23 janeiro 2011

«Viagem de metro» - por Rui Felício

Há já muito tempo que não viajo no Metro de Lisboa. Mas reconheço que é um excelente meio de transporte quando se tem urgência em atravessar a cidade de um ponto a outro.
Lembrei-me de um episódio nele passado, quando ainda era jovem, há já muitos anos...

Tinha embarcado em Entre-Campos, em direcção ao Rossio. A carruagem não ia muito cheia. Consegui encontrar lugar sentado, acomodei-me e tirei da pasta um livro que andava a reler, do Processo de Franz Kafka.
Já o tinha lido algumas outras vezes e de cada uma que lia era-me possível imaginar um destino diferente para o Sr. Kafka.
Olhando por sobre as suas páginas amareladas, pude observar poucos metros à frente, num daqueles bancos de costas para as janelas que alguém inspiradamente baptizou de “banco dos palermas”, uma linda e elegante morena de olhos negros. Discreta no vestuário mas suficientemente bonita para que se destacasse entre as demais mulheres que viajavam na carruagem.
Durante a viagem, por uma vez ou outra arrisquei-me a fitá-la. Fui surpreendido por um olhar de retorno e um disfarçado sorriso. Foi no meio dessa troca de olhares que na estação do Saldanha entrou um homem de avançada idade, casaco coçado de tamanho bastante maior que o corpo franzino que envolvia , trazendo na mão uma Bíblia de capa tão carcomida e antiga que cheguei a pensar se não se trataria de um original das sagradas escrituras.
O homem, postou-se em pé em frente ao “banco dos palermas” e começou, em altos brados, a apregoar a mensagem de Cristo, levando à letra a recomendação de “ide e espalhai a boa nova em toda a parte!”. Percebia-se a frouxidão da sua dentadura postiça, o que lhe dificultava a dicção.
O seu arengar era acompanhado da saída ininterrupta de gotículas de saliva com que, entre uma palavra e outra, salpicava os seus involuntários ouvintes.
Mas eu estava mais preocupado era em não perder de vista aquela bela mulher. Peguei num lenço de papel que trazia no bolso e rabisquei rapidamente o meu nº de telefone... Já próximo do Rossio, levantei-me, enchi-me de coragem e, antes de sair, entreguei o lenço àquela mulher.
Ao mesmo tempo, o velho pregador entusiasmou-se no sermão e disparou contra a formosa mulher, um consistente e avantajado perdigoto, que a atingiu em cheio na testa.
O comboio já começava a abrandar para a entrada na estação do Rossio.
Ela com um sorriso constrangido, aproveitou o lenço de papel que eu lhe dera, desdobrou-o e antes que eu esboçasse qualquer reacção, esfregou-o na testa limpando o cuspo com que o pregador a tinha atingido durante a prelecção.
Virou-se para mim e disse-me educadamente:
- Muito obrigada, senhor...
E devolveu-me o papel! Sem sequer se ter apercebido que eu tinha lá escrito o número de telefone!
Do lado de fora da carruagem, em plena estação, vi o comboio arrancar de novo. Através da janela,vi, a distanciarem-se, aqueles belos olhos negros, aquele lindo sorriso e aquele enorme borrão de tinta azul que lhe ficara a manchar a testa.
Na minha mão, o lenço de papel amassado, com o número de telefone esborratado, que ela, com cortesia, me devolvera.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações

«Infinitamente Maio»

Ficção de Marcos Jorge e Cacau Rhoden - 2003 - 19 min

Amor, traição, vingança, sexo e morte (não necessariamente nesta ordem) causam uma reviravolta irreversível na vida de quatro pessoas.



Link directo para o filme aqui.

Sempre podem ir-se revezando... digo eu...

crica para visitares a página John & John de d!o

21 janeiro 2011

Eleições: os quadrados e as cruzes...


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A posta que chovem carapuças (carapiças?)


Uma das cenas mais giras de acompanhar em blogues são as trocas de piropos entre casais desavindos. Neste domínio encontramos alguns exercícios brilhantes de escárnio e maldizer, acrescidos em dificuldade pela absoluta necessidade de dizer tudo o que é preciso para quem conheça consiga identificar o/a outro/a (sobretudo o/a próprio/a) sem contudo a coisa ficar escarrapachada em demasia para não tombar pela base a pala de absoluta e recíproca indiferença que tanto se esforçam por construir.
São intensas, mais até do que muitas ainda a decorrer, estas ex-relações amorosas trasladadas na sua qualidade de mortas-vivas para a plataforma blogueira. Transpiram emoção, ainda que alegadamente negativa, e constituem obsessões tão óbvias que cedo ou tarde acabam por se verem traídas naquilo que de mais importante existe para os/as autores/as: a camuflagem do seu verdadeiro sentir. E por vezes essa mascarada de carnaval pobrezinho até inclui sólidas referências à sinceridade e ao cariz genuíno de quem tantas vezes repete a ideia do ódio de estimação que quase acredita nesse estatuto por parte do alvo a abater.
A malta desunha-se a escrever quando não aguenta mais o faz de conta e por impulso (mais ou menos controlado) avança para o teclado com a loucura estampada no olhar.
Depois publicam-se as postas, ainda a ferver, e nem se aguardam uns minutos até ser possível matutar a sério acerca das palavras disparadas para a página branca no monitor. O desprezo desejado a tentar esconder por detrás o amor que custa sempre muito a morrer, as palavras com vontade de fazer doer porque a saudade abre a ferida e as memórias provocam imensa comichão e depois surge em cena a vontade da vingança que resulta sempre porque se sabe que o/a outro/a nunca perde pitada.
E a cena fica ainda mais marada quando se equiparam no calibre os oponentes, tanto na intensidade dos sentimentos como na capacidade de os reflectir num texto tão curto e contundente quanto seