O funeral decorria dentro da tristonha normalidade que envolve a morte de um velho que já deve anos à terra, quando, de repente, descontrolando-se, o rapaz desatou num berreiro desalmado, repetindo num lamento aflitivo que condoeu todos os presentes:
– E agora, meu Deus?! E agora?! E agora?! E agora, meu Deus?! E agora?!
Primeiro os presentes estranharam e, ainda que incomodados, aceitaram o que podia ser uma legítima manifestação de dor. Depois, percebida a fonte da ladainha, o que podia ser, em qualquer outro, um compreensível e aceitável descontrole emocional foi rotulado como uma pouca vergonha e uma absoluta falta de senso e respeito pelo morto, a que acresceu, e não foi despicienda para a censura generalizada, a desinteressante repetição do monólogo que não ganhava motivos de interesse e o insuportável nível acústico a que, por vezes, era debitado, obrigando a que, enquanto o corpo do ancião descia à terra, dois amigos ladeassem o inesperado carpideiro, o amparassem e levassem quase de rojo para fora do pequeno cemitério.
Sem parecer notar a forçada remoção ou os olhares censórios que o acompanhavam, o rapaz continuava a soluçar a sua invariável lengalenga:
– E agora, meu Deus?! E agora?! E agora?! E agora, meu Deus?! E agora?!
Sensibilizado, como mais ninguém, o sacerdote que tinha a seu cargo dezassete freguesias e pouco tempo ou interesse para conhecer os paroquianos que não frequentavam a liturgia ou que não contribuíam para o bem-estar do rebanho e do seu pastor, inquiriu da identidade do jovem.
– É um amigo do neto do sr. Rebelo – explicaram-lhe, sem mais detalhes, ainda que (ou porque) lhe estranhassem a pergunta.
– Coitado do moço, está mesmo afectado. Pobre rapaz – ia comentando o sacerdote para quem o cumprimentava, prosseguindo na direcção do mais afectado dos presentes no funeral, ainda que o fizesse para se ir embora e não por algum desejo súbito de confortar o jovem.
Junto à porta do cemitério, o padre cumprimentou o neto do sr. Rebelo que amparava o inconformado mancebo, acenou com a cabeça para o rapaz que o suportava segurando-o com o seu braço direito, e, fitando o desesperado, dirigiu-lhe umas breves palavras de solidariedade, obtendo como resposta a mesma anterior ladainha, remoída num sussurro desesperado.
– Coragem, rapaz, coragem – despediu-se o padre, encaminhando-se para a sua viatura onde o esperava uma mulher. – É preciso é coragem. Muita coragem.
Sem olhar para trás, o padre aproximou-se do carro, abriu a mala, desparamentou-se, depois de constatar a ausência de qualquer movimento da acólita para o ajudar, vestiu um blaser, arrumou as vestes litúrgicas, fechou a mala e entrou no carro, sentando-se pesadamente ao volante.
– Já está? – perguntou a mulher, que se mantivera, até aí, quieta e calada.
– Já – respondeu o padre, de maus modos. – Podia ter saído – censurou, ligando a ignição.
– Para quê? – perguntou a mulher.
– Ajudava-me a tirar alba e as pessoas viam que era você… – O padre rodou o volante, para efectuar inversão de marcha.
– Porquê?! – disparou, com animosidade, a mulher e esperou que o padre a olhasse para completar a pergunta: – Porquê, costuma andar com outras mulheres no carro, é?
O padre não respondeu, cogitou sobre a forma de o fazer mas, não chegando a nenhuma opção satisfatória, preferiu mudar de tema aproveitando que o automóvel iria passar em frente ao portão do cemitério, onde estava o lamentoso jovem que havia perdido o rumo na vida com a morte do senhor Rebelo.
– Aconteceu uma coisa estranha no funeral – comentou o padre, terminando a manobra de inversão de marcha. – Está a ver aquele rapaz, ali no meio dos outros? – A mulher assentiu proferindo um som gutural quase inaudível. O padre continuou enquanto o automóvel se aproximava: – Não é da família mas era o mais afectado pela morte do velho… Era só – o padre caricaturou o tom choroso do rapaz, dando-lhe uma entoação de nasalado aparvalhamento: – “E agora? E agora, meu Deus? E agora?”
– Vá devagar – ordenou a mulher, quando o automóvel passou em frente do grupo. O padre abrandou a marcha e a mulher, levantando a voz, quase gritou: – Eu conheço-o. Eu conheço o ra… Ah!
