
Dizes coisas tão lindas, és linda...também te amo.
Mal posso esperar pela hora de estar contigo novamente...Um beijo... -

Charlie

27 outubro 2008

Tanya

por Charlie

Olhei para ela, olhos nos olhos.
Não desviou o olhar, mantendo-o fixo no meu, interrompendo apenas para abrir a carteira e pagar o café que tomara ao balcão.
Tinha reparado como entrara, na sua elegância e postura suave e confiante. Como se dirigira ao empregado que arrumava umas chávenas por cima da máquina e como através do espelho me mirara. As pernas longas num corpo a sobressair dum vestido sem alças, a pele clara e o cabelo louro fizeram-me pensar que ela seria de origem nórdica ou eslava. Talvez sim, talvez não, pensei. O retirar dos óculos escuros no mesmo instante em que os nossos olhos se cruzaram através do espelho confirmaram a primeira impressão. Azul do céu, arrepiantemente frios a contrastar com o quente vermelho dos lábios sobre uns dentes ultra brancos a construir um etéreo sorriso de cinema.
- Sou de Moscovo – disse-me já no carro - e estou aqui há já algum tempo. - em resposta à minha pergunta sobre o seu nome.
Tinha ficado na rua à espera dela, saindo rapidamente mal a vira abrir a mala, olhando como ela saíra em passo apressado quando reparara que eu já não estava à mesa. Um “olá” já na rua e uma franca troca de olhares tinham feito o resto.
- Mas falas bem Português. -
- Sou tradutora. Estudei Português e ainda fiz trabalhos de tradução em gabinetes de tradução simultânea antes de vir para a Europa.
- É um trabalho bem pago... eh... -
- Considerando o rendimento médio na Rússia, nem ganhava mal. Em Moscovo até era frequentadora regular do Turandot e do GQ Bar - disse a rir.
Pensei no que me acabara de dizer.
Esta noite iria custar-me uma nota.
Estivera havia já uns anos à porta do restaurante que ela acabara de mencionar, e a minha vontade de conhecer aquele espaço requintado, de decoração barroca com laivos de rococó toda em dourados, onde o requinte chega ao ponto de ter um grupo de câmara a tocar Mozart, ficara-se pela entrada.
Alinhado com a minha visão dos tectos de relevo em frescos e suportados por colunas de mármore polido e trabalhado, estava a lista; o menú com os pratos do dia e outros, cujos preços me omito de referenciar.
- Então como vieste para cá? Ou melhor, porque estás cá? -
- Bem, estive em Bruxelas duas vezes, depois fiquei umas semanas e finalmente vim com um diplomata e fiquei aqui. Sou acompanhante, uma acompanhante... especial. -
- Já vi que não queres dizer-me o teu nome, mas gostaria de chamar-te algo, sei lá...-
- Podes chamar-me Tanya. -
Durante uns segundos deixei os cavalos do SLK - a descer a avenida em aumento rápido de rotações - preencher o silêncio antes de abrandar ao entrar na rotunda do Marquês e perguntar-lhe:
- Vamos jantar, Tanya? Preferes algum lugar em especial, ou deixas que eu te leve a um sítio à minha escolha?
- Nyet! Não... Jantar não. Talvez depois, agora quero mesmo é ir para o Hotel.
- Tens preferência?-
- Só vou ao Ritz...- respondeu enquanto olhava fixamente para o meu pulso onde o Rolex testemunhava surdo na sua marcha persistente e monótona de contar o tempo.

