Elas arrastaram-me. Não consegui lutar ou sequer espernear, eram demasiado fortes, enormes. Teria gritado, mas o que me atravessava a garganta não permitia que os gritos passassem e devolvia-os ao estômago onde ficavam a flutuar, pesados. Empurraram-me. Bati no fundo do precipício. Conheci a morte, uma, duas, três vezes. Conheci o desejo de morrer que invade um ser humano no escuro infinito, no vazio interminável. Conheci o frio, a surdez, a cegueira, o abandono, o monólogo desesperado e interminável.
Arrastaram-me novamente. Não tentei resistir. Vi um palácio. Vi um rei que amou uma rainha como um homem deve amar uma mulher. Fui um rei. Fui um rei quando lutei pelo meu castelo, quando reinei, quando senti o amor, quando vi os meus filhos, quando chorei a morte de um deles, quando enterrei a minha rainha. Vi uma rainha. Fui uma rainha quando amei um rei como uma mulher deve amar um homem. Fui uma rainha quando senti as dores de parto e embalei as dores dos meus filhos. Fui uma rainha quando enfrentei a partida do rei para lutas tremendas, inimagináveis. Fui uma rainha fiel, fui uma rainha que tomou amantes, fui uma aia e fui um trovador que amou uma rainha.
Aqueles dedos que me arrastam. Vejo as mulheres atravessadas pela noite, pelas ruas, pelo desejo alheio sem nome nem afecto. A dignidade, a humilhação, o medo, a coragem; o escuro, a luz do candeeiro; a transpiração e os seus cheiros; os mendigos, os monstros, os homens; o frio e o calor; a decisão e a indecisão; homem bom, homem mau, homem nada; ser, não ser; agora também fui aqui e também soube chamar com a sensualidade, seduzir sem desejo o desejo de quem não queria ter em mim.
Vou. Desta vez vejo o mendigo sentado no banco do jardim. Come uma maçã, restos do jantar de uma qualquer família. Cheira mal. Eu cheiro mal. Cheiro ao lixo e cheiro à fome. Tenho fome. Tenho frio. Está escuro. Não quero voltar a casa, perdi-me da minha vida antes de me perder de mim. Será que ainda tenho casa? Espero que não me encontrem.
Vou. Desta vez sou tu. Qualquer tu que me seja dado a ser. Tenho fios nas pernas, nos braços, nos dedos, no rosto, na boca; sou uma marioneta. Não me arrastam, penduram-me. Algumas vezes, cortam-me. Chamam-se palavras.
Marcovaldo é hipocondríaco e trabalha num sexshop. Numa de suas idas ao hospital, conhece o menino Michelino. A amizade entre eles fará com que Marcovaldo siga com sua vida.
Não quero perder (nem desatar) este elo que nos une -diametralmente opostos- e nos persegue os sonhos. O laço manso da saudade; a fruição desinibida de nós; os beijos e o desejo (im)potente de futuro. Este é o nó difícil que de nós se alimenta, de nós se envolverá e de nós se reatará, sempre: nunca perderei de nós o nó do laço manso da saudade.
A noite dói-me um lento entardecer... A beleza arde-me, a tua, tão infinita; finita, para mim, sei e sempre a soube ser, tiraste-a de mim; Mariana, o ar grita e grita e eu ainda vou enlouquecer; o delírio já por todo o dia se agita e desta vez não é sol o que vai romper. Dói tanto, Mariana, continua a doer esta cor que me dói como negro sem tinta; uma janela opaca, este meu ser sem ser. Mariana, pupila minha fugida da órbita, meu enorme vazio que a continua a encher, uma última vez a quem já não pode ver vem e conta-me se ainda és tão bonita; uma última, Mariana, a dor de seres perfeita. E essa dor, piedosa, deixas que me faça morrer esta vez última que o corpo só teu o meu aceita? Mariana, eu sei que sou apenas um velho poeta e sei que, um dia, o teu doce ventre há-de crescer por mãos de um homem forte de pouca escrita; por isso, o amor meu, a minha Mariana é bendita, ela concede-me a terna morte da dor de a não ter.
... sem qualquer identificação a não ser um carimbo de «distribuidora O Século - Porto». Só têm fotografias a preto e branco, sem qualquer texto além dos títulos («Motor de Arranque» e «... em 32 Lições»). Parecem-me ser revistas dos anos 70...