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15 fevereiro 2013

Oral

– Eu perguntei-lhe: “E que tal se me fizesses um fellatio enquanto lavo os dentes?” e ela respondeu-me: “Não há pasta.”
– E não havia?
– O quê?
– Pasta de dentes.
– Sei lá. Achas que isso é importante?
– Sim, se tu querias que ela to fizesse enquanto lavavas os dentes…
– Mas eu respondi-lhe: “Lavo só com a escova.”
– Mas isso não é lavar os dentes, é escovar…
– Isso foi o que ela disse.
– Foi?
– Foi.
– E tu?
– Eu reformulei a questão: “E que tal se me fizesses um fellatio enquanto escovo os dentes?”
– E ela?
– Ela olhou para mim como se eu tivesse melancias presas às orelhas e perguntou-me…
– Como é que é isso?!
– O quê?
– Uma pessoa olhar para outra como se aquela para quem ela olha tivesse melancias presas às orelhas?
– É um olhar entre a perplexidade e o desencanto.
– Se eu tivesse melancias presas às orelhas tu olhavas para mim com um olhar entre a perplexidade e o desencanto?
– Provavelmente.
– Estás a gozar!
– Tu queres saber o resto da história ou não?
– Tu é que disseste que a mulher olhou para ti como se tivesses melancias presas…
– Às orelhas, eu sei, mas isso não interessa nada!
– Então, o que é que ela te perguntou?
– “Trouxeste escova?”
– Eu?
– Não! Ela! Ela é que me perguntou se eu tinha levado escova de dentes.
– Ah!… E tinhas?
– Não.
– Não estou a perceber nada… Mas, afinal, tu querias lavar os dentes?
– Não.
– Então, porque é que falaste nisso?
– Sei lá, lembrei-me. Achei que era engraçado.
– O quê? Dizê-lo só ou que ela to fizesse enquanto tu o fazias?
– Sei lá, dizê-lo. Eu queria é que ela mo fizesse, se era a lavar os dentes ou a fazer outra coisa qualquer era-me totalmente indiferente.
– Mas tu tinhas de estar a fazer alguma coisa, é isso?
– Não.
– Tu é que disseste…
– Eu sei. Já percebi. Mas não tinha de estar a fazer nada. Queria é que ela mo fizesse.
– Um fellatio.
– Sim.
– E ela falava latim?
– Sei lá se ela falava… Não, não falava.
– Como é que sabes?
– Porque eu disse-lhe: “O melhor é esquecermos a minha higiene dentária e fazeres-me só o fellatio.”
– Disseste isso, assim?
– Disse.
– E ela?
– Disse-me que eu nunca devia esquecer a higiene dentária, que isso era muito importante; que tinha sido assistente de um dentista e que as pessoas não faziam ideia do estado em que as outras pessoas tinham a boca e que se soubessem nem se beijavam ou que, pelo menos, se tivessem sequer uma ideia, de certeza que não enfiavam as línguas nas bocas umas das outras; e que quando as pessoas desprezam ou omitem a higiene oral ou mesmo que quando só facilitam podem vir a ter muitos tormentos, tribulações e padecimentos…
– Ela disse isso? Assim?
– Foi, foi mesmo assim e continuou e, no fim, perguntou-me se eu ainda queria o fellatio e quando eu lhe disse que sim, perguntou-me “Onde?” e eu respondi, “Pode ser aqui”, e ela olhou para mim e perguntou-me como é que isso se fazia.
– Ela não sabia o que era?
– Não.
– Então, porque é que te disse que não havia pasta de dentes?
– Se calhar porque eu disse que os queria lavar.
– Se calhar… E explicaste-lhe?
– O quê?
– O que era o fellatio.
– Sim, disse-lhe o que era.
– E ela fez-te?
– Eu já não quis.
– E ela?
– Também não fez questão.

08 fevereiro 2013

A viagem

F. termina a frase com ar compungido, como se pedisse desculpa pela opinião que transmite. L. ouve-o com atenção até ao fim e fica a olhar para ele. Calados, F. e L. olham um para o outro. Um olhar significativo. Demasiado significativo. Desviam o olhar, os dois com a sensação de terem vivido um momento a raiar a mais completa mariquice. F. pega no copo de imperial e bebe. L. diz: “Tens mesmo a certeza?” F. acena que sim mas não olha para ele. Na verdade, olharam-se como irmãos, irmãos que não são mas cuja ligação é mais forte que a de muitos, senão todos, os irmãos. Eles não pensam nisso, só se sentem desconfortáveis. “Foda-se!”, exclama baixinho L., depois suspira e encolhe os ombros. “Não há nada que possas fazer”, assegura-lhe F., pousando o copo de imperial vazio. Continuam a sentir-se desconfortáveis. L. porque vai para o estrangeiro e o seu melhor amigo acabou de lhe dizer que a mulher o pode enganar. F. porque o disse. Os dois porque ainda sentem que se olharam significativamente nos olhos como dois rabicholas. Então, F. anima-se e diz: “Ou melhor, há”. L. olha-o expectante. F. continua: “Há e tu fazes. Se a fizeres feliz não há motivos para ter medo. Para duvidar. Estares aqui ou estares a milhares de quilómetros de distância é igual.” L. ouve com atenção, pronto a ficar descansado. F. continua: “As mulheres não precisam que um homem vá para o estrangeiro para o encornar, pá. Tens dúvidas?” L. concorda: “Nenhumas.” F. entusiasma-se: “Hoje em dia com os telemóveis e o facebook, temos lá hipótese. As coisas são o que são. Se ela te quiser decorar a testa não precisa que vás seja para onde for. Fá-lo e pronto.” F. ouve-se e interrompe-se, perdeu-se na verdade, na desastrosa verdade, e não é isso que quer dizer. L. ainda espera por uma conclusão que o conforte. “No entanto”, F. parou e fez inversão de marcha, recomeça lentamente, ao mesmo tempo que pensa na sua legitimidade para falar em relações; ele, ele um solteiro inveterado que foge de qualquer relação séria – “séria ou não séria”. F. lembra-se da situação mais parecida que teve com uma relação, são fáceis de identificar, são as três ou quatro mulheres com quem esteve e não lhes pagou para isso, e só com uma repetiu a dose por mais do que três vezes. É nela que pensa e, já agora, no marido dela quando andava à sua procura para lhe enfiar um balázio no meio da testa. F. sorri para dentro, safou-se. L. continua à espera: “No entanto?” “Ah! Pois… No entanto, se a fizeres feliz, se a ouvires, se a acompanhares…” “Eu vou estar em Itália, pá!”, reclama L. “Eu sei” F. exaspera. “Não podes entender tudo literalmente, bolas! Acompanhar aqui é interessares-te, é manteres o contacto diário, é surpreendê-la, é estares lá mas ela sentir que continuas com ela. Se fizeres isso…” L. abre um sorriso de orelha a orelha, faz isso normalmente, e anuncia: “Estou safo!” F. não gosta de ser interrompido, nem de felicidade em excesso: “Se fizeres isso” recomeça, “podes estar descansado… se ela te quiser enganar vai esperar que voltes.” O enorme sorriso de L. fecha-se tão depressa que, por um instante, F. teme que as orelhas do amigo desapareçam no vazio deixado pelo sorriso. “Desculpa?! Que lógica é essa?”, pergunta L., depois de pensar na frase sem alcançar qualquer resultado. “Que lógica de merda, é essa?”, insiste. F. torna a sorrir para dentro, L. está no ponto e daí a bocado vão às putas. O resto é conversa. “É uma questão de lealdade. As mulheres são assim.”