A noite trouxe o frio do parque para dentro da suite quando o seu corpo nu junto à janela se desenhou em silhueta contra a luz de cores difusas com que a cidade lavava o escuro do céu.
Na cama, o meu corpo suado estremeceu levemente com a entrada duma lufada de ar que ali me pareceu gélido.
- Tanya... Não tens frio? –
Rodou o corpo, e adivinhei-lhe um sorriso.
- Nyet...Se conhecesses Moscovo...-
- Por acaso até conheço - disse-lhe.
- Então?... Isto nem é frio...-
- Estive lá de Verão... Escuta, sei que talvez não seja agora apropriado, mas antes de sairmos para comermos qualquer coisa, e já que há bocado não me quiseste adiantar, gostaria que me dissesses... entendes? -
Aproximou-se devagar, perna ante perna até encostar o sexo aos meus olhos. Depois, pegou no telefone do quarto, premiu um dos números e esfregou-se levemente pelo meu rosto enquanto esperava o atendimento:
- Sim? Olhe, traga uma garrafa de champanhe e ostras, por favor... Como? Ah sim, claro. Dom Perignon...-
E pousando o auscultador, deitou-se sobre mim e disse-me:
- Há já algum tempo que reparei em ti. Tens um carro igual ao meu...
Hoje...
Hoje estás por minha conta.
E se queres saber um segredo, vou dizer-te o meu nome verdadeiro: Tanya... -

20 outubro 2008

O telefonema


...para mostrar-me como eu era nabo e ele um machão que se atirava logo à febra...

