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14 agosto 2024

«O prior Alberto» - Lourenço Moura

O sol já se pusera lá na serra
Desertas, as ruas da aldeia
Cada família no seu lar se encerra
À luz ondulante da candeia

Alberto, novo prior de Caria
Ouvia Albertina em confissão
As frases sofridas que ouvia
Davam-lhe grande comoção

A triste viúva relatava
P’la primeira vez o sucedido
Aos dois maridos que velava
Tão cedo haviam falecido

O primeiro, fora o João
Abnegado trabalhador
Terá morrido de exaustão
Em longas noites de amor

Luís, o segundo, um boémio
Apaixonado, mas absorto
Ela dava-lhe como prémio
Todos os recantos do seu corpo

O coitado, não resistiu
A dias, semanas, de paixão
Mal comia, de êxtase sucumbiu
Feliz, mas de frágil coração

Alberto estava em surdina
Ouvindo relatos tão ardentes
Imaginando a bela Albertina
Nos enlaces ditos, eloquentes

Padre nosso e Avé Maria
Deu-lhe então por penitência
Pediu-lhe - vá depois à sacristia
Queria dar-lhe uma advertência

Seguiram como combinado
A sós – a igreja vai fechar
Alberto foi à frente apressado
Atrás a Albertina “a rezar”

No lusco-fusco da sacristia
Ficaram em silêncio frente a frente
Debaixo da sotaina algo mexia
A ela o prazer veio-lhe à mente

Então agachou-se no soalho
Levanta-lhe a sotaina num repente
Beijou-o, guiou o hirto caralho
Para a desejosa cona ardente

Por instinto pegou-a pelas coxas
Boca, sexo, nada os detém!
Ele em pé rijo como rocha
Ela em movimentos de vaivém

Ela trabalhava com mestria
Capaz de converter até judeus!
Alberto em clímax, euforia
Só dizia “ai meu deus, ai meu deus!

O bom prior o orgasmo alcança
E no chão cai extenuado
Mas ela novamente avança
Sobre ele - carícias do diabo

Como por milagre endireitou
O que pouco antes já jazia
E sobre ele cavalgou
Um novo momento de euforia

Alberto estava extenuado
A Albertina muito fresca
Mais três orgasmos acabados
Ela excitada, animalesca!

Desesperado o nosso prior
Foge antes que a vida apague
Cambaleando em tremor
E seguindo ao ziguezague

Abre a porta meio desmaiado
Como alma-penada desce a rua
Cai de bruços, desamparado
Ao pé de uma fonte à luz da lua

Acudam, acudam, altos gritos
Albertina viera dar conforto
Junta-se muito povo - tão aflitos!
Alberto, na fonte, jazia morto!

Jura ela, p’los maridos seus
As últimas palavras do falecido
Foram “ai meu deus, ai meu deus”
Deixando todo o povo comovido

Santo padre Alberto, abençoado!
Ajoelharam-se em seu louvor
Desde então o povo emocionado
Chamou à fonte “Fonte do prior”!



23 junho 2024

«Desejei um pau feitiço» - D. Tomás de Noronha

Desejei um pau feitiço,
destes com que dão pancadas.
que se mede às polegadas,
bem feito, grosso e roliço:
achei um frade noviço.
Nariz grande e rosto fusco,
vinha cheirando a chamusco
e logo esta conta fiz:
quem tem tal cara e nariz
este tem o pau que eu busco.
 