Garfanho
Blog Garfiar

01 fevereiro 2013

O toque

A mão escorregou no lençol e ele tocou-lhe na perna. Por momentos, o silêncio que os abafava pareceu-lhes mais espesso. Quase irrespirável. Não se mexeram.
– Então? – perguntou ela, ao fim de um bocado que lhes pareceu uma legislatura com um governo de coligação.
Ele tirou a mão e perguntou, defensivo: – O quê?
– Podes tocar – disse ela, depois de pensar se ainda valia a pena dizê-lo. – Ou não foi por querer?
– Que te toquei?
– Sim.
Ele voltou a fazer a mão escorregar pelo lençol até lhe tocar na pele nua. – Foi de propósito – mentiu.
– Mas paraste… – “Tal como agora”, pensou ela mas não disse.
– Não sabia se querias – justificou ele, sem mexer a mão.
– Mas agora já sabes que quero – disse ela, evitando cuidadosamente o tom ácido que agora lhe saía sempre que falavam os dois.
– Sim, sei – confirmou ele e fez o indicador circular num limitado espaço da perna dela pois quase não mexeu a mão. Chateava-o que ela pudesse dizer que queria que ele lhe tocasse mas que nada fizesse para que isso acontecesse ou continuasse a acontecer. Ao fim de uns segundos, recolheu a mão.
– É isso tudo? – Se se juntasse água, muita água, e gelo, a voz dela fazia uma limonada perfeita.
– É mais do que tu fizeste. – Agora tinham que dividir a água, muita água, pelos dois, e as limonadas eram absolutamente intragáveis.
– Querias o quê?! – Ela respirou fundo. Ele não disse nada. Ela sentou-se na cama e continuou: – Que eu, derretida pela ponta do teu dedo a tocar-me em cinco centímetros da pele da perna, ficasse louca de paixão e te abocanhasse? Que, levada ao cúmulo, ao expoente da loucura, te fizesse vir na minha boca e depois saísse a correr e fosse escrever o teu nome em toda a parte…
– “Em todo o lado essa palavra repetida ao expoente da loucura. Ora amarga, ora doce. Para nos lembrar que o amor é uma doença.”
– Dessa doença já estou eu curada. – Ela levantou-se da cama. – Tu curaste-me, João. Espero que não definitivamente mas curaste-me.
Ele sentou-se na cama a vê-la sair do quarto. Não se lembrava de nada para dizer.
Ela voltou atrás. Ele permaneceu sentado em silêncio, contrariado por não conseguir responder-lhe. Ela deu a volta à cama, agarrou na sua almofada, no telemóvel que estava em cima da mesa de cabeceira e avisou:
– Vou dormir para a sala. É melhor ligares o despertador que eu não te acordo!
– Definitivamente?
Ela parou na ombreira da porta: – Que não te acordo? – A pergunta dele pareceu-lhe despropositada.
– Não…
Como sempre ele não se mexia e parecia impávido e sereno e isso irritava-a mais do que tudo e não conseguiu esperar pela explicação: – Que vou dormir para a sala?
– Não, estava a pensar no teu “não definitivamente”; que eu te curei mas “não definitivamente”.
– Ah!... E?... Não percebeste, foi?
– É dúbio.
– Tu é que és dúbio! – Ela olhou para a almofada que tinha na mão direita e voltou a olhar para ele: – Eu espero voltar a amar ponto final – e virou costas ao quarto. Deu dois passos e pensou que ele era burro e que amanhã ia perguntar-lhe o mesmo e, então, sem parar de andar, disse mais alto: – Mas não a ti.
Ele encolheu os ombros, puxou a sua almofada para o meio da cama e deitou-se. “Tudo isto porque lhe toquei. Que pouca sorte…”

25 janeiro 2013

Quarenta minutos

– Queres dizer que… já tinham acabado quando fizeram sexo pela primeira vez?
– Foi.
– Acabaram e depois foderam?!
– Sim.
– Que raio de merda… E depois?
– Vestimo-nos.
– Foda-se! Não é isso!... Andaram três meses…
– Quase quatro.
– Ainda pior! E durante esse tempo nunca, nada?
– Algumas coisas, muitas vezes.
– Mas… Mas, sexo com penetração não.
(ri) – Não, sexo com penetração nesses quase quatro meses não.
– E depois, sim.
– Sim.
– Logo depois?
– Não, logo depois não. Já tínhamos acabado aí à meia-hora.
– Ahn?!
– À vontade. Foi mais de meia hora. Para aí uns quarenta minutos.
– Andam quase quatro meses e nada e quarenta minutos depois de acabarem...
– Pois.
– Mas que lógica é essa?!
– Aconteceu. Estávamos mais soltos, mais à vontade. Já não havia constrangimentos, sei lá… Aconteceu.
– E agora?
– Agora, o quê?
– Sei lá… Nunca mais se viram?
(olha em volta e murmura) – Não, vimo-nos… (ri com a expressão involuntária que lhe saiu). Temo-nos visto.
– E não só visto…
– E não só visto, de facto. Na maior parte do tempo estamos nus.
– Desculpa?
– Era um trocadilho com o facto de não ser só visto. Na maior parte do tempo eu não visto nada e ela também não. Não teve graça.
– E porque é que olhaste em volta antes de responder?
– Olhei?
– Olhaste.
– É que (torna a olhar em volta) andamos com outra pessoas.
– Tu e ela?
– Sim. E não há necessidade de alguém saber e não gostar. Entre nós não há qualquer ligação sentimental, nada. É uma coisa física, mais nada. Ambos sabemos o que temos e o que queremos e não queremos.
– Não querem mais.
– De algumas coisas sim, de outras não. (ri)
– Isso é evidente. (ri)