A porta estava apenas encostada como tinha sido combinado pelo telemóvel.
- Quando estiverem mesmo a chegar, dão-me um toque. Não usem a campaínha, por favor - repetira ela.
Pela nesga entre a porta e a ombreira, um fio de luz quente penetrava as nossas pupilas, já feitas ao escuro após a luz das escadas ter-se apagado ainda antes da entrada no elevador, de modelo antigo, todo aberto e de porta de correr em grade de xadrez .
Vieram-me à mente situações vividas em meros segundos entre o fechar e o voltar a abrir dessas pequenas caixas, quase herméticas, mas neste? Todo aberto entre grades como uma gaiola?
Qualquer momento íntimo e fugaz aqui dificilmente resumiria o segredo a quatro paredes, pensei enquanto a máquina lentamente fazia o seu percurso ascendente.
- Subam até ao terceiro de elevador - terminara ela o telefonema. – o último lance, o quarto andar, só tem acesso por escada e minha porta é a única... -
Entendi que o apartamento seria uma adaptação posterior dum espaço inicialmente não previsto para habitação, mas isso agora não importava.
Viera ali àquele local com o meu amigo de andanças nocturnas após termos passeado os nossos dedos, primeiro em ar de graça, depois já com outra ideia no sentido, pelas páginas de anúncios classificados dos jornais diários.
A mesa cheia de imperiais e uns pires atafulhados de cascas e restos de camarão a par do rosto ensonado do Mário, o dono do Snack Bar, a passear numa primeira passagem a vassoura pelos recantos do recinto, fizeram-nos sair para a noite já fresca de Outono.
- Tenho aqui o telefone da gaja - riu-se triunfante perante o meu olhar ingénuo que dum estafado passo de mágica esperava ver-lhe sair uns rabiscos em algum guardanapo ou recorte de canto de toalha de mesa por entre os dedos.
- Aqui, pá!- disse visivelmente zombeteiro enquanto de telemóvel na mão premia a tecla de chamada.
Não reparara quando é que ele copiara para o seu telefone, um ou mais nomes e números. Possivelmente teria sido quando eu ao balcão fizera contas com o Mário e trocáramos uns dichotes de circunstância.
Passaram largos minutos de conversa fiada e por fim fechou o telemóvel com um convencido:
- Tá no papo, vamos lá agora e nem sequer é longe! –
Apenas por saber que um silêncio oportuno tem muitas vezes mais sabedoria que certas palavras ditas a quente é que não o mandei à merda naquele exacto momento em que, fechado o aparelho, se assumia no papel de grande conquistador. Apetecia-me ter-lhe perguntado onde estava a pica de "ter no papo" alguém que tem um anúncio no jornal onde põe o papo à distância dum telefonema, desejavelmente mais curto e directo do que a estopada a que o meu amigo a sujeitara.
- Telefona tu agora - disse-me, interrompendo o silêncio que se instalara, apenas pontuado pelos passos da nossa caminhada na calçada.
– É já aqui. Assim ela fica familiarizada com a tua voz. -
