24 outubro 2010
23 outubro 2010
O Quarto do Vazio - Memória da Paixão de Júlia
JÚLIA: Olha... Lembras-te de mim? A Júlia que passeia letras...
Ele: Como poderia não lembrar? Sublinhaste o desenho...
JÚLIA: Eu só pinto. No inesgotável quadro que cresce de ilusões...
Ele: ...beijando, olhando extasiada... arrebatada...
JÚLIA: És um amante...
Ele: ... és sensual, doce...
JÚLIA: ... um amante terno...
Ele: Deixaste aqui uma sombra viva...
JÚLIA: Eu gosto da sombra... e do movimento do corpo... e do ritmo...
Ele: ... a silhueta que criaste naquele espaço. O anoitecer... a lua a aparecer... o uivo dos nossos corpos enroscados...
JÚLIA: ... e as palavras a sobrevoar...
Ele: ... metade ouvidas, metade sentidas...
JÚLIA: ... e outras que nem damos por serem nossas...
Ele: ... e os nossos corpos a libertarem as almas que nos observavam...
JÚLIA: O corpo sem entender, chamou-lhes fantasmas...
Ele: ... ao som daquela música... ouvias a música?
JÚLIA: Na verdade estava completamente surda...
Ele: Eu só ouvia a música... eram os meus olhos que só olhavam para interiores...
JÚLIA: ... sombras das cores...
Ele: ... cores do vento ao brilho da Lua...
JÚLIA: ... lua lanterna que brilha e ilumina corpos celestes...
Ele: ... corpos que pairavam...
JÚLIA: ... pairavam nas estrelas. Lembras-te das estrelas?
Ele: Lembro-me da estrela interior que os meus olhos cegos conseguiam ver.
JÚLIA: Os teus olhos não estavam cegos... Olhavam para os meus...
Ele: Mas não viam... apenas sentiam...
JÚLIA: Como eu não te ouvia... só te sentia em mim.
Ele: Como poderia não lembrar? Sublinhaste o desenho...
JÚLIA: Eu só pinto. No inesgotável quadro que cresce de ilusões...
Ele: ...beijando, olhando extasiada... arrebatada...
JÚLIA: És um amante...
Ele: ... és sensual, doce...
JÚLIA: ... um amante terno...
Ele: Deixaste aqui uma sombra viva...
JÚLIA: Eu gosto da sombra... e do movimento do corpo... e do ritmo...
Ele: ... a silhueta que criaste naquele espaço. O anoitecer... a lua a aparecer... o uivo dos nossos corpos enroscados...
JÚLIA: ... e as palavras a sobrevoar...
Ele: ... metade ouvidas, metade sentidas...
JÚLIA: ... e outras que nem damos por serem nossas...
Ele: ... e os nossos corpos a libertarem as almas que nos observavam...
JÚLIA: O corpo sem entender, chamou-lhes fantasmas...
Ele: ... ao som daquela música... ouvias a música?
JÚLIA: Na verdade estava completamente surda...
Ele: Eu só ouvia a música... eram os meus olhos que só olhavam para interiores...
JÚLIA: ... sombras das cores...
Ele: ... cores do vento ao brilho da Lua...
JÚLIA: ... lua lanterna que brilha e ilumina corpos celestes...
Ele: ... corpos que pairavam...
JÚLIA: ... pairavam nas estrelas. Lembras-te das estrelas?
Ele: Lembro-me da estrela interior que os meus olhos cegos conseguiam ver.
JÚLIA: Os teus olhos não estavam cegos... Olhavam para os meus...
Ele: Mas não viam... apenas sentiam...
JÚLIA: Como eu não te ouvia... só te sentia em mim.
Descoberta viva
Podemos encher páginas
e páginas em branco
e alimentar uma ideia
- pequena -
como se fosse
uma descoberta viva.
As pequenas ideias
e as páginas em branco
flutuam em sintonia,
no silêncio - desmascarado -
de uma viva descoberta:
este é o lado errado de nós.
Poesia de Paula Raposo
22 outubro 2010
O Botão
– Sabe do que eu gostava, Alice?
– Sabe?!
– Sabes do que eu gostava?
– Sim, assim está melhor. Do quê?
– Se calhar, vai… vais levar a mal.
– Diga, homem. Se não disser…
– É que eu gostava muito.
– O que virá daí…
– Se calhar ficas aborrecida.
– É provável…
– Que fiques aborrecida?
– Sim, é muito provável, sr. Cruz, é que o senhor ainda não me disse nada e eu já estou a ficar aborrecida.