___________________________
Incluído na «Antologia do homoerotismo na poesia portuguesa»

26 maio 2024

«O capítulo geral dos Franciscanos» - José Anselmo Correia Henriques

Tinha a Fama veloz passado os mares,
Levando a nova a diferentes Lares,
Que morto fora em tantos de tal ano
O Venerável Chefe Franciscano.
Chama-se a votos toda a Fradaria,
Para aclamar em plena Confraria
Um digno sucessor viripotente,
Capaz de governar fradesca gente.
Em Toledo, em Capítulo chamados,
São os robustos frades deputados;
O Capítulo enfim já começava,
Quando vermelho Frade assim falava:
 
«Vós, dignos pedestais da Fradaria,
Que fazeis dominar a Momeria,
Que tendes por herdade, e sois os donos
Do direito feudal dos Cus e Conos;
Vós, que vindes aqui ao Candidato
Com as vãs pretensões de ser Prelado,
Não vos fieis debalde nos talentos,
Que isso seria dar razões aos ventos.
Quem quiser aspirar a ser Prelado
Não deve por talentos ser julgado.
Seja ele embora da mais sábia raça,
Por São Francisco mesmo não há graça
Se não apresentar grande Caralho
Perde agora o seu tempo e o seu trabalho.
Quem melhor o tiver será Prelado
E seja este da escolha o ponto dado.
Dêmos, pois, a nós outros novo lustre
Escolhendo o Caralho mais ilustre.
Preparai-vos, ó Padres, neste instante,
A mostrar-nos o cetro fornicante.
Dos Marsapos brutais a reverência;
Vejamos quem terá a pr’eminência.»
 
Então mostrando o seu lhes diz choroso:
 
«Vede o sinal funesto, mas famoso;
Ainda que cortada meia pica
P’ra ser Geral, ah, vede o que me fica!
Ela é boa, meus Padres, segundo acho,
Seu aspeto bisonho é bem de macho.»
 
De zelo transportado, um Frade santo
Chega pertinho a ver prodígio tanto.
Depois de examinado o tal corisco,
Duas vezes jurou por São Francisco
Frei Tapa-Cu que o Velho mal julgava,
Com um ar de desprezo assim falava:
 
«Eu juro pela braga Franciscana
Que o velho Santarrão aqui se engana.
Frei Tassalho, segundo o rito usado,
Não tem Porra capaz de ser Prelado.»
 
Com a dextra a sotaina levantando,
Na esquerda a Porra enorme sopesando,
Bem digna de fazer, em todo o estado,
Feliz quem possuísse um tal bocado,
Grosso e vermelho, duro qual o corno:
 
«Eis», diz ele, «um Caralho feito ao torno;
Não aquele que mostra o frei Tassalho.
Bem pode sem bazófia meu Caralho
Doze vezes fazer o Cono em borra,
Sem que nas seis se desencaixe a Porra.»
 
A Fradaria riu-se do argumento,
Quais palavras que leva o rijo vento;
O Frade desespera da risada
E bate com tal força uma pancada
Com a ponta da Porra no sobrado,
Que o Concílio ficou todo assombrado.
 
«Admiram-te a Porra altipotente»,
Diz o Frei Tapa-Cu, o Presidente:
«Susta um pouco esse nobre entusiasmo,
Qu’essa Porra brutal nos faz um pasmo.
Um Caralho tão grande e tão grosseiro
Qual raio faz tremer todo o Mosteiro.
A sua vez será de ser medido
E se for o maior será pref’rido.
Padre Examinador, comece a roda.
Com ordem seguirá a chusma toda.
Sejam todos medidos na grandeza,
Na forma, na figura e na beleza,
Não escapando nada no tal Nabo
Que não seja anotado até ao rabo.
Que cada qual enfim mostre o que pode,
E o prémio seja dado a quem mais fode.»
 
Findou o tal exame de pancada,
Ficando a resol’ção ‘inda empatada
Frei Fura-Cono e Frei Escalda-Rabo
Dividem entre si o maior Nabo.
Na Porra igual valor mostram os Frades,
Nos Colhões mesma força e qualidades.
 
«Fica o caso em Concílio reservado
A qual dos dois s’elegerá Prelado.
Para tirar os Frades da incerteza,
Exp’rimente cada um sua presteza.
Tragam aqui Rapaz e Rapariga,
Para em tudo cumprir a regra antiga.
Veja-se qual dos dois destes Marsapos
Porá o Cono e Cu em mil farrapos.
Qual dos dois na fodenga é mais mestraço
Ou na frase fradesca, mais Cachaço.»
 
