Geralmente, não escrevo por encomenda.
Escrever é, para mim, um momento catártico, que ocorre porque tenho necessidade dele, nunca o contrário, quero dizer, raramente é a escrita que precisa de mim.
Abro excepções quando as circunstâncias me levam a aceitar escrever com um objectivo, seja porque o tema me interessa sobremaneira, seja porque quem mo pede merece todo o meu respeito. Desta vez, a razão preponderante foi a última: uma ex-aluna, responsável por uma publicação lá da UCP (a Critério), consciente de que entre nós dificilmente haverá comunhão de pontos de vista (e que, ainda assim, preza tanto a minha perspectiva como eu a dela), pediu-me para redigir um texto sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, temática em que, para não variar, não concordamos em nada.
E fi-lo, no prazo auto-estipulado, ainda que soubesse que dificilmente conseguiria ser original ou sequer interessante. O resultado foi este:
É ainda com alguma surpresa que sou chamada, com regularidade, a posicionar-me ou a moderar debates sobre a contenda que constitui o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esqueço-me, frequentemente e em consciência, de que é ainda uma questão controversa, para alguns, o que para mim é tão discutível como a cor do mar ou o cheiro das castanhas. Mas, porque vivo em sociedade, rapidamente reponho a minha falha e, sob a égide do Pensamento Crítico, debato o que, quanto a mim, não passa de preconceito e pronuncio-me sobre a vida íntima dos outros. Assim seja.
Filha que sou de um casal absolutamente tradicional (no sentido em que casou e me gerou sem recorrer a quaisquer métodos para além dos que a [sua] natureza lhe colocou ao dispor), descendentes que são meus pais de outros casais igualmente condizentes com os (assim chamados) padrões “normais” da nossa sociedade, desconheço onde está o gene que me leva a, sem qualquer lirismo, afirmar-me pelo amor, seja ele entre homem e mulher, entre dois homens ou duas mulheres. Ou saberei: não havendo, até ver, nenhum familiar homossexual por quem tenhamos de empunhar bandeiras, ou fazer desviar convicções, nasceu nos meus avós, hoje octagenários, este respeito pelo outro (seja ele quem for) que, não escolhendo cores nem géneros, também não tem por que indagar orientações sexuais. E, paradoxalmente, de uma família onde a atracção por pessoas do mesmo sexo é vista sem qualquer pudor ou adjectivação anómala, nasceram seres humanos heterossexuais. Ao menos, até ver, já se sabe.
Fui ensinada a acreditar (e nada, na minha vida adulta, me fez crer que deveria ser de outro modo) que qualquer ser humano é digno de direitos, liberdades e garantias iguais, independentemente das características que o particularizam enquanto indivíduo, e desde que cumpra os deveres que fazem dele um cidadão. Deste modo, afigura-se-me como absolutamente desnecessário empreender um amontoado de razões que sustentem a minha convicção de que, se todo o ser humano tem o direito a contrair casamento e constituir família, então qualquer ser humano tem o direito de o fazer (é redundante, mas os contornos silogísticos enterneceriam Aristóteles), sem excepções. Da mesma forma que nenhum homem e nenhuma mulher heterossexuais são obrigados a submeter-se a um teste de fertilidade por forma a comprovar que podem procriar, porque não é essa a pedra de toque do casamento (segundo a lei civil de qualquer país democrático), parece-me desprovido de sentido negar a quem, biologicamente, não pode reproduzir-se com o parceiro, o direito de constituir família. Se assim fora, também a uma mulher na menopausa ou a um homem infértil estaria interdito o laço.
Cumpre-me também assinalar o tão invocado argumento natural: anda o ser humano, há séculos sem fim, a negar ser pura natura e, de repente, num acesso saudosista, parece pretender regressar-lhe. Mas apenas em parte, o que me provoca perplexidade: “a homossexualidade não é natural”, invocam certos bloggers, através da ferramenta internet, enquanto os seus leitores, bebendo uma Coca-Cola light e envergando uma parka de nylon, porque o ar condicionado avariou, acenam uma cabeça de onde pendem fios de cabelos aclarados e esticados a poder de escova e secador e onde se observam meia dúzia de piercings, olhos esbugalhados, pela concordância e pelo rímel. Tudo perfeitamente natural, portanto. Como será absolutamente normal a reivindicação taxinómica: chame-se-lhe outra coisa, que não casamento, porque esta é a nomenclatura religiosa. Sê-lo-á, mas é de casamento civil que falamos. E se o casamento civil se chama assim e não de outro modo qualquer, não fará sentido algum arranjar uma qualquer designação substituta: trata-se de um mesmo contrato, que obriga as partes da mesma forma e, como qualquer contrato, não deverá atender a pormenores de somenos, na medida em que, como já afirmado, não será a incapacidade de se reproduzirem pelas vias naturais que virá diferenciar os contratantes.
Uma última palavra para a questão que se segue: a adopção ― que choca uns, baralha outros e é aceite por uma imensa minoria. Aquela que, como eu, acredita que o amor não tem género; que uma mulher não é necessariamente uma figura maternal e que um homem nem sempre representa a dimensão paternal; que não se trata de sexo mas de amor e que, se a criança tiver adultos, agentes cuidadores que a amem, pouco (lhe) importará de onde vem esse amor: de um homem viúvo, de uma mãe solteira, de dois pais, duas mães, ou um pai e uma mãe, amor é amor e é por ele que se constroem seres humanos melhores. Seres humanos como os meus avós, que me ensinaram, por intermédio dos meus pais, que havia muita gente diferente de mim, que merecia o mesmo respeito que me ensinaram a reclamar. Que criaram seres humanos que, um dia, se decidirem procriar (porque a sua escolha não depende de uma lei), ensinarão os seus filhos que, na escola, encontrarão muitos meninos que não são filhos de gente com determinada orientação sexual mas, tão só, filhos de gente que escolheu amá-los. Exactamente iguais a eles, portanto.