– Ah!… Queres dizer que, seja como for, já não me escapo?
– Mas o senhor quer escapar?
– Não, não quero.
– Então o quer, sr. Cruz?… Olhe que o seu tempo está a acabar.
– Ao tempo que o meu tempo está a acabar.
– Eu não estava a falar desse tempo, sr. Cruz.
– Eu calculei… Está quase na hora, não é?
– É. E estou quase a acabar e o senhor ainda não me disse o que quer.
– Não levas a mal?
– Hum… mas o que é que irá sair daí? Devo ficar preocupada?
– Não, preocupada não, não há razões para isso.
– Menos mal… Pode-se virar para dobrarmos as pernas.
– Para dobrarmos não, para eu dobrar.
– Só se for hoje, seu preguiçoso!
– Mas as pernas são minhas.
– São, quanto a isso não há dúvidas, mas como sou eu que as dobro.
– Isso é verdade… Podes-me pôr a almofada debaixo da cabeça?
O homem virou-se de barriga para cima, a mulher pôs-lhe a almofada debaixo da cabeça e, sorrindo, dirigiu-se aos pés da cama, onde lhe agarrou os pés.
– Vamos lá! Vou-lhe só levantar e segurar os pés e o sr. Cruz vai tentar dobrar as pernas.
– Ah…
– Força!
– Mais?
– Baixe a cabeça… Encoste a cabeça à almofada.
– Eu…
– Boa! Está a ver…
– Agora não.
– Outra vez. Estique. Vamos lá. Agora não? Agora não o quê?
– Não estou a ver.
– Boa! Dobre. Dobre. Está quase, está quase… Não estou a perceber nada, sr. Cruz. Não está a ver o quê?
– Nada. Não estou a ver nada.
A mulher segurou-lhe os tornozelos e empurrou-lhe suavemente as pernas, dobrando-as. Levantou a cabeça e olhou para a cabeça do homem pousada na almofada. O homem tinha os olhos fixos no tecto e uma estranha expressão de resignada tristeza. Em silêncio, ela flectiu-lhe as pernas mais algumas vezes.
– Já está – disse, terminando o exercício e esticando-lhe as pernas, enquanto se endireitava. Olhou para os pés do homem e, quando levantava a cabeça, espantou-se com a clara visão dos seus volumosos seios apertados no soutien rendado branco entre o tecido da bata que tinha um botão aberto a mais e, repentinamente, compreendeu o sentido da conversa do homem e a expressão amargurada com que ele contemplava o tecto.
Nesse momento, o homem levantou a cabeça e os olhos de ambos cruzaram-se, antes dos deles descaírem, por um instante apenas, para o acidentalmente generoso decote da fisioterapeuta.
– E, afinal… – a mulher decidiu dar a entender que não tinha percebido o olhar guloso do velho artrítico e, enquanto ajeitava a bata e fechava o botão, tornou ao desejo inconfessado do homem: – O sr. Cruz não me disse o que queria.
Injuriando em silêncio os dedos ágeis da mulher que fechavam o relapso botão da bata e lhe trancavam a felicidade por trás de um pedaço de tecido, o velho sr. Cruz murmurou:
– Fica para a semana, Alice. Fica para a semana.
Silêncio
Trago o corpo de silêncio vestido
agora a espera pode esperar
que a pele vestida de silenciar
é incêndio desfeito em tecido.
Porque trago o eu do corpo perdido,
trago o corpo do meu corpo despido
agora o sono pode adormecer
que a pele vestida de tanto ser
é desejo no teu corpo cosido
e trago o corpo de silêncio vestido.
agora a espera pode esperar
que a pele vestida de silenciar
é incêndio desfeito em tecido.
Porque trago o eu do corpo perdido,
trago o corpo do meu corpo despido
agora o sono pode adormecer
que a pele vestida de tanto ser
é desejo no teu corpo cosido
e trago o corpo de silêncio vestido.
E tu, já consultaste o diciOrdinário ilusTarado hoje?
A cultura é uma coisa muito linda!
E ser ordinário não significa ser inculto!
Que o diga a nossa membrana Jacky, que mostra ao mundo o que anda a ler:
E ser ordinário não significa ser inculto!
Que o diga a nossa membrana Jacky, que mostra ao mundo o que anda a ler:
21 outubro 2010
Por encomenda
Geralmente, não escrevo por encomenda.
Escrever é, para mim, um momento catártico, que ocorre porque tenho necessidade dele, nunca o contrário, quero dizer, raramente é a escrita que precisa de mim.