Findou enfim a regular Visita.
Eis vem Rapaz, e Moça bem bonita,
Bela qual fresca rosa em primavera,
Onde Amor com prazer ali impera.
Os Frades só de vê-la se arreitaram,
Os Marsapos as bragas arrombaram.
Dá sinal o Geral a Fura-Cono,
Que salta sobre a Moça como um mono.
Foi dito e feito em cima de um estrado,
Que fora para o efeito preparado.
A burrical linguiça lhe pespega,
Obtendo à força quanto Amor lhe nega
Na vítima que jaz ali prostrada,
Pronta a sofrer a horrenda Caralhada.
E qual o Vencedor que a palma ganha
Em langonha e prazer a Porra banha.
Doze fodas lhe dá o Frade logo,
Sem que uma só vez errasse fogo.
O Caralho sacando do Besbelho,
Mostra a Moça loiríssimo Pentelho,
Nevadas Bimbas, que o Coninho esconde,
Crica beiçuda que o pudor confonde.
O Caralho do Frade, erguendo a testa,
Pede nova fodenga e nova festa.
Com luxúria escumando livremente
Entra no Cono estreito de repente.
Mostra em segundo ataque o tal Fradinho
Que Marsapo arreitado abre caminho.
Não podendo passar além do rabo,
O Cono borra com licor do Nabo.
Tem Fura-Cono, ilustre Candidado,
Todos os votos para ser Prelado.
 
Segue de Tapa-Cu a sua vez,
Qu’em uma só pancada fode dez.
Com três golpes de cu mostrou o Frade
Do São Francisco a rara qualidade.
Ficou a Moça desmaiada em pranto,
Que tal pode da Porra o furor tanto!
Trocam-se em ais os choros da Donzela,
Qu’o foder eletriza a Moça bela.
O Frade fodilhão, qual trovoada,
Dos diques genitais abre a enxurrada.
Avante, sem parar, no Como ardente,
Doze vezes soltou a grossa enchente.
Findadas, doze, cuida a Fradaria
Que a proeza do Frade acabaria.
Eis que, voltando da Moçoila a facha,
Vermelha Porra pelo Cu lhe encaixa.
Duas fodas lhe dá quando, acabando,
O Caralho do Cu saca pingando.
Em seu favor os votos tem o Frade
Da potente fodaz Comunidade.
 
Eis quando se lhe opõe o Frei Tassalho,
Com dentes no saial, mão no Caralho.
E com voz de trovão assim falava
Ao Concílio fodaz, que já votava:
 
«Para a escolha em questão eu tenho parte,
E a pretendo impugnar, juro por Marte!
Não é tão graúdo, Padres, meu Caralho,
Mas para fornicar, eis Frei Tassalho.
A prova é esta: dou-lhes sota e ás,
Começando a foder este rapaz.»
 
Do noviço as calcetas abaixando,
Vai o Cu do rapaz patenteando
E, sem cuspir em cima, encaixa a Porra;
No rego culatral dá suja borra.
As mãos bate a sórdida Quadrilha,
Cuidando ser milagre, ou maravilha.
O Frade, sem perder razão ou tino,
Fura sem dó o vaso masculino,
Dizendo foderá ali um ano
Sem que jamais do Cu tirasse o cano.
Fodeu o Santarrão no tal traseiro
Por seu próprio gosto um dia inteiro.
 
Os votos recolheu o Presidente.
Foi Frei Tassalho eleito plenamente
Quando um Frade taful, barrando a estrada,
Saída nega a toda a canalhada,
Dizendo que nenhum Geral seria
Sem primeiro mostrar que foderia
Quarenta vezes, tanto em Cu e Cono,
Em honra do convento e do Patrono.
Protestando apelar deste Concílio
Por um erro maior que o do sigílio:
 
«Pretendo dar as provas do argumento
Fodendo d’alto a baixo este convento.
Inda pois que o Capítulo murmura,
Hei de fodê-lo através da fechadura!»
 
