Quando subia a Avenida da Liberdade, pelas faixas laterais direito à rotunda que cerca o Leão e o Marquês, era usual vê-la de saia invariavelmente curta, quase sempre de negro mate, mastigando o tempo nas dentadas com que embrulhava de pastilha elástica os lances de aborrecimento que a sua espera no passeio me parecia ser.
Ficava a olhar para ela, o corpo bem torneado, o cabelo meio curto e um olhar que se desviava numa pausa voltando-se depois a mim numa exploração rápida e incisiva que desta feita fazia desviar o meu, rumo mais acima.
Gostava de fazer o percurso a pé nos primeiros dias da Primavera, deixando o carro no parque dos Restauradores, entregando depois aos músculos e à sensação de ar livre, passo a passo, a tarefa de vencer a distância sobrante.
No entanto, quando por razões diversas tinha de levar o carro até ao destino final, dava por mim a fazer a volta apenas para que pudesse passar junto a ela. Coração a bater mais depressa, ansiando o instante em que me olhasse bem dentro desse olhar que eu desviaria num misto de euforia e angústia que não conseguia explicar.
Passava a mirar pelo canto do olho, carro de caixa engatada em segunda velocidade, rodando devagar de mãos em ilusão de segurança presas ao volante.
Seguia-a pelo retrovisor enquanto ela ora subia, ora descia o passeio da Avenida, ficando cada vez mais pequena, mais distante no rectângulo espelhado que acabava, num reflexo, por absorver toda a cidade no nada que é um poema fugidio de palavras breves.
Foi numa manhã ao sair de casa, e sentado no carro numa pausa para reflexão onde assumi que vê-la todos os dias me era já imprescindível.
Nessa manhã, num impulso consciente e após um instante de hesitação, alterei o que era já a rotina. Travei! Deixei que os olhares se cruzassem, que se fixassem na leitura. Muda e secreta, intensa de sol que enchia a Lisboa que eu amo.
Atravessou os breves metros e dirigiu-se a mim, sempre de olhar fixo.
Inclinei-me para o lado direito no gesto de abrir a porta, o que ela sem uma palavra entendeu, contornando o carro e acabando por sentar-se ao meu lado.
Olhei para ela, para as suas pernas bonitas mostrando no interior da coxa direita o fio violeta-reflexo dum pequeno derrame capilar que quase passava despercebido. Subi o olhar, a cintura, os peitos pequenos e firmes, o brilho da boca e parei novamente o olhar no seu.
- Gostas?- Perguntou ela no seu ar de puta de rua, de olhos grandes e lindos, quase infantis que eu agora via bem junto a mim.
- Se gosto? – respondi devagar. – Tu sabes... passo por aqui todos os dias e... todos os dias fico a olhar para ti. És muito bonita...-
Fiquei olhando para ela que desviando o olhar fitava agora algures um alvo indefinido, muito para lá do sítio onde a Avenida se abre e entrega em rotunda, mais avenidas e Parque, e azul do céu a perder-se no infinito...
- Nunca tinha reparado em ti.- mentiu ela. Pelo menos foi o que pensei.
Mentiria? Caí na realidade. Obviamente! Seria idiotice minha julgar que uma puta de rua ficasse a olhar só para mim.
Claro. Que estúpido que eu sou. É natural que ela olhe para todos os que passam. É seu ganha-pão e o olhar para os potenciais clientes bem dentro dos olhos é o primeiro contacto comercial após o lance publicitário consubstanciado na linguagem do corpo exposto nesse jogo do esconde-que-mostra, da roupa curta e justa, dos gestos, da postura....
- Para onde vamos?- perguntei a romper o desconforto para onde tinha deixado correr o pensamento.
- Para onde quiseres- sorriu- Posso passar o dia contigo, almoçar, conversar, passear...-
Avancei devagar avenida acima, voltando à direita entrando assim no emaranhado de ruas que circundam as Avenidas Novas.
- Como te chamas?
- Saudade...- respondeu parecendo querer acrescentar algo mais.
- Não é um nome usual. - Cortei interrompendo-a. - Vocês costumam usar outros nomes. Sei lá, diminutivos sonantes que se ouvem na noite, como ...- Não me deixou acabar a frase.
Num irromper brusco mandou-me parar.
- Pára aqui, Carlos! Pára, ouviste?! Saudade é o meu verdadeiro nome, entendes? O meu verdadeiro nome...- e abrindo a porta ainda me disse lívida: - Vocês, homens... são todos uns... uns sacanas! – E saiu sem mais palavra.
Durante um espaço de tempo indefinido fiquei sem reacção dentro do carro.
Ela tinha dito o meu nome. Sabia o meu nome e Saudade era o seu verdadeiro.
Saudade...
Durante semanas não voltei a passar por ali, as noites em claro, vencendo em cada derrota a luta interna que me atirava, dum lado para outro, contra as paredes desse poço onde de repente tinha ficado mergulhado, até que vencido pelos meus limites decidi voltar a procurá-la.
Passei lá hoje mais uma vez.
Há quase vinte anos que o faço, há quase vinte anos que o coração me bate mais depressa quando subo a Avenida e passo ao mesmo lugar onde ela a atravessou para se sentar ao meu lado.
Há quase vinte anos que não a vejo naquele passeio.
E há quase outros vinte que a Saudade mora comigo...