Entrámos directamente para a sala, onde o fio de luz quente que se escapava para o corredor era afinal o de um pequeno espaço parcamente iluminado e decorado com a combinação mais incrivelmente "kitsh" que alguma vez vira. A um canto duma estante, sem qualquer cuidado com preceitos acústicos, duas pequenas colunas de som, uma sobre a outra e amparadas por um horrível Buda verde em plástico fosforescente, debitavam uma letra dessas onde dor rima sempre com amor, e coração com traição, e que nos soam sempre à mesma música por mais que os diversos e pretensos artistas as chamem suas.
Cantada por um inenarrável duo de além mar, desses que são paradigmas dos clichés do mau gosto que se tornaram moda e criaram escola, serviam de fundo a um trautear com que ela nos recebia a criar ambiente. Disfarçando uma mescla indistinta de cheiros, uma varinha de incenso acabada de acender espalhava um fino fio de fumo rumo ao tecto inclinado.
Só o que falta agora é ela levar-nos para o quarto e ter sobre a cama pendurada a estampa do puto com a lágrima ao canto do olho - pensei eu, enquanto aceitava o convite para me sentar um pouco. Definitivamente e embora se tivesse combinado um menage à trois, o meu amigo estava com mais saída. Talvez por ser mais atiradiço, por ter falado com ela, ou ainda para mostrar-me como eu era nabo e ele um machão que se atirava logo à febra, não perdendo nunca uma oportunidade, enquanto eu para ali ficava em pose de infelizmência sentado a um canto.
- Só faço com camisinha - riu-se, enquanto desviando o rosto na minha direcção fazia com que a frase tivesse alcance para os dois. Da estante retirou uma caixa de CD que me veio mostrar. – Vou pôr uma coisa melhor, entendes? Mais romântica... Estás a ver? Aqui... Assinado por ele com uma dedicatória. Este comprei-o mesmo no Pavilhão Atlântico no dia do concerto. -
Olhei-a bem enquanto ela fazia a mudança dos discos. Não era propriamente um modelo de beleza , mas a postura, a sensualidade e a luz morna quase vermelha completavam o ambiente propício aos clientes. Já sem blusa, sobressaíia a forma como a lingerie apertava as carnes, fazendo-as sair em balões de chicha rumo ao espaço e à liberdade com a mesma ânsia que as adiposidades à volta da cintura o faziam.
- Vem... - acenou-me em direcção ao quarto, enquanto o meu amigo, de abraço sobre a cintura, lhe premia com gosto as generosidades acumuladas.
Esperei um pouco e levantei-me ainda a tempo de ver uma cama desarrumada, sabe-se lá desde quando. Quase junto a ela, e a ponto de a todo momento lhe cair para cima, os dois entregavam-se ao mister. Ele sôfrego, ela rindo, levantando o pescoço que ele lambia enquanto as mãos mexiam por todo o lado no corpo finalmente nu. Sobre a cabeceira da cama, uma lágrima a sobressair dum rosto de criança enquadrados numa imitação de tela decidiram a minha abalada.
Suavemente, sem fazer um único ruído, pelas escadas para não acordar o elevador.
Já cá em baixo e na rua, após uns passos e mirando ainda para trás lá para o alto, tirei o meu telemóvel.
- Sim, Lena?
- Olá...
- Escuta. Estás só? Queres vir tomar um copo?...-

Charlie

13 setembro 2008

A Predadora.