Com o pé atrás e com a Porra alçada
Os Frades vai pilhar nesta cilada.
A Confraria assenta que convinha
Se apresentasse o Cu a quanto vinha.
Tantos que saem, quantos vão fodidos.
Nem mesmo os Velharões são excluídos.
O Frade por detrás a todos fode,
Fazendo dos seus Cus barbas de bode.
E a todos fornicou com força tal
Que não podem negar-lhe o ser Geral.
____________________________ 
Poesias eróticas escolhidas, 1818
Incluído na «Antologia do homoerotismo na poesia portuguesa», pp. 174 a 181

12 maio 2024

«O silêncio do olhar» - António F. de Pina

Era manhã ainda e já as aves se anunciavam
Num chilrear eufórico níveo e intocável
Riscavam no azul esquissos ígneos que só eu entendia
Enquanto esperava calado e recostado na minha própria solidão.
Os meus olhos procuraram no vasto horizonte o teu sorriso
Aquela claridade difusa que me faz elevar o pensamento.
Daí o silêncio.
Expectante reparei que trazias os braços abertos
E deparei-me com a ampla luminosidade dos teus olhos
Que estavam humedecidos e envoltos em brandos silêncios
Mas tão penetrantes que me senti paralisado.
E só depois de tantos silêncios enternecidos
Dei os passos esquecidos e abri os braços.

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

05 maio 2024

«A paixão do verso» - António F. de Pina

A palavra marca encontro urgente
Com a paixão do verso que há em mim
Letra a letra sílaba a sílaba
Num jardim de Outono de folhas secas
Sempre atenta aos devaneios do caminho.
O Sol no alto descreve uma curva generosa
No sentido literário do teu corpo
Na penumbra mais intrínseca da carícia.
As brisas são condescendentes e mornas
E inventam danças com aromas que despontam
No percurso percorrido em cada verso...
Entre os reflexos dourados que libertas
No eclipse do sol que há teu rosto.

À hora exacta no silêncio da tarde
O pensamento fervilha de emoção
E o olhar desprende-se da névoa solitária
Que os pássaros arduamente constroem
Pousando-a delicadamente nos lábios
Que trazes brilhantes e entreabertos.
Talvez queiras dizer algo e eu não oiço
Porque a minha atenção prende-se a tudo
O que a paixão abraça impaciente
Num bailado de palavras impossíveis.

Não sei se é beijo ou cansaço esta dormência
Esta candura suave da polpa dos dedos
Este deslizar macio na textura do papel
Esta ânsia louca de ensaiar segredos
Este som presente ímpar e consequente
Esta sofreguidão orgástica e lesta
Que me leva a ti na aragem solta que corre
No âmago do verso se o contentamento impera
Neste poema nado que não solto o choro
Pelos poros abertos escarpados e em brasa
Que tudo têm de mim menos palavras
 Menos sorrisos com sentidos abstractos
Só um olhar ansioso e inexplicável
Sobre a planura da ternura inexpugnável.

Sinto o som destemido do mar ao longe
Em ecos de profunda sensualidade
Rouco buliçoso entre entre espuma e salpicos
E sonoros gritos de aves planadoras.
Sinto a força animal da onda crescente
Na inquietação da palavra polinizada
Com os aromas coloridos das pétalas
Que viçosas se vão desprendendo de ti.
... Mas talvez o mar me ajude a prolongar
A intermitente erecção da tinta escura
Na planície alva e pudica do papel.

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

28 abril 2024

«Solstício» - António F. de Pina

Surgiste envolta em bruma e brisas abertas
Quando a clara manhã já estava anunciada
Mas não rasgava o ventre do amanhecer.
Trazias os olhos raiados de sol e demoras
A notar pelo brilho lento que irradiavam.
Nos teus delicados dedos trazias a urgência
Porque o dia ainda começara
E já dos teus cabelos pendiam certezas
Douradas e longas que me envolveram
Num bailado suave e belo como um beijo
Como um pássaro pequeno em doce canto.
E porque intensos eram todos os abraços
Corremos os reposteiros da manhã
Alheados da tarde e de tudo o que é finito.
Repousámos submissos de imensidão
Nos tecidos paralelos e desalinhados
Do tempo. O tempo nem sempre é grave
Porque as flores que em ti plantei floresceram
E deram frutos que amaduraram no Verão
Pois o Sol aí é infinito e quente
E as sombras verticais nunca esmorecem.