18 janeiro 2013

Felicidade

Ele encaminhou-se vagarosamente para ela e disse-lhe: “Podíamos ser felizes.” Ela levantou as sobrancelhas e esperou a frase seguinte. Ele agarrou nas costas da cadeira vazia que estava ao lado da dela e perguntou: “Posso-me sentar?” Ela lembrou-se das sobrancelhas e baixou-as, primeiro a esquerda e depois, com cuidado, a direita, olhou para a cadeira vazia e para os dedos dele a agarrá-la e encolheu os ombros. “És de alguma igreja?”, perguntou-lhe. Ele estranhou a pergunta e largou a cadeira, mas só depois de a puxar para si, criando um espaço entre aquela e a mesa onde cabia perfeitamente. “Com licença”, sussurrou ele enquanto flectia as pernas para se sentar. Pela forma desenvolta com o que o fez, ela percebeu que ele já o havia feito antes mas, na realidade, não pensou nisso. “Não” respondeu ele, já sentado. “Porque perguntas?” Ela tornou a encolher os ombros ainda que só até meio pois, quando se apercebeu que o fazia, decidiu não o fazer. “Não sei” disse ela. “Achei que a tua frase tinha qualquer coisa de religioso, sei lá…” Ele sorriu. “Já te tenho visto, sabes?” “Sei.” As respostas rápidas, curtas e secas embaraçavam-no: a resposta dela fê-lo hesitar. “Também me tens visto?” perguntou ele, coçando com excessivo vigor a barba rala na bochecha esquerda com as unhas. “Vai ficar marcado” apontou ela, literalmente, fazendo-o parar. O empregado de serviço à esplanada aproximou-se e perguntou se ele queria alguma coisa, ele disse que sim e pediu qualquer coisa. “E tu, queres mais alguma coisa?” perguntou ele, fazendo sinal ao empregado para esperar. Ela quis o mesmo que ele mas na negativa. O empregado afastou-se. “E, afinal, porque, ou como, é que podemos ser felizes?” Ela fez uma pausa em cada uma das virgulas e mastigou o “felizes” e ele pensou que ela estivesse a rezar ou coisa parecida e não respondeu, ela insistiu: “Então?” Ele olhou para ela e depois para o empregado que trazia aquilo que ele tinha pedido. “Então, o quê?” perguntou ele. Meio encolhido, o empregado pousou o pedido e tornou a afastar-se. Ela repetiu: “Porque, ou como, é que podemos ser felizes?” “Ah!” Exclamou ele, abrindo um sorriso. “Não tinha percebido a pergunta”, confessou. “E?” “Conhecendo-nos.” “Eu já me conheço”, disse ela, com ar sério. O empregado pousou a bandeja vazia no balcão, deitou o olho às pernas nuas que se viam abaixo da mini-saia que a colega atrás do balcão usava para andar e disse: “São sete horas.” A colega parou de movimentar bolos com uma tenaz de uns tabuleiros para outros, olhou para o relógio da parede e confirmou a informação horária que o colega tão diligentemente lhe transmitira enquanto pensava no que veria se ela levantasse a mini-saia. “Eu hoje tenho de sair agora. Já te tinha dito”, disse o empregado. “A esplanada está paga?”, perguntou ela. “Tu hoje tens o quê?” “Tenho o quê de quê?” “O que é que tens?” Ela riu-se. “Deves pensar…” disse, levantando a tenaz dos bolos a meia altura e esticando o braço e a mão na direcção dele. Abriu e fechou a tenaz várias vezes e ameaçou: “Tu querias era ser apertado. Bem apertadinho.” O empregado confirmou que não se importava de ser seviciado daquela forma por ela com caretas e acenos de cabeça e esticou-se por cima do balcão para a ver melhor. Ela olhou para a sala vazia, depois para a porta aberta, deu dois passos para a esquerda, afastando-se dele e do balcão expositor envidraçado, ficando protegida pelo balcão frigorífico e, sem largar a tenaz, levantou a mini-saia, deu uma volta rápida sobre si própria, baixou a saia e perguntou: “Satisfeito?

11 janeiro 2013

Agosto

Ana pousou o cotovelo esquerdo na mesa da esplanada e o queixo na palma da mão; os dedos tapavam-lhe a boca e as lentes dos óculos escuros os olhos. Provavelmente, se pudesse, não tapava nada mas também já não estava ali. Respirou fundo, afastou os dedos para o lado, inclinando um pouco a cabeça para a esquerda e tentou falar sem conseguir. Tinha um nó na garganta, um nó mesmo, um nó que a impedia de falar mas também de desabar num choro compulsivo ou numa torrente de palavrões e injurias. Ele parecia-lhe calmo, quase feliz. Parecia-lhe que, se ele não o estivesse a evitar, os seus lábios cresceriam até tocar nas orelhas num sorriso ofensivo. Maldoso. Tornou a respirar fundo, tentando perceber se, se insistisse em falar e, assim, em perder parte do auto-domínio, se chorava ou se o mandava à merda mas não conseguia decidir-se: eram muitos ses.
– Se não me dizes nada, vou-me embora – forçou ele, convencendo-a definitivamente que a única coisa a fazer era chamar-lhe nomes: chorar estava fora de questão.
Ana sorriu e encolheu os ombros. Mordeu o lábio superior, enquanto desapoiava o queixo e o olhava de frente. Tirou os óculos.
– Queres que eu te diga o quê? – ouviu-se perguntar.
– Qualquer coisa.
– Qualquer coisa, o quê? – Fechou as hastes dos óculos e pousou-os na mesa. – Qualquer coisa que te diminua a culpa? Que te ajude a ultrapassar o que fizeste? – Rodou os óculos com o indicador esquerdo. – Qualquer coisa com que possas justificar a merda de pessoa que és?
– Se é para desconversares, a conversa acaba já aqui.
– És uma merda, o que é queres que eu te diga?
– Eu não estou a ser mal-educado…
– Foda-se – Ana falava sem levantar a voz. – E eu estou? Por dizer merda e foda-se? – Paulo baixou a cabeça, confirmando. Ana sorriu tristemente. – Ou por te comparar à merda sem que a merda tenha culpa nenhuma?
– Eu podia não te ter dito nada – disse ele como se fizesse diferença.
– Podias mas o problema não é dizeres, foi fazeres. Estares a dizê-lo agora...
– Quis ser honesto contigo…
– Obrigadinho. – Ana abanou a cabeça e tornou a respirar fundo. – Mas não, não quiseste ser honesto comigo, quiseste aliviar-te da culpa. Quiseste transmiti-la, passar-ma. Contaminar-me com as tuas merdas. – Sentia-se cada vez mais lúcida e calma. – Se quisesses ser honesto não fazias, o resto são desculpas. É a forma que estás a arranjar para viveres contigo e, de preferência, conforme a minha reacção, de justificares à posteriori o que fizeste. Como se a culpa fosse minha.
Paulo abriu a boca para falar. Ana levantou a mão e ia continuar mas hesitou e concluiu:
– Não precisas de me dizer mais nada, Paulo. Aliás, não precisamos de dizer mais nada um ao outro.
– Eu não queria que as coisas ficassem assim…
– Vai-te foder! – Ana empurrou a cadeira para trás, agarrou o guardanapo que tinha no colo, passou-o pelos lábios, pô-lo ao lado do prato, levantou-se e foi-se embora.