Por Charlie

...Teria que ir acordá-lo e desfazer-se dele...
(dedicado a ti que és insaciável)
A casa estava decorada ao estilo minimalista e sendo pequena via assim aumentada a impressão do espaço de que na verdade não dispunha.
Correu o anteparo de vidro acrílico onde uma mole vaga de gotas impressas se misturava agora com partículas de água que de verdade escorriam por entre essas outras, mais sugeridas que representadas. Uma pequena nuvem de vapor libertou-se em névoa do seu corpo, invadindo o restante da minúscula casa de banho, espalhando-se e como por encanto, indo desfazer-se no embaciar instantâneo sobre o espelho e azulejos.
Saiu de toalha à cabeça após ter-se limpo e esfregado vigorosamente e olhou com desagrado para a superfície brilhante transformada já num quadro de grosso orvalho a escorrer em dois ou três fios rumo ao lava-mãos.
O quarto logo ao lado, contíguo ao roupeiro de portas brancas, lisas e sem relevos, onde a casa de banho parecia estar embutida, devolveu-lhe um largo sorriso. Gostava de ver-se assim, nua, de aspecto ainda jovem através do enorme espelho. Cobria quase toda a parede fronteira à divisão de onde acabara de sair, com excepção dumas faixas laterais e de parte dos primeiros sessenta centímetros a partir do chão que eram ocupados por um móvel baixo e comprido com gavetas sobre cujo tampo brilhante se destacava, por entre uns pequenos frascos de perfume, um arranjo de ramos secos de tons escuros. Verdadeira "pièce de resistance", elevava elegantemente o olhar num fluir contínuo a partir do jarro estilizado em cristal, rumo a um momento Zen. Mesmo à ponta, no extremo oposto ao da cabeceira e quase a destoar do minimalismo da decoração, um pequeno televisor de tons vagamente prateados sobre um leitor de filmes. Logo ao lado ainda, um pauzinho de incenso no seu suporte e um minúsculo guarda-jóias faziam o pleno.
O espelho de tamanho desmedido, para o que era um quarto pequeno, - e o facto do móvel das gavetas ser baixo, parelho ao perfil da cama, ficando quase fora do olhar - além de multiplicar a tal sensação de espaço, aumentava ainda mais a luz natural filtrada pelos cortinados que cobriam por completo a parede e a porta de correr que dava para a varanda. Contrariamente ao que é habitual, a cabeceira da cama ficava voltada precisamente para essa entrada de luz natural embora as cortinas de cor clara, algo entre o translúcido e o opaco, ao ocupá-la de um todo, fossem mais como uma parede de luz que se prolongava quarto adentro já no virtual mundo paralelo e simétrico dos reflexos.
Olhou para ele espalhado pela cama. Dormia profundamente. Deixou-o estar. Afinal estaria decerto cansado da noite anterior. Sentou-se em silêncio aos pés da cama mirando-se mais uma vez ao espelho.
Aproximou-se e tocou-se através do vidro.
Como aquele espelho lhe era inseparável… Se alguma vez mudasse de casa teria de levá-lo com ela. À mente vieram-lhe imagens de si própria e dos corpos entregues, pernas e braços, lábios em voragem e volúpia percorrendo todos os caminhos nas sessões loucas de sexo a várias horas do dia, variando os homens com as horas, e guardando um especial para a noite. Tal como fora na noite passada. Tinha-lhe sido difícil arrancar este, um homem que se convencera ser de firmes princípios. Longe de tê-la desmotivado, fora antes e pelo contrário em cada avanço frustrado, mais um estímulo, mais um desafio a vencer. Casado e chefe de serviço, não se lhe conheciam escapadelas, infidelidades. Não por falta de oportunidade ou interesse pelo belo sexo, mas pela postura pessoal, pela norma de conduta que se impusera, numa palavra: pelo autodomínio.
Olhou para o quadro que desta feita ocupava, como peça única, uma parte da parede aos pés da cama. Uma cópia dum Picasso de boa qualidade: “Les Demoiselles d'Avignon” . Tinha o condão de arrancar sempre umas palavras a propósito e circunstância aos seus visitantes e ela passara a interpretá-las como a chave secreta feita em sons, rumo ao recanto dos prazeres, esse mundo de inúmeras variáveis e de perfil único em cada ser humano.
Olhou de novo para ele. Tecera-lhe habilmente a sua teia infalível de sedução. Não se enganara quando três meses antes tropeçara - a fingir ser sem querer - nele. Tudo fez para tê-lo por uma noite e aí estava agora, na sua cama, reduto de intimidade, profundamente adormecido, vencido...
Aquele homem era de fogo intenso, quiçá fonte de seu autodomínio e do esforço feito por controlar-se, subitamente libertado no primeiro beijo furtivo dois dias antes e que explodira inesquecível na noite que se finara em sucessivos vulcões, agora já ultrapassados.
Sorriu. Sempre em silêncio abriu a gaveta mesmo junto à cabeceira e retirou umas peças de lingerie. Vestiu-se e foi até à cozinha. De copo de leite na mão consultou a agenda.
Espreitou novamente para o quarto.
Teria que ir acordá-lo e desfazer-se dele. Para hoje teria a tarde ocupada, e à noite...
Ah... A noite seria o culminar de toda uma temporada.
Para passar o fim de semana alargado, chegaria no voo de Londres do final da tarde; ela, a sua namorada...