Não fosse o solstício e o dia se manteria igual.
Mas foi assim que de repente tudo entardeceu. 

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

21 abril 2024

«Sentimentalismo» - António F. de Pina

Toco-te as margens do pensamento
E sinto-te presente
Pela brandura rasante
Nesta ânsia expectante
E ansiosa da minha boca
Como melodia ou beijo
Ou brisa ou flor
Que pétala a pétala se desprende
Num silêncio tenso
Que me instiga
Este tão amargo e frio sentimento.

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

14 abril 2024

«Do fogo» - António F. de Pina

Explícitas as mãos descem vertiginosamente
Roçando os cúmulos que queimam os dedos
Na planície constante e clara do amanhecer.

Fulgem as dermes que o Sol incendeia
Em tardes paradas sem ar e sem cor.

Na cortina translúcida da lareira acesa
Eleva-se a lucidez que ruboresce e arde
Soltando brisas arfares remoinhos
Evaporando águas nos lagos serenos
Em labaredas finas de azul e magenta
Cerrando pupilas ofuscando mentes
No ténue deslumbre de vulcão em chama.

E sobram tornados em lençóis de fogo
Que somem paixões esbraseadas
E cinzas.

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

07 abril 2024

«Das emoções» - António F. de Pina

Entre céu e terra nós somos distância.

Périplo de utopias em águas correntes
Perene aventura no cais de desembarque.

Abrem-se os braços na demora mártir
Que o abraço ansiado origina em nós
Até sentirmos o peito apertado e rouco.

Dilatam-se artérias desenfreadamente
Ruborescendo epidermes dormentes
Ampliam-se bocas na avidez do beijo.

Cerram-se os dentes e os minutos breves
Na emoção ferina de morder o espanto
E os sons macios na orla dos sentidos
Que nos instigam todo o entendimento
Das cores que cavalgam o amor pleno.

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

31 março 2024

«Amar-te» - António F. de Pina

Amar-te
É ser um pássaro sereno e luzidio
Que esvoaça e que trespassa qualquer vidraça.

É ser espelho polido e brilhante
Onde gentil se deflecte o desengano.

É ser som acorde harmonia
Na canção que nos transcende o pensamento.

Amar-te
É ser uma nuvem inquieta e solta
Que na tua própria aragem se dissipa.

É ser fonte inesgotável de brandura
Cujo leito é feito de uma insaciável lisura.

É ser uma luz difusa e lenta
Que de uma espiral infinita se alimenta. 

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

24 março 2024

«Vivências» - António F. de Pina

Os olhos assumem-se planos e paralelos
Espevitando os contornos do anoitecer.
As bocas mordem o espanto e o sono
E todas as luas prenhes de insubmissão
Que espargem o luar pulverizado e pálido
Na verticalidade fria das faias outonais.
As brisas serpenteiam as arestas vivas
Sibilando quando sulcam palavras firmes
E quando se incendeiam nos atritos secos
Que os inertes e velhos granitos possuem.
Restam só os braços que agarram os rios
E todas as águas que desaguam no olhar
Em braçadas amplas quase abraço
Quase dor quase paixão primaveril.
Só as marés se mantêm fiéis e vivas
Num vai-e-vem luzidio de espuma e cor
E raios ensolarados que enfunam a vida
E as horas pardacentas do entardecer.
As sombras fugidias não amam a luz
Não amam o germinar lento da semente
Rubra e pomposa que origina o sonho
E todos os afagos subtis pelo teu rosto
Que só os dedos acesos sabem esboçar.
Meu amor nós somos loucos e lúcidos
E temos todos os caminhos descerrados
Onde já encontrados nos encontramos
Numa labareda azul e rubra que se expande
Ao infinito do que somos e queremos ser. 