04 janeiro 2013

51

Um sorriso enorme. Alberto quando saiu da casa de banho, de banho tomado, trazia um sorriso enorme. Um sorriso proporcional ao desejo que sentia, ainda que, naquele momento, só o sorriso sinalizasse o desejo, pois, o membro continuava flácido, molemente a apontar para o chão a imitar teca do quarto do casal.
Deitada na cama, Arlete desviou a custo os olhos da televisão quando ouviu o marido tossir e repetir a tosse enquanto permanecia imóvel em pé junto à cama. – Não te vestes? – perguntou, voltando o olhar para a televisão antes mesmo de acabar a frase.
Alberto respirou fundo e informou-a: – Estava a pensar foder.
Arlete sentiu um arrepio, os palavrões excitavam-na. Excitavam-na sempre, ainda que o marido não soubesse. – Alberto! – censurou. – Que modos são esses?! Sabes muito que eu não gosto de palavrões.
O marido permaneceu de pé, imóvel. – Não o estava a dizer como um palavrão. Foder, neste caso, era apenas um verbo. Uma coisa que eu queria fazer contigo.
– Há outros termos – replicou Arlete. – Não é preciso seres ordinário!
– Mas se eu te quero foder – justificou-se Alberto, em tom quase infantil.
– Alberto!
– Queres que eu diga o quê? Que quero fazer amor?
– É uma hipótese mais correcta.
– Eu não quero fazer o amor. – Alberto encheu a boca com o “o” e a mulher olhou-o espantada. Ele continuou como se cada palavra fosse o “o” da frase anterior: – Estou farto de fazer amor contigo, foda-se, hoje quero foder-te. Fo-der-te. Fodermos mesmo. – Alberto recuperou o sorriso com que saíra da casa de banho e até o membro ganhou alento e alegria com a assertividade com que ele falara.
– Já não temos idade para isso, Alberto – destrunfou-o a mulher com matreira meiguice, erguendo suave e compreensivamente as sobrancelhas. – Agora ou fazemos amor ou uma espécie de sexo pré-terceira idade. Foder já não é para nós. – Arlete não conseguiu evitar o embaraçado sorriso lascivo que dizer a palavra lhe causou.
– Que raio… – Alberto hesitou, engoliu em seco e pensou na resposta. O tema da idade fodia-o e ela sabia-o bem. Ainda estava a ultrapassar o trauma de fazer os cinquenta e já tinha cinquenta e um. “Foda-se”. O membro encarquilhou e tornou a apontar para o chão. A mulher manteve um propositado olhar terno e indiferente mas esperava, esperava mesmo, que ele se rebelasse, que insistisse. Que a quisesse.
Alberto olhou para a porta da casa de banho e para a porta do quarto, ambos abertos. Haviam esperado tantos anos por privacidade na própria casa e agora que a tinham faziam um amor modorrento, quase assexuado por vezes, num silêncio envergonhado, como se os filhos continuassem em casa.
– Foda-se – exclamou o homem. A mulher e o membro redobraram a atenção; tudo se decidia ali. – Quero-te comer, Arlete. Quero ser comido. Que se foda a idade. Vamos mostrar-lhe que não somos só fodidos por ela, que também fodemos com ela. Quero foder-te, Arlete. Foder-te. Agora. Aproveitar a casa. Aproveitar estarmos sozinhos. Aproveitar querermo-nos. Termo-nos! Que se foda a idade. Vamos foder como se tivéssemos 20 anos outra vez!
Arlete sorrindo aproximou-se do marido e estendeu a mão para o membro que também sorria ainda que não se visse. – Queres voltar a foder no carro, é?
– Foda-se…

28 dezembro 2012

Acta 14: "A assembleia foi suspensa por falta de ar."

Sempre que alguém do contra abria a boca, a mulher tossia como se estivesse para morrer tuberculosa ou estivesse a pontos de expelir um ser qualquer que se lhe alojara no sistema respiratório, e tossia até que a pessoa se calasse ou dissesse algo que lhe agradava.
– A senhora, se não consegue parar, tem de sair – avisou o administrador do condomínio, em tom pausado e cordato, depois de mais um ataque de tosse que fora em crescendo até ao silêncio de quem falava.
– Certas conversas, de certas pessoas, fazem-me alergia, senhor presidente – respondeu a mulher. – Não consigo fazer nada – disse, cândida enquanto olhava em volta provocadoramente. – Peço desculpa.
– Eu sou capaz de compreendê-la – rematou o presidente – mas temos de fazer um esforço, D. Alzira. Há pessoas que parece que não sabem viver em sociedade, quanto mais ser vizinhos num prédio. Temos de ser compreensivos.
– Eu sou, senhor presidente, eu sou – replicou a D. Alzira, sempre sorridente. – O senhor sabe que não há ninguém mais compreensiva do que eu.
– Eu sei – concordou o presidente, piscando-lhe sorrateiramente o olho.
– Mas os meus pulmões é que não têm a mesma compreensão e paciência do que eu, senhor presidente. Não têm a mesma resistência da dona…
– Com isso é que já não posso concordar – interrompeu o presidente, aéreo, lembrando-se do longo e elaborado fellatio que ela lhe tinha feito na piscina do condomínio, nessa tarde, enquanto preparavam a reunião. – A senhora tem uns grandes pulmões, D. Alzira… – O presidente calou-se, ligeiramente corado: a frase, apesar de verdadeira em mais do que um sentido (dois, pelo menos, eram evidentes e pareciam querer saltar da blusa da D. Alzira), soara-lhe mal, demasiado brejeira e dada a más interpretações, o que o seu olhar estarrecido para o recheio da blusa da mulher ainda piorava. O homem tossiu, olhou para o tampo da mesa, sem conseguir compreender porque pensara em fellatio e não em broche, e explicou sem pensar no que estava a dizer: – A senhora tem uns pulmões com grandes capacidades. Grandes capacidades e evidentes qualidades, D. Alzira. Consegue até passar longos períodos debaixo de água e…
A mulher começou a tossir como uma desesperada, mais alto e com mais energia do que alguma vez fizera e com tanta verosimilhança e convicção que acabou por ficar sem ar.

21 dezembro 2012

"Nas tuas mãos"

Quando o viu aproximar lembrou-se de Florentino Ariza. Do Florentino Ariza que imaginou enquanto lia “O Amor nos Tempos de Cólera”. Faltava-lhe o chapéu mas de resto parecia-se com a imagem que fez da personagem enquanto a meio da vida adulta aquele se embriagava em sexo clandestino. Imaginara-o mais novo e mais alto. Mais descontraído e – via-o caminhar na sua direcção abrindo um sorriso tímido, incerto – mais leve. Até o ver nunca tinha pensado em Florentino Ariza mas agora, sabia-o com a certeza dos factos demonstráveis cientificamente, nunca os conseguiria dissociar. Nunca vira o filme mas tinha a certeza que o homem que parara à sua frente era muito mais aquele que o Bardem.
– Olá – cumprimentou-a o homem, abrindo um sorriso radiante que se espalhava pela face e pelos olhos.
– Olá – respondeu ela, aceitando os beijos que ele lhe deu.
– Acho que nem precisava do livro – gracejou ele.
– Para me reconheceres? – Perguntou ela, atabalhoadamente, sem conseguir decidir se lhe falava na parecença que lhe achava com a personagem literária. Havia muitas conotações e variáveis. Havia muitas ou nenhumas explicações para dar. Havia ideias e juízos que ele podia ou não fazer. Calou-se.
– Sim, claro – respondeu ele, sorrindo, enquanto esticava o braço, apontando para a esplanada onde se iriam sentar. – Vamos?
– Sim – disse ela, começando a caminhar. Ele parou para lhe dar passagem. Ela deu dois passos e voltou-se para trás. Não era Fermina Daza. Não era Fermina Daza e não ia ser mais ninguém. Esticou o braço e deu-lhe o livro que lhes servira da senha: – É para ti.