Charlie

05 setembro 2008

A casa da praia

por Charlie

Era já noite com a lua a aproximar-se do seu estado cheio num céu claro de fim de Verão. Vista de baixo durante o dia, junto à praia que a estrada ladeava, não era mais que mais uma casa encastrada lá no alto por entre vegetação e penedos enormes e cinzentos.
Mas agora que dera os primeiros passos após ter dito pelo interfone embutido no pilar do portão ao que vinha, sentia progressivamente a magia duma flor a abrir, inesperadamente revelada a partir do botão, passo após passo após o som duma palavra secreta.
Andou uma boa dezena de metros pelas passadeiras entre a relva do jardim suavemente iluminado e abundante em toda a espécie de plantas num arranjo cuidado e envolvente rumo à porta de vidro de armações em madeira que deixavam antever um interior de tons ocre claro, mais por efeito das luzes interiores do que da cor das paredes.
Sentiu-se por momentos a menina dos contos das florestas encantadas e deu por si a pensar que não se espantaria se na volta do último arbusto desse com um duende ou um esquilo falador ou até mesmo se tivesse que abaixar-se de súbito perante o voo rasante dum provecto e ajuizador mocho.
Todos os pensamentos se diluíram no ligeiro acelerar do coração quando transpôs o limiar da entrada através da ampla porta de vidro meio aberta e desceu o pequeno degrau que dava para o espaço muito docemente iluminado que se lhe abria agora ao olhar.
Era um salão amplo de solo em tijoleira vermelha dividido por um enorme sofá de cor branco sujo ao lado do qual se via uma lareira agora apagada dada a estação do ano em curso. Mas o que lhe prendeu deveras a atenção foi a surpreendente parede do fundo quase toda feita de vidro, melhor; de duas grandes portas de correr de vidro que projectando a sala para o vazio deixavam o estonteante espectáculo da baía e da praia aos seus pés, desenhadas em sonho luz e reflexos do luar.
Uma voz grave fê-la despertar do encanto e instintivamente olhou na direcção do som.
- Aproxime-se... isso. Aí está bem!-
Ficou-se quieta à voz de mando. Reparara agora nas costas dum cadeirão de cabedal em tons escuros de onde sobressaía uma mão de anéis nos dedos segurando um cálice meio duma bebida de tons iguais ao cadeirão. Ficou a olhar tentando, num misto de desconforto e curiosidade, saber quem era aquele homem que solicitara os seus serviços e que agora a recebia assim, de costas voltadas e ordenando-lhe distâncias.
Um silêncio instalou-se assim como o aumento da sensação de desconforto, uma vontade de fugir de repente dali, de correr jardim afora, descer a vereda até ao carro;
- porque é que não levara ao carro até ao portão? - lamentava-se agora nos seus pensamentos. Um piscar nervoso de olhos fê-la desviar o olhar novamente para a parede vidrada de onde a magia subitamente dera lugar a um dejá vu indesejado, a lua sempre igual e a baía igual a todas as outras... Inspirou fundo. Reparou então no reflexo quase apagado do interior da sala que o vidro devolvia, na sua própria imagem, apenas um vulto, e no sorriso quase adivinhado por entre o translúcido dum sofá escuro que agora via de frente através do vidro.
- Ah...!- ouviu-se num tom inesperadamente jovial, mas que logo retomou a serenidade e inflexão grave do início. - Levou algum tempo a descobrir... Sim, gosto de receber assim, nem você me vê, nem eu vejo mais de si do que a baía sobre a qual irá flutuar como num sonho. Faça apenas o que eu lhe pedir.-
Mandou-a despir-se lentamente. - Essa peça primeiro... assim... agora dê uma volta... não tão depressa, faça do despir uma flor a abrir lentamente e à medida que mais e mais se abre, mais e mais pétalas vai deixando cair. Uma agora, ficando a flutuar no ar até tocar no chão como um beijo. Outra depois, que já livre de todo o peso, toma a leveza do ar, e sê tu própria – tratava-a já por tu - toda a leveza do ar...-
Sentiu-se lentamente invadida por uma estranha calma primeiro e depois uma sensação de maravilha como nunca tinha sentido antes. Obedecia à voz de comando de olhos fechados como ele ordenara, finalmente nua, mera nuvem navegando entre luares através de todo o céu e eternidade, já não salão debruçado sobre o abismo e a baía, nem voz de comando, mas ela mesma toda o Universo em cada poro descoberto em si, mãos e pele num infinito corpo de sensações.
Masturbou-se seguindo a voz que era já a voz do seu interior, intensa e completa, culminando num espasmo longo de prazer como jamais sentira nem pensasse ser possível sentir.
Depois; um momento de silêncio sem medida. Sem que mais alguma palavra se ouvisse, vestiu-se e dirigiu-se à porta por onde entrara e que sendo também de vidro prolongava deste lado a sala pelo jardim, tranquilo e agora plenamente cheio de luar.
- Tens aí sobre a mesa do lado esquerdo, debaixo do pisa papéis, um envelope. Leva-o. É o que combinámos.-
Esperou que saísse e depois levantou-se do cadeirão. Acabou a bebida, poisou o copo e dirigindo-se à parede, abriu uma porta disfarçada, quase invisível. Desligou uns equipamentos e retirou uma cassete. De sorriso nos lábios foi até ao gabinete ao lado e colocou-a numa estante junto a outras dezenas. Sentou-se novamente e olhando para a invejável colecção privada deixou-se trespassar pela profunda satisfação que só um grande diseur de poesia como ele sabe sentir após a emoção única e inultrapassável de declamar um grandioso poema...