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

17 março 2024

«Do amanhecer» - António F. de Pina

Amanhece quando nos teus olhos claros
Esvoaçam pássaros pelos prados verdejantes.

Amanhece quando toco a brandura da tua boca
E os olhos se cerram incondicionalmente.

Amanhece quando o ciciar incandescente do sol
Te quer beijar os níveos quadris aquietados.

Amanhece quando cai uma folha fulgente e rubra
Do pensamento florido que há no geminar da alma.

Amanhece quando a dissonância é derrubada
Por um eco paralelo no vértice de uma palavra.

Espontaneamente tudo em mim amanhece
Quando te sinto presente e resplandecente
Nas sílabas doces que o beijo silencia. 

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

10 março 2024

«Na tarde liquefeita dos teus olhos» - António F. de Pina

Tão amplo é este sonho em que mergulho
Na tarde liquefeita dos teus olhos
Que no canto das árvores purpurinas
Eu vejo espumas brisas maresias
Que descerram pensamentos e cortinas

Lá fora as cores saltitam agitadas
Na tarde liquefeita dos teus olhos
E do rúbeo silente que entra de rompante
Nascem fontes e lábios afogueados
Com que tu me presenteias o instante. 

«Na tarde liquefeita dos teus olhos», 2023
© todos os direitos reservados

11 fevereiro 2024

Carnaval à portuguesa - Jorge Castro

E vivó Carnaval! 
Cá fica uma brincadeira carnavalesca, em forma de poema, que fiz, já há uns anitos, mas que me parece não ter perdido muita actualidade: 

Carnaval à portuguesa 

Lucinda veio a terreiro 
trouxe um corpete ligeiro - saia curta - perna ao léu 
no treme-treme da dança 
treme o seio - treme a esperança 
treme quanto Deus lhe deu 
e no mar de lantejoulas entrevê o seu Honório 
exibindo as ceroulas do avô que já morreu
 - que em acabando a folia hão-de tratar do casório 
 tal qual ele lhe prometeu – 

e a turba já se atordoa c’o trio eléctrico à toa 
num espavento de som 
que vindo lá dos brasis espanta os nossos civis 
que aquilo sim é que é bom 

Lucinda agita este corso
 seio à mostra mostra o dorso - dá à pernoca com alma 
haja calma – haja calma 
grita o agente aflito agarrando um expedito 
que corria no asfalto p‘ra tomar Lucinda a salto 
 que pernoca assim mostrada perturba a rapaziada 
no desvendar do mistério 
deixem lá que é Carnaval ninguém leva nada a mal 
nem nada é caso sério 

Lucinda toda ela vibra mostrando bem de que fibra
é o corpetinho de lã 
e no cume do collant onde a saia acaba a racha
por lá se perde e se acha a rendinha da cueca 
que desponta em cada passo queimando qual alforreca 
um olhar sem embaraço 

pretinha assim rendilhada no contraforte da meia 
meia-volta volta e meia deixa a malta entusiasmada 
quais brasis nem qual Veneza 
assim sim à portuguesa 
uma coxa bem mostrada 

e as plumas do pavão em frente ao seu coração 
vibram mais porque afinal 
 em tempos de Carnaval no tempo amargo de crise 
o que o corpete desvenda é dádiva – não está à venda 
dá de si o que ela entenda 
enche um olhar que precise. 

18 setembro 2023

«Entardecimentos» - António F. de Pina

Nada há de mais jubiloso que o desabrochar do amanhecer
Por detrás da cortina enternecida e pendente da neblina.

Nada há de mais sublime que uma tarde esvoaçante de amor
Rejuvenescido e cristalizado no silêncio enigmático do olhar.

Já o entardecer amadurece na superfície morna da pele
E nas simetrias suculentas e rubras de cada beijo partilhado.

Ao anoitecer já os dedos cansados perdem a luminosidade
Na carícia estagnada e leve na planície do teu rosto.