14 dezembro 2012

As pedras da calçada


Eu perguntei “Então e a…?” depois de o cumprimentar e de termos dito e concordado que já não nos víamos há muito tempo mas ele levantou a mão direita, da qual me mostrou a palma e calou-me.
– Nem me digas nada – suspirou, voltando a palma da mão para si e ficando a olhar para ela.
– Não? – perguntei, abanando a cabeça para reforçar a solidária negativa.
– Não – repetiu ele, também a abanar a cabeça com uma expressão de cão sem dono. – Nem me fales nessa gaja. – Eu encolhi os ombros noutro gesto prenhe de compreensão e solidariedade e olhei para o chão. As pedras da calçada pareceram-me estranhamente tristes. Ele agradeceu com a cabeça e continuou: – A gaja foi o pior que me aconteceu na vida, pá. O pior!
Sorri do ar trágico com que o pior foi dito e lancei como se fosse um desafio:
– Pior do que quando partiste a perna?
– Muito pior.
– Pior do que quando estampaste o carro do teu pai?
Ele riu com displicência.
Eu insisti:
– E ficaste em coma três semanas e perdeste o ano e partiste a omoplata, a perna e o colo do fémur?
Ele hesitou, olhou-me fixamente, moveu o ombro para cima e para baixo e depois em movimentos circulares, esticou a perna e olhou para o pé.
– Pior – anunciou, depois de voltar a cruzar o olhar com o meu. – A gaja foi pior que isso tudo, pá. Foi mesmo a pior coisa que me aconteceu na vida – concluiu com suspirada convicção e deslocados olhos de carneiro mal-morto.
– Bolas… – deixei escapar.
– E sabes o que é pior?
– Ainda pior?! – Espantei-me e olhei para o chão. Apesar do calor, as pedras da calçada apresentavam uma inexplicável humidade. “Provavelmente já conhecem a história”, pensei.
– É que se ela me ligasse agora para ir ter com ela, eu ia, pá. Eu ia…

07 dezembro 2012

18:34

– Provavelmente já não te direi mais nada. – Gonçalo desapoiou o queixo da mão direita, passou os dedos em volta da boca e continuou: – Não sei o que mais te podia dizer. – Fez uma nova pausa e concluiu: – Não sei o que te dizer, Inês, não sei mesmo.

Gonçalo respirou fundo e engoliu em seco, sentia uma tristeza que lhe pesava fisicamente. Olhou em volta sem ver nada, sem a ver, atento só aos primeiros acordes da música lenta e desconsolada que parecia envolver todo o espaço. “Codex”, reconheceu. Não os podia ouvir muito tempo, sabia disso. Por exemplo, adorava “Kid A” mas quando chegava ao fim ficava normalmente num estado lastimoso, como se o mundo não tivesse solução nem a vida qualquer sentido. Ouviu os mais de quatro minutos da música em silêncio e sem se mexer.
– Eu sei que fiz tudo mal, Inês – Gonçalo recomeçou a falar num fio de voz mas como se não se tivesse chegado a calar. – Devia ter insistido. Devia ter-te dito que te queria. Eu queria-te, Inês. – Gostava de ouvir o nome dela. Precisava de dizer o nome dela. – Eu quero-te, Inês. A ausência de nomes nas conversas, magoavam-no. Percebia que as pessoas não fizessem por mal. Sabia que ele próprio era capaz de falar horas sem dizer um nome mas sabia, sabia tão bem, que, no fim, lhe ia custar perceber que não nomeara com quem falava. Que falara com aquela pessoa como se falasse com outra pessoa qualquer. – Provavelmente… – riu. – Provavelmente… – repetiu em tom sarcástico, acenando com a cabeça, censurando-se. – Quem eu é que eu quero enganar com estes provavelmentes? As coisas são o que são e os provavelmentes são pontos de fuga que arranjamos para não assumir todas as culpas. Todas as responsabilidades. A probabilidade de uma coisa não ser o que nós fizemos que ela fosse não é da nossa responsabilidade. Se, contra todas as probabilidades, um acto ou um conjunto de actos não tem o fim que devia mas sim um melhor do que o esperado, isso não se deve a quem os praticou, pelo contrário, aconteceu apesar da nossa culpa. – Gonçalo calou-se e concentrou-se na música mas não a reconheceu. Não lhe sabia o nome. Ainda eram os Radiohead e estavam a fazer-lhe mal. Isso sabia. Começou outra música. – Provavelmente – riu-se da repetição da palavra que, no entanto, julgava ser acertada nesta frase. – Provavelmente, esta não é a melhor banda sonora, Inês. – Levantou os olhos e viu-lhe a face inexpressiva e inescrutável. Fez uma careta para si próprio e, então, suspirou, sem querer mas sem o conseguir conter. – Desculpa – murmurou, sentindo o suspiro como uma falha. Levantou-se da cadeira e foi até ao leitor de mp3 que alimentava as colunas de onde saía a música. “Give up the ghost”, leu e sorriu. Tornou a ler e o sorriso abriu-se mais. Virou-se para ela. – Acho que ias achar piada a esta – disse. – À situação – riu. – É um bocadinho macabro e demasiado negro mas give up the ghost é, dirias tu se não estivesses aí, se não fosses tu o ghost, a banda sonora ideal para animar as visitas.
Gonçalo aproximou-se da cama onde jazia o corpo de Inês, tocou-lhe na mão, que o surpreendia sempre pelo calor que emanava e pela maciez, beijou-a levemente no rosto e despediu-se. – Até amanhã, Inês.
 – Ah! – Gonçalo encostou a porta que já abrira para sair. – Hoje vou pedir ao teu irmão que acrescente os Smiths ao mp3. – Riu como se risse com ela. – Claro, Inês, o que é que havia de ser? E saiu a trautear: – "Girlfriend in a coma, i know, i know, it's serious."