Abro excepções quando as circunstâncias me levam a aceitar escrever com um objectivo, seja porque o tema me interessa sobremaneira, seja porque quem mo pede merece todo o meu respeito. Desta vez, a razão preponderante foi a última: uma ex-aluna, responsável por uma publicação lá da UCP (a Critério), consciente de que entre nós dificilmente haverá comunhão de pontos de vista (e que, ainda assim, preza tanto a minha perspectiva como eu a dela), pediu-me para redigir um texto sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, temática em que, para não variar, não concordamos em nada.
E fi-lo, no prazo auto-estipulado, ainda que soubesse que dificilmente conseguiria ser original ou sequer interessante. O resultado foi este:
É ainda com alguma surpresa que sou chamada, com regularidade, a posicionar-me ou a moderar debates sobre a contenda que constitui o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esqueço-me, frequentemente e em consciência, de que é ainda uma questão controversa, para alguns, o que para mim é tão discutível como a cor do mar ou o cheiro das castanhas. Mas, porque vivo em sociedade, rapidamente reponho a minha falha e, sob a égide do Pensamento Crítico, debato o que, quanto a mim, não passa de preconceito e pronuncio-me sobre a vida íntima dos outros. Assim seja.
Escrever é, para mim, um momento catártico, que ocorre porque tenho necessidade dele, nunca o contrário, quero dizer, raramente é a escrita que precisa de mim.
Abro excepções quando as circunstâncias me levam a aceitar escrever com um objectivo, seja porque o tema me interessa sobremaneira, seja porque quem mo pede merece todo o meu respeito. Desta vez, a razão preponderante foi a última: uma ex-aluna, responsável por uma publicação lá da UCP (a Critério), consciente de que entre nós dificilmente haverá comunhão de pontos de vista (e que, ainda assim, preza tanto a minha perspectiva como eu a dela), pediu-me para redigir um texto sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, temática em que, para não variar, não concordamos em nada.
E fi-lo, no prazo auto-estipulado, ainda que soubesse que dificilmente conseguiria ser original ou sequer interessante. O resultado foi este:
É ainda com alguma surpresa que sou chamada, com regularidade, a posicionar-me ou a moderar debates sobre a contenda que constitui o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esqueço-me, frequentemente e em consciência, de que é ainda uma questão controversa, para alguns, o que para mim é tão discutível como a cor do mar ou o cheiro das castanhas. Mas, porque vivo em sociedade, rapidamente reponho a minha falha e, sob a égide do Pensamento Crítico, debato o que, quanto a mim, não passa de preconceito e pronuncio-me sobre a vida íntima dos outros. Assim seja.
Filha que sou de um casal absolutamente tradicional (no sentido em que casou e me gerou sem recorrer a quaisquer métodos para além dos que a [sua] natureza lhe colocou ao dispor), descendentes que são meus pais de outros casais igualmente condizentes com os (assim chamados) padrões “normais” da nossa sociedade, desconheço onde está o gene que me leva a, sem qualquer lirismo, afirmar-me pelo amor, seja ele entre homem e mulher, entre dois homens ou duas mulheres. Ou saberei: não havendo, até ver, nenhum familiar homossexual por quem tenhamos de empunhar bandeiras, ou fazer desviar convicções, nasceu nos meus avós, hoje octagenários, este respeito pelo outro (seja ele quem for) que, não escolhendo cores nem géneros, também não tem por que indagar orientações sexuais. E, paradoxalmente, de uma família onde a atracção por pessoas do mesmo sexo é vista sem qualquer pudor ou adjectivação anómala, nasceram seres humanos heterossexuais. Ao menos, até ver, já se sabe.
Fui ensinada a acreditar (e nada, na minha vida adulta, me fez crer que deveria ser de outro modo) que qualquer ser humano é digno de direitos, liberdades e garantias iguais, independentemente das características que o particularizam enquanto indivíduo, e desde que cumpra os deveres que fazem dele um cidadão. Deste modo, afigura-se-me como absolutamente desnecessário empreender um amontoado de razões que sustentem a minha convicção de que, se todo o ser humano tem o direito a contrair casamento e constituir família, então qualquer ser humano tem o direito de o fazer (é redundante, mas os contornos silogísticos enterneceriam Aristóteles), sem excepções. Da mesma forma que nenhum homem e nenhuma mulher heterossexuais são obrigados a submeter-se a um teste de fertilidade por forma a comprovar que podem procriar, porque não é essa a pedra de toque do casamento (segundo a lei civil de qualquer país democrático), parece-me desprovido de sentido negar a quem, biologicamente, não pode reproduzir-se com o parceiro, o direito de constituir família. Se assim fora, também a uma mulher na menopausa ou a um homem infértil estaria interdito o laço.