Há sombras subtis do meu olhar caramelizadas e frias
Sobre as águas que brotam do brilho dos teus olhos.

Depois só o orvalho da palavra emerge do sentir
E mil sóis mil sons mil flores nos envolvem e nos exaltam.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados

11 setembro 2023

«Suspende» - António F. de Pina

Suspende o teu voo e deixa-te ficar
No ar ascendente planando a meu lado
Num abraço denso
Num olhar intenso.
Suspende a viagem e deixa-te ficar
À tona de água nadando a meu lado
Num arrepio de pele
Que a boca debele.
Suspende o levante e deixa-te ficar
No leito macio arfando a meu lado
Num tangível sonho
Marcante e risonho.
Suspende a fadiga e deixa-te ficar
No silêncio aberto sonhando a meu lado
A limar lentamente
As arestas da mente.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



04 setembro 2023

«Sentir-te» - António F. de Pina

Olho-te como nuvem clara
Neste imensurável e sombrio sentir
Onde o tom se tinge de carmim
E se desdobra em mil ecos transparentes
Mas palpáveis mesmo sendo tão distantes.

Abraço-te como raiz sedenta
Que mostra a flor da dor de quem se ama
Que cinge e cala a voz que se assume
Como um suspiro em vez de súplica
Em vez de farpa em vez de garra.

Beijo-te como pétala ao vento
Rubra e evidente em pleno Maio
Que assoma e sente o toque macio
Numa efervescência subtil e submersa
 Na bruma que desliza dos teus olhos.

Amo-te como águia alvoroçada
No planalto mais soalheiro deste sonho
Com o querer enraizado em assombros
Os olhos estacados nos escombros
Humedecidos com a lágrima de um sorriso.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



28 agosto 2023

«Liberta-te» - António F. de Pina

Vieste de longe com olhos incandescentes
Plenos de sol de sal e de incertezas.
Tinhas os sonhos e os remos quebrados.

Entre a serra e o mar apenas o aço forjado
Modelava com afinco o teu destino
Num rubro crepitar de forja acesa.

Agora tens o pôr-do-sol no teu semblante
Que eu contemplo embevecido e inebriado
Da janela itinerante dos sentidos.

Estás nívea assim despida da bruma ofuscante
Que te envolveu nesse obscuro percurso
E sentes-te luzente e leve e livre.

Mas trazes ainda acorrentado ou indeciso
O gesto imprescindível da carícia.
Liberta-te! Liberta-te em mim!

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



14 agosto 2023

«Rumorejam os sentidos» - António F. de Pina

Rumorejam os sentidos
Pela folhagem da pele
Como pássaros coloridos
Pousados no teu cabelo
Ou como pluma que passa
Pelas frestas da memória.
Meu amor é o momento
Das águas aquietadas
No brilho do teu olhar
Na planície da razão.
Não sei se é dia se é noite
Se é teu ou meu o arfar
Sei que sinto a tua pele
Pela minha a vaguear.
Rumorejam os sentidos
Neste mar neste esplendor
Nesta euforia de vida
De abraçar até à dor.
Meu amor é o momento
Do fluir das intenções
De navegar as marés
Numa canoa ou num beijo
Entre vagas e tufões
Sem remos e sem amarras
Ao infinito do tempo
Ao infinito do ser
Meu amor este é o momento
De te querer... querer... querer...

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados



07 agosto 2023

«Quero-te» - António F. de Pina

Quero-te nas sílabas doces
Que alicercem palavras de luar
Nas prosas de silêncio e madrugada.

Quero-te nas asas da aventura
Que sustentem a leveza e a lisura
Nas planícies mais claras do pensamento.

Quero-te com o corpo afogueado
Quebrando as cruas geadas da ilusão
Na mais serena brandura e volúpia da paixão.
Quero-te tal como te imaginei
E conheci:
Plena e resplandecente.

«O silêncio e o gume da palavra», 2022
© todos os direitos reservados