– O que foi? – perguntou o padre e, espantado com o inesperado volume da voz e a súbita e inconclusiva interrupção da mulher, travou o automóvel, em frente ao portão do cemitério.
– Continue! Continue! – disse ela, reforçando a ordem com gestos nervosos. – Continue!
Sem pensar, o padre obedeceu e acelerou, ainda que de forma mais ruidosa que eficaz.
A mulher olhou-a desaprovadoramente mas nada disse.
Vexado, o padre esperou a normal e ácida censura à sua condução e, depois, a explicação quanto ao conhecimento do jovem choramingas mas, constatando o prolongamento do silêncio e a súbita turvação da expressão da mulher, avançou:
– Afinal, mas quem é o rapaz? O que é que aconteceu?
– Espero bem que não seja o que eu estou a pensar – ponderou a mulher, muito preocupada. – Espero bem que não… – A mulher olhou para o padre e perguntou-lhe compenetradamente: – E o que é que ele estava a dizer?
– Estava desesperado…
– Mas o quê? – insistiu a mulher. – Há bocado não o estava a imitar?
– Estava – admitiu o padre. – Ele só dizia “E agora, meu Deus?! E agora?! E agora?! E agora, meu Deus?! E agora?!”
– Que pouca sorte… – lamentou a mulher. – De certeza que é o que estou a pensar… Que pouca sorte…
O padre olhou-a intrigado e, preferindo não ir directo ao assunto, perguntou:
– Mas quem é o rapaz?
– É o filho do Santos.
– Qual Santos?
– Do enfermeiro.
– É?... É o filho do António? – admirou-se o padre. – Aquele é o Antoninho?
A mulher, de olhar perdido que acabou por pousar na braguilha do padre, anuiu desolada:
– É, é o Antoninho. É mesmo o Antoninho.
– E agora? – perguntou o Antoninho. – E agora, Alex?
– Mas tu só usavas o avô dele? – inquiriu o outro, em tom conspirativo.
– Agora era – murmurou Antoninho, passando a mão pelo rosto. – Na semana passada morreu o avô do Juca e na outra tinha morrido o velho Neves… – O Antoninho suspirou profundamente e recomeçou: – Ainda por cima os sacanas dos velhos morreram todos de repente, pá. E numa altura lixada…
– A Primavera… – troçou o neto do sr. Rebelo, abafando o riso. – Chega a Primavera e a natureza começa a desabrochar…
– Se fosse só a natureza… – acompanhou o Alex, rindo.
– Vocês riem-se mas eu é que estou todo lixado – lamentou o Antoninho. – Ainda por cima não tenho stock nenhum.
– Não?! – preocupou-se o Alex. – Nada?
– Quase nada – esclareceu o Antoninho. – Dá para três dias.
– Três dias?! – horrorizou-se o Alex. – Três dias?!
O Antoninho acenou que sim sem vislumbre de esperança.
– Meu Deus… – desabafou o Alex pondo as mãos na cabeça, sem esconder um sorriso trocista. – Vêm aí tempos maus… Tempos muito maus… Tempos de penúria e tédio… Então, e o que vais dizer… O que vais tu dizer… O que vais tu… – Alex colocou a voz como se estivesse a acusar o outro: – Tu, o fornecedor de substanciais alegrias aos habitantes e sólido consolo às habitantes das nossas freguesias; Tu, o dealer das maravilhosas noites azul-viagrosas e das deleitosas tardes cialis que suportam o ânimo das nossas gentes; Tu, o recuperador de auto-estimas, semeador de sorrisos e sustentáculo das alegrias conjugais e extra-conjugais de meio concelho… O que vais tu dizer aos teus clientes?
– Os meus clientes… – relativizou o Antoninho, encolhendo os ombros e espantando os outros. – Com os meus clientes posso eu bem… Que todos os males fossem os meus clientes…
– Então?
– O que me preocupa são as minhas clientes, pá, as minhas clientes – esclareceu o Antoninho, em pânico. – Com os homens posso eu bem: não há esta semana, há para a outra ou para a outra a seguir ou tem de se arranjar outra solução que ainda tem de ser estudada. Agora com as mulheres… Com as mulheres… Com as mulheres não sei se me safo… – O Antoninho abandonou-se ao desalento: – E agora, meu Deus, e agora?
– Agora?… Agora tens de arranjar outros velhos para darem o nome para as receitas – concluiu o neto do sr. Rebelo, alçando os ombros despreocupadamente.