29 junho 2012

Entre a ponte e o caminho

Uma pequena ponte pedonal em madeira num caminho de terra num jardim com árvores frondosas e relva bem tratada. Um homem e uma mulher caminham em silêncio, seguindo os caminhos tortuosos, quase labirínticos, do jardim. O homem pára a meio da ponte. A mulher dá ainda dois ou três passos, continuando sozinha, sem dar conta da paragem dele, então hesita, volta-se para trás e olha-o com ar inquiridor sem obter resposta. Ficam onde estão: ele a meio da pequena ponte e ela já no caminho de terra.
– E se eu saltasse agora? – Pergunta o homem, pousando as mãos no tronco de madeira que serve de protecção lateral.
A mulher, que o vê falar mas não o ouve, mostra-lhe um sorriso esbatido e tira o auscultador do ouvido direito.
– Queres água? – Pergunta, mostrando-lhe a garrafa de plástico que traz na mão esquerda.
– Não – responde ele, aborrecido. – Não ouviste o que eu te perguntei?
– Percebi que querias água.
– Não quero. – E repete: – E se eu saltasse?
– Saltasses?
– Sim.
Em silêncio, a mulher olha para as mãos dele agarradas à madeira e para o seu rosto tenso e ressentido, sem se fixar neles, olha para a ponte e para as margens do ribeiro seco e esboça um primeiro sorriso. Então, de forma ostensiva, com um sorriso aberto e uma expressão provocatória, olha em volta como se procurasse um sítio de onde ele pudesse saltar com alguma dignidade. Volta a olhar para a ponte e para as mãos deles cravadas no tronco de madeira.
– Se saltasses dessa ponte? – pergunta por fim.
– Sim.
– Para quê?
– Não interessa. A pergunta é: e se eu saltasse?
A mulher aproxima-se da ponte e olha para baixo, para o leito seco do ribeiro que está a cerca de metro e meio da ponte. Sem dizer nada, a mulher olha para o homem à espera de uma explicação ou, é o que lhe parece que ele vai fazer, da continuação do delírio. Ele não diz nada.
– E ias saltar para quê? – insiste.
– Faz hoje um ano – declara ele em tom acusatório, sem levantar a cabeça, concentrado no leito seco por baixo de si. – Um ano, Estela.
A mulher não estava à espera daquele assunto mas não fica surpreendida. Sabe do que ele está a falar e está há demasiado tempo à espera desta conversa para se surpreender com o seu aparecimento, que, aliás, ela própria também podia ter iniciado. Não responde logo pois hesita na resposta e no tom – na realidade, hesita unicamente no tom em que vai responder; a resposta, percebe-o a olhar-lhe para as mãos, é-lhe indiferente. Completamente indiferente.

22 junho 2012

O azul do mar

Nunca foste capaz de te esquecer, pois não?
Não. Nunca ultrapassei o que me fizeste.
E nunca foste feliz?
… Fui. Sim, fui… Cheguei a ser.
Comigo?
Contigo.
Mas estávamos condenados. Condenados desde o principio.
Provavelmente. Vendo as coisas hoje, estávamos.
Achas que a culpa foi minha?
Quando se ama não há culpas.
Achas?!
Não, na realidade, não. Só na política portuguesa é que não há culpas, em tudo o resto há. Ainda que possam ser repartidas.
Eu amava-te, isso é verdade. E o que fiz, fi-lo por amor.
Eu sei. Sempre soube.
Mas nunca esqueceste.
Mas tentei. A sério que tentei.
E amaste-me?
… Sim...
Tens de pensar?
Em quê?
Se me amaste. Hesitaste. Não estavas a pensar?
Estava mas, pensando bem, não precisava.
Claro que não. Estamos a ser absolutamente sinceros, foi o que combinámos.
Não precisamos de pensar.
Pois.
Na verdade, acho que nunca te amei. Gostei de ti e quis amar-te mas nunca te amei, porque, mesmo nos momentos que gostava de ti e queria gostar de ti ainda mais e esquecer o que me fizeste, tinha de estar a pensar em querer esquecer… Acho… Acho que se alguma vez te tivesse realmente amado tinha esquecido o que me fizeste e nunca consegui… Desculpa.
Não tens de me pedir desculpa. Eu tive-te. Quis ter-te e tive-te. E não te peço desculpa.
Eu sei.
Sabes?
Sei, sempre tive consciência disso, mas…
Mas?
Dava-me conforto que alguém me quisesse e que, ainda por cima, me quisesse assim. O teu amor psicótico era o alimento da minha auto-estima desequilibrada.
Desculpa?!
O teu amor psicótico era o alimento da minha auto-estima desequilibrada.
Já tinhas pensado nessa frase?
Já.
E era por isso que me traías?
Por pensar na frase?
Não! Por causa do meu amor psicótico e da tua auto-estima desequilibrada.
Acho que sim. Também porque não era feliz… Mas sim, principalmente, porque ora estava de rastos ora estava no topo do mundo e porque queria demonstrar e perceber que podia haver quem gostasse de mim sem seres tu. E tu?
Eu?
Sim, tu. Traías-me porquê?
Eu… Eu… Acho que pelas mesmas razões que tu: queria que gostassem de mim, de estar comigo. Queria provar que era capaz e que, apesar de ti, havia quem me quisesse. Queria pensar que era livre. Que podia viver sem ti. Deixar de te amar. Libertar-me de ti. Ser outra pessoa.
És?
Hoje?
Sim. Sou. E tu?
Também. Estou diferente.
E, no entanto, estamos aqui.
Estamos só a tomar café.
Pois estamos...
A tomar café…

15 junho 2012

Mundo

Ele viu-a a caminhar lentamente como se tivesse esquecido para onde ia e ficou logo impressionado. Gostou do que viu e do que sentiu. Sorriu. Parou e ficou a vê-la seguir num passo lento mas certo, sem hesitações, nem paragens, como se caminhasse no seu próprio mundo. Enquanto a viu, ela caminhou sem olhar para onde quer que fosse e a cadência lenta com que o fazia fê-lo pensar em alguém que mais do que procurar o caminho se procura a si própria. Reforçou o sorriso pois já tinha bebido e achou graça à ideia de ver uma mulher caminhar uns segundos e achar que ela ia no seu mundo e, ao mesmo tempo, estava à procura de si (si ela, não ele, esclareceu, ainda que tivesse mais graça, pensou, se ela andasse de facto à sua procura, dele, não dela). Também pode ir ter com alguém, conjecturou quando a viu desaparecer duas esquinas mais à frente, mas se for não está como muita vontade. Mais valia vir ter comigo. Riram-se (ele e o álcool).
Na dúvida se não a devia ter abordado, seguiu, ele sim perdido mas não de si, do sítio para onde ir, e tornou a cruzar-se com ela. Andamos perdidos nos mesmos caminhos, eu sabendo-o mas sem os saber, tu sabendo-os mas sem o saber. Deixou-se de trocadilhos etílicos e concentrou-se na esperança que ela fosse para o mesmo sítio que ele. Forçava pensamentos positivos e seguia-a como se pudesse encaminha-la para onde ia, ainda que não soubesse como lá chegar. Riu-se baixinho da figura de idiota que estava a fazer e perdeu-a, enquanto se censurava por não lhe pedir ajuda. Ela conhecia as ruas e ajudava-o a encontrar. Ele queria conhece-la e ajudá-la a encontrar-se mas, quando se decidiu, já não a via. Disse palavrões e entrou num bar, saiu. Não era ali.
Ligou o telemóvel e perguntou o nome do bar. Disse onde estava e seguiu as instruções que lhe iam dando. Cruzou-se com ela e sorriu-lhe mas seguiu as instruções que recebia e continuou. As ruas estreitas do bairro histórico não estavam vazias e, além deles, havia mais gente em trânsito. Achou que ela não o viu. Que ela nunca o viu.
Chegou. O bar estava cheio e a festa animada mas ficou na rua. Esperava tornar a vê-la e decidira falar-lhe. Impreterivelmente. Bebeu e não bebeu mais. Conversou e, por fim, entrou mas mesmo quando estava lá dentro estava lá fora a palmilhar as ruas, a seguir uma gabardina comprida, uns saltos altos vermelhos e uma estranha peruca berrante que ela levava.
Nunca mais a tornou a ver mas gostava. Muito. Gostava de a ver e de lhe falar. De tornar a sentir o que sentiu quando a viu e de poder conhecer o seu mundo.