Charlie

29 agosto 2008

Copos num BAR e Conversas improváveis

por Charlie

... a morte é a nossa última queca em que só um lado é que goza...

Estive há dias novamente com ela.
À roda dum copo numa conversa em tom baixo, música suave e olhos nos olhos, lendo para além das palavras em cada pequeno jeito nos traços do rosto, cada pequeno sorriso, cada inflexão de voz.
- A vida não é apenas o intervalo entre umas quecas? - Disse ela após termos abordado, entre duas taças, diversos aspectos do eterno tema – Desde a queca a partir de onde foste feito até à tua última ?
- Bem, é um ponto de vista.- Respondi. - mas dito assim posso discordar. Há gente que nunca passou por uma experiência sequer em toda a vida, olha os místicos. Eremitas e sacrossantos que passam a vida em êxtase contemplativo....
- Desculpa mas estás enganado, Carlos. – Interrompeu. – As experiências místicas não mais são que uma forma intensa de sublimação da sexualidade. É sabido, e até guardado nas gavetas do desconforto da Igreja, as situações de orgasmo sentido por todo o corpo pelas noviças e interpretadas por elas como transe divino, de comunicação com o Senhor, com o transcendente. Elas em profunda paixão por esse figura quase nua, crucificada, Jesus filho de Deus, de olhos fechados entregues a quê? Diz-me, Carlos; entregues ao amor. E o que é o amar senão o gostar muito consubstanciado nessa entrega e posse mais intensa que nos está nos genes e nos vem ao cimo, mesmo que inconscientemente?: O sexo!
Olhei para ela e esperei um pouco.
- Tens razão nesse pormenor, - continuei já no uso da palavra enquanto, pegando-lhe na mão, brincava com os seus dedos - e até é sabido os castigos que as Madres Superiores infligiam às pobres desgraçadas quando elas numa pura ingenuidade lhes confiavam e descreviam, exultantes, as suas primeiras experiências de êxtase. Sabemos o que lhes acontecia depois dum enorme raspanete: Mortificação da carne, flagelação e jejum, oração para afastar os pensamentos pecaminosos que o Demónio habilmente lhes induzia disfarçados de prazer na adoração a Deus. Fechadas depois em celas de castigo, perdidas entre uma adoração abstracta e assexuada por um Senhor, que sendo homem não podia ter sexo nem ser Icon de prazer, e a verdade natural de ser-se mulher atirada pela lógica da razão irracional, passe o paradoxo, para os confins dos campos do mal.
- Bem, - interrompeu ela, - mas os conventos não eram só isso. Estás a esquecer-te dessas outras, noutras fases da História, que faziam das celas autênticos bordéis.
Acenei positivamente embora respondesse num tom de meia discordância.
- Bem, bordéis não diria tanto, mas lá que faziam as suas orações em ambiente privado e bem mais animado do que as desgraçadas de que falei agora, isso acredito. Mas quando discordava de ti quanto à vida ser o intervalo entre duas quecas, queria dizer além do que falámos sobre os místicos, que a última queca da vida, não quer dizer o fim dela. Há imensa gente que vive imenso tempo depois de que o corpo tenha deixado de sentir qualquer apelo.
- Acreditas nisso, Carlos? É o corpo que seca ou são os braços que baixam, presos a relações que há muito deixaram de ser nascente? Quantas vezes após um divórcio, gente com uma certa idade redescobre a vida, outros até descobrem-na verdadeiramente... Seja como for, repara, a morte é a nossa última queca em que só um lado é que goza. Quando morremos estamos feitos, fodidos...
Rimo-nos, e pegando-lhe nas mãos beijei-lhe as falanges, os polegares, à medida que ela encolhia os braços fazendo aproximar-nos os lábios. Detivemo-nos um instante, bocas frente a frente a um mero gesto do encontro, guardando o momento naquele limbo fantástico do cai-não-cai do caminhante a atravessar uma ponte de cordas suspensas e que de repente olha para baixo, a dezenas de metros onde corre mais rápido que o olhar, um portentoso rio por entre pedras e restos de troncos, sequiosos por dilacerar as carnes suspensas em vertigem. Afastámo-nos.
- Porque andas nesta vida, perguntei-lhe? Sabes falar de tantos assuntos, és inteligente e culta. Pergunto-me que tipo de conversas terás com certos tipos que apenas procuram Lolitas estúpidas e dar umas quecas...-
- Olha para mim. - Interrompeu. – O que te atraiu em mim? Não foi o corpo? Tal como eles. Mas meu querido, sou eu quem escolhe. Tenho os meus clientes certos que só são certos enquanto eu quiser. Uns conversam duas horas sobre os filhos, outros sobre pormenores dos negócios. Outros levam-me a sítios extraordinários, reservados só a alguns e que passei a conhecer e a incorporar na minha experiência pessoal... Na verdade ando nisto porque gosto, entendes? Gosto de conhecer gente, homens diferentes, rasgar fronteiras. Mete-me horror saber que teria de passar toda a vida com um deles embora me saibam bem os momentos em que eles me tratam nas palmas das mãos, das prendas e do dinheiro que generosamente me pagam para que eu seja só deles. Se queres saber sou como tu: gosto de foder, gosto de ti, falar contigo, rir-me contigo, levar-te para a minha cama, acordar ao teu lado e mandar-te embora, de preferência depressa, para que mais depressa sinta saudades tuas depois de estar com eles... Sou assim, entendes?

- Sim entendo, claro que entendo, - disse olhando para ela horas depois enquanto sem ruído calçava os sapatos e abotoava a camisa para que sem a acordar saísse depois porta fora rumo à minha casa. Para o duche tomado a sós...