Fui ensinada a acreditar (e nada, na minha vida adulta, me fez crer que deveria ser de outro modo) que qualquer ser humano é digno de direitos, liberdades e garantias iguais, independentemente das características que o particularizam enquanto indivíduo, e desde que cumpra os deveres que fazem dele um cidadão. Deste modo, afigura-se-me como absolutamente desnecessário empreender um amontoado de razões que sustentem a minha convicção de que, se todo o ser humano tem o direito a contrair casamento e constituir família, então qualquer ser humano tem o direito de o fazer (é redundante, mas os contornos silogísticos enterneceriam Aristóteles), sem excepções. Da mesma forma que nenhum homem e nenhuma mulher heterossexuais são obrigados a submeter-se a um teste de fertilidade por forma a comprovar que podem procriar, porque não é essa a pedra de toque do casamento (segundo a lei civil de qualquer país democrático), parece-me desprovido de sentido negar a quem, biologicamente, não pode reproduzir-se com o parceiro, o direito de constituir família. Se assim fora, também a uma mulher na menopausa ou a um homem infértil estaria interdito o laço.
Cumpre-me também assinalar o tão invocado argumento natural: anda o ser humano, há séculos sem fim, a negar ser pura natura e, de repente, num acesso saudosista, parece pretender regressar-lhe. Mas apenas em parte, o que me provoca perplexidade: “a homossexualidade não é natural”, invocam certos bloggers, através da ferramenta internet, enquanto os seus leitores, bebendo uma Coca-Cola light e envergando uma parka de nylon, porque o ar condicionado avariou, acenam uma cabeça de onde pendem fios de cabelos aclarados e esticados a poder de escova e secador e onde se observam meia dúzia de piercings, olhos esbugalhados, pela concordância e pelo rímel. Tudo perfeitamente natural, portanto. Como será absolutamente normal a reivindicação taxinómica: chame-se-lhe outra coisa, que não casamento, porque esta é a nomenclatura religiosa. Sê-lo-á, mas é de casamento civil que falamos. E se o casamento civil se chama assim e não de outro modo qualquer, não fará sentido algum arranjar uma qualquer designação substituta: trata-se de um mesmo contrato, que obriga as partes da mesma forma e, como qualquer contrato, não deverá atender a pormenores de somenos, na medida em que, como já afirmado, não será a incapacidade de se reproduzirem pelas vias naturais que virá diferenciar os contratantes.
Uma última palavra para a questão que se segue: a adopção ― que choca uns, baralha outros e é aceite por uma imensa minoria. Aquela que, como eu, acredita que o amor não tem género; que uma mulher não é necessariamente uma figura maternal e que um homem nem sempre representa a dimensão paternal; que não se trata de sexo mas de amor e que, se a criança tiver adultos, agentes cuidadores que a amem, pouco (lhe) importará de onde vem esse amor: de um homem viúvo, de uma mãe solteira, de dois pais, duas mães, ou um pai e uma mãe, amor é amor e é por ele que se constroem seres humanos melhores. Seres humanos como os meus avós, que me ensinaram, por intermédio dos meus pais, que havia muita gente diferente de mim, que merecia o mesmo respeito que me ensinaram a reclamar. Que criaram seres humanos que, um dia, se decidirem procriar (porque a sua escolha não depende de uma lei), ensinarão os seus filhos que, na escola, encontrarão muitos meninos que não são filhos de gente com determinada orientação sexual mas, tão só, filhos de gente que escolheu amá-los. Exactamente iguais a eles, portanto.
não são rosas, senhor! não são rosas!
são... koises! koises a montes para que a tampa possa saltar...
oh tu aí, faz-me saltar a tampa...
(fotografia de Lia Whiting, tirada algures na Ericeira)
________________________Com direito a ode do OrCa:
tu não me leves a mal,
mas seres único no mundo
de pénis colocado à venda
quer dizer, muito no fundo
e para que bem se entenda
que ao estrangeiro se avisa
desta subtil maneira
que aqui se combate a crise
dependurando a alheira...
pior, usar um caralho
para retirar caricas
é coisa feita a retalho
lembra coisa de maricas
e pendurar-se o zé-nabo
assim por tristes razões
faz lembrar ao fim e ao cabo
de que serve ele sem colhões..."
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