08 junho 2012

Sorriso com sardas

As palavras queimavam-lhe a garganta, tal como as lágrimas lhe faziam arder os olhos. Calou-se. Primeiro engoliu tudo o que tinha para lhe dizer e calou-se. Depois, secou as lágrimas com as costas das mãos. Enfrentou a dor e a vergonha de tanto lhe doer e cerrou os dentes e os lábios. Engoliu em seco. Tornou a engolir em seco. Mordeu o lábio inferior e suspirou profundamente. A infelicidade de ser quem era naquele momento infiltrava-se por todos os poros e contaminava-lhe corpo e alma. Doía-lhe. Doía-lhe fisicamente. Sentia arrepios de frio e tremores por todo o corpo. Sorriu. Fez um esforço e sorriu. Enfrentou a pena que sentia de si, o seu corpo que vacilava e parecia quer desmoronar-se e o seu ser mais profundo que queria abandonar-se à dor, à inacção, ao desalento e sorriu. Um sorriso forçado, que não passava dos lábios, mas um sorriso.
– Sabe, bem – disse ela, com o sotaque meloso que o derretia desde o primeiro momento em que a conhecera, mostrando-lhe um sorriso complacente, quase maternal, que lhe iluminava o rosto, os olhos, as sardas. – As coisas quando não acontecem é porque não têm de acontecer.
Ele, o bem, esqueceu-se do sorriso, que desapareceu sem deixar rasto, e mostrou em todo o seu esplendor o desgosto que o dominava.
– Eu não acredito no destino – declarou António, que dissera chamar-se Luís. – O destino somos nós que o fazemos, Luísa.
– Heloísa – emendou a mulher, ainda com sotaque mas já sem mel. Não costumava enganar-se nos clientes que abordava mas, naquele caso, parecia-lhe, enganara-se redondamente e perdera vinte minutos como figurante numa encenação manhosa de uma peça muito vista.
– E podemos ser felizes, Heloísa – insistiu Luís enquanto António. – De certeza que podemos chegar a um entendimento, afinal estamos a falar de vinte euros de diferença. Podemos rachar…
– Você assim não racha nada, cara.
– Eu subo dez e você baixa dez e…
– Somos felizes? – A mulher levantou-se.
– Sim – disse o António que falava pelo Luís. – Adoro o teu sorriso com sardas, já te disse?
– Eu só sou feliz quando me pagam o meu preço e sim, já me tinhas dito, há vinte minutos atrás.
Tanto o Luís como o António ficaram embasbacados a olhar para a mulher que, de repente, em pé, perdera o sotaque e seguira sem um adeus embrenhando-se na pequena multidão de homens e mulheres que deambulavam pela sala, eles com cervejas ou copos de whisky na mão, caçadores prestes a ser caçados, e elas com sorrisos e gestos encantadores ou sexualmente explícitos dando ar de presas submissas ou rebeldes, mas todas com ar de quem tem mais do que fazer do que andar por ali a patinhar.

01 junho 2012

Pandora


Ela olhou-o, impávida, e concluiu:
– Tenho pena.
Surpreendido pela reacção ou pela falta dela, ele permaneceu calado.
Ela encolheu os ombros ostensivamente, semicerrou os olhos e iniciou outra conversa ainda que parecesse a continuação da anterior, em que ele lhe tinha confessado que a traíra antes de acabar a relação.
– Tenho pena por ti, que não sabes o que queres. – Ele abanou a cabeça para expressar discordância. Ela sinalizou a indiferença com uma careta e continuou: – Que me trais e que te trais da mesma forma. Que mentes e que te mentes. Que dizes que não queres saber de mim quando, mais do querer saber de mim, o que podia ser compreensível, o que queres é magoar-me.
– Eu não te quero magoar – barafustou ele – e não quero saber de ti. Quero que faças a tua vida e me esqueças, porque eu já me esqueci de ti.
– Esqueceste-te.
– De quê?
– De te esqueceres de mim.
– Isso é de uma música.
– Que seja. O que é eu ganhei por me confirmares que me traíste?
– Tu?!
– Ah! Afinal tens razão: não queres saber de mim para nada. Magoares-me ou não é-te completamente indiferente.
– Nada disso. Não eras tu que dizias que querias saber a verdade, por mais dolorosa que fosse?
– Era mas já não te digo a ti. Estás fechado. És uma caixa fechada, o que lá está é porque eu acho que merece ser guardado, seja bom ou mau, mas não pretendo pôr mais nada lá dentro e, se puder, nem quero ter razões para tirar coisas da caixa ou mudá-las de sítio. Estás fechado. Não me digas nada de novo. Se te queres justificar ou se te der uma crise de remorsos, não me procures. Não me contes. Nunca te esqueças que me esqueceste. É um favor que nos fazes.

29 março 2012

Traição

Sem saber mais o que pensar, Ana encolheu-se na cama e tapou-se completamente, decidida a desaparecer para sempre. Esgotada e vazia, foi surpreendida pelo peso reconfortante dos pesados cobertores e suspirou sem querer, sentido-se subitamente repousada e em paz: um dia, um dia qualquer, se lhe arrombassem a porta de casa e entrassem à sua procura, só encontrariam um corpo morto, mirrado e seco encolhido dentro da sua cama. Quando esse dia chegasse, um dia qualquer, já não a encontrariam dentro daquele corpo traído.