05 maio 2008

A Casa da Lanterna Vermelha

Por Charlie

Chovia aquele quase sem chover que fica algures entre a ténue neblina e o gotejar indefinido e suspenso que deixa os cabelos, roupa e penugem do rosto cobertos, sem que o notemos, com um fino e quase imperceptível véu velado em translúcidas teias sob os caprichos dos vestígios de luz quando o tardio da noite lhes incide.
Entrei empurrando leve e familiarmente o puxador da porta.
Havia uns largos anos que não entrava naquele espaço, e confesso a estranha e arrepiante sensação de déjà vu quando, por entre o cheiro a tabaco agora proibido, dei com o leque meio aberto em cima daquela mesa ao canto, junto à passagem que repartia a zona reservada ao acesso do serviço de balcão com a porta que dava para a sala interior.
Sem olhar para mais nada e sem pensar bem o porquê sentei-me de olhos fixos no artefacto.
Quase religiosamente toquei-lhe sentindo um mar de emoções aflorar à pele. O seu rosto, sabores do seu corpo, ecos da sua voz por entre relampejos intensos do negro lembrar dos olhos que tão apaixonara o verde dos meus... Acordei ao sabor da voz quente e um pouco rouca:
- Não viu o que dizia na porta? - Olhei para ela.
- Estamos fechados, não viu?...- Continuou abrandando a inflexão enquanto o rosto se lhe aclarava à medida que me redescobria.
- Tu?... Estou a ver bem? És tu?-
Sorri-lhe em resposta reparando como o seu olhar descaía para os dedos que eu mantinha pousados em cima do leque.
- O que é feito dela?- Perguntei.
- Sabes que ela se foi. Nunca mais soube dela... O que queres tomar?-
Afastou-se apontando com o olhar vagamente para a garrafeira enquanto ia buscar dois copos.
Mirei-a em silêncio seguindo os gestos e acenei afirmativamente aos cubos de gelo que já sentada à mesa serviu e que estalaram ao contacto com os dois dedos de uísque.
- Sabes... As meninas que aqui entram, vêm cá para passar e dar uns momentos agradáveis e governar a vida, mas vocês tem a mania que elas lhes pertencem. Começam a pensar só com a cabeça que têm entre as pernas e põem a outra na prateleira, e depois é o que dá...-
Calei-me enquanto um nó se me fez na garganta e todo um turbilhão de sensações me tomou de novo, agora mais intensas e vivas. Pequei no leque, abri-o seguindo os desenhos em negativo a negro da china e incrustações de fino madre-pérola.
- Este leque... era dela.- Atalhei com um ligeiro embargo na voz.
- Há mais leques no mundo, não há?
- Este foi o que lhe ofereci... - Fez-se uma pequena pausa enquanto ela me mirava fixamente no olhar. Voltei a abri-lo e apontei a um ponto determinado:
- Estás a ver? As minhas iniciais e as dela ao lado...-
Abaixou a cabeça, descomprimindo a tensão com um evasivo; - Deve tê-lo deixado esquecido, às vezes pego nele quando me sento um pouco e descanso. - Esperou um pouco e de brilho nos olhos mudou o tema: - Escuta, tenho agora aí umas miúdas... Se bem te conheço e se continuas o mesmo que eras...- Piscou-me o olho e colocando as duas mãos cheias de anéis em cima das minhas continuou: - Elas contavam-me. - E riu-se tossindo...
- Não... de momento não, mas escuta, eu venho um destes dias por aqui, mas vou deixar-te um cartão. Se tu a vires, se ela aparecer por aqui ou se alguém da casa a vir, dá-lho e diz que gostava de falar com ela...-
Deixei-lhe o cartão em cima da mesa e despedi-me puxando a porta da rua certificando-me que estava fechada e entrei para a chuva que agora caía já abertamente e livre das névoas.
Da sala interior saiu um corpo perfeito de mulher, pegou no maço por detrás do balcão e tirou um cigarro. Olhou para o cartão de soslaio por entre várias argolas concêntricas de fumo.- Eu até gramava este sacana, sabes?...- e pegando no pequeno rectângulo de cartão rasgou-o em quatro bocados...

Charlie