22 março 2012

Exuberante

– Desculpe – pediu o homem dando a volta à secretaria e abeirando-se da doutora, que em passo rápido e sincopado atravessava o átrio em direcção às portas das salas de conferências.
– Vou para a sessão – disse a doutora, que parou a meio do átrio olhando para as quatro portas sem identificação que tinha à sua frente.
– Sim, senhora – apreciou o homem, com ar desconfiado, mirando sem pudor o ar demasiado preparado mas deslumbrante da mulher que tinha à sua frente.
– Em que sala é? – perguntou a mulher, fazendo de conta que não via o ar esgazeado do homem que a comia com olhos.
– A senhora vem para acompanhar algum dos engenheiros? – perguntou o homem, disfarçando um pouco o seu apetite.
A doutora arremelgou-lhe os olhos sem, no entanto, pensar realmente na pergunta.
– Que sala é? – repetiu, impaciente.
– A senhora é a acompanhante do Eng. Pimenta? – Tacteou o homem, olhando para o relógio, pois, o engenheiro tinha-lhe dito em segredo que viria uma senhora – aqui rira-se e piscara-lhe o olho – por volta das seis da tarde, e ainda eram só três e faltava a oradora da sessão de esclarecimento. A “senhora” estava muito adiantada.
A doutora respondeu-lhe com uma careta e um eloquente e sonoro:
– Pimenta, sim, é isso. Engenheiro Pimenta. Em que sala é?
– As acompanhantes dos senhores engenheiros não podem entrar – anunciou o homem. – Terá de aguardar pelo fim da sessão de esclarecimento. – E indicou com um gesto a porta de vidro que dava acesso ao bar do hotel. – Se fizer favor…
A doutora susteve a respiração para não desatar à gargalhada. Mordeu o lábio inferior e olhou para os sapatos do homem que, de pé, continuava à sua frente. Sem conseguir evitar as várias caretas com que ia suportando a paciente mas inquisitiva imobilidade e impassibilidade do homem, a doutora levantou a cabeça e olhou-o nos olhos, ou melhor, nas sobrancelhas, que era um truque que aprendera com o seu irmão mais velho que lhe ganhava sempre ao jogo do sério. O homem esboçou um ligeiro sorriso. A doutora não aguentou e abriu um sorriso de orelha a orelha que, esforçadamente, conteve para não rebentar a rir.
– Mas o senhor está à espera que eu vá para ali?
O homem encolheu-se ligeiramente e anuiu com a cabeça.
Fulminada com outra perspectiva da situação – que julgou ser a do homem que estava à sua frente –, a doutora enfureceu-se e sentiu a face enrubescer, o que a enfureceu ainda mais.
– O senhor não estava a brincar? – disparou.
O homem olhou para ela, olhou em volta mexendo apenas os olhos e fez um trejeito como se sentisse embaraçado com a pergunta. Não, definitivamente, não estava a brincar.
– Ah… – O homem sentiu a sua integridade física em risco e tentou emendar a mão, acompanhando o golpe de rins com um arremedo de riso que não medrou. – Estava, estava a brincar. Claro que estava – mentiu sem convicção.
– Eu… eu… – As palavras enrolavam-se na boca da doutora. – Mas quem é que o senhor julga que eu sou? – Acabou por conseguir perguntar.
O homem fechou-se num silêncio prudente e receoso que se viu obrigado, pelo olhar mortífero que doutora lhe lançava, a interromper, para deixar escapar um sumido e lamentoso:
– A oradora?
– Mas porque é que eu tinha de aguardar pelo fim da sessão de esclarecimento?
– É?
– O quê?
– A oradora?
– Isso não interessa. – A doutora riu-se: apesar de tudo continuava bem disposta. – Isso não lhe interessa, palhaço – murmurou com o sotaque apropriado.
O homem empinou-se como o garrano da estalagem de Bree e mudou a expressão para uma com que se propunha impor respeito e temor.
– Interessa – replicou o homem, aborrecido por perceber que a mulher à sua frente não o estava a respeitar nem a temer e o narrador o estava a comparar a um cavalo. – Eu tenho o direito de saber! – Exclamou melodramático.
– A Loretta também tinha o direito de ter direito a ter filhos e, no entanto…
O homem tornou a mudar a expressão, ainda que agora o fizesse involuntariamente e fosse ele a expressar o temor que antes queria incutir.
– Não os podia ter – sussurrou o homem completando a frase que a doutora deixara incompleta.
– Porque? – Perguntou a mulher, surpreendida e subitamente enlevada pela identidade de referências que a aproximavam do homem que estava à sua frente e lhe barrara o caminho.
– Porque era um homem – disse o ser do mesmo género de Loretta.
A doutora aproximou-se do homem e perguntou em tom conspirativo:
– Nunca pensou na coincidência da mulher do John Bobbit se chamar Loretta?
– Não… – respondeu o homem, sem levantar a voz, com ar pensativo e meneando a cabeça em contemplativa admiração.
– Toda a gente analisou o facto do homem se chamar John Wayne e, de alguma forma, o gesto da mulher ser uma metáfora do que estava a acontecer à América – dissertou a doutora junto ao ouvido do homem. – Ao cortá-lo ao John Wayne, ao John Wayne – reforçou – Loretta estava a capar a América. Não havia outra leitura. Deus estava a brincar com a América e estava-lhe a mostrar com um humor retorcido e gore o que lhe ia acontecer. O facto de se cortar o membro de alguém que se chamava John Wayne era um sinal. Não há coincidências, diziam os fanáticos – O homem meneava a cabeça cada vez mais entusiasmado, a doutora continuou: – E, no entanto, a referência era outra, o nome que contava era outro: Loretta. “From now on, I want you all to call me 'Loretta'” e a Loretta deu ao marido a possibilidade usar o seu direito de ser mulher, de ter filhos…
– Mas não lhe deu um útero – opôs-se o homem, lembrando-se das dúvidas fundadas de Reg.
– Isso não interessa – contrapôs a Doutora. – Loretta impunha o que a Loretta propôs: o direito a ter o direito de ter filhos.
O homem parou de oscilar a cabeça, deu um passo atrás para poder rodar a cabeça sem acabar a dar um chocho à doutora e comunicou:
– Se é a oradora pode entrar mas se não é – o homem olhou ostensivamente para as pernas quase nuas da doutora, para o decote cavado e para o longo colar de pérolas que dava duas voltas ao pescoço da mulher com a intenção de sublinhar os seus generosos e apetecíveis dotes mamários – tem de esperar pelo fim da palestra. Se vem para acompanhar algum dos senhores tem de esperar.
A doutora esticou o braço e afastou o homem da frente.
– Eu sou a oradora – anunciou. – E o senhor é um mal-educado. Um grosseirão!
– Estou a fazer o meu trabalho, doutora – justificou o homem. – Sala 3 – apontou.
– Qual é o seu nome? – Questionou a doutora em tom de ameaça, dirigindo-se à porta da sala onde era esperada.
– João Benvindo.
– Alguém falará consigo, senhor João Benvindo – disse a doutora, olhando-o com desprezo e más intenções, enquanto rodava a maçaneta da porta.
– Só uma coisa, doutora – rosnou Benvindo, fazendo com que a mulher parasse e o olhasse ainda com mais desprezo e ódio. – A mulher não se chamava Loretta, era Lorena.
A doutora mostrou-lhe a língua e desapareceu para dentro da sala.
O homem esticou o dedo médio para a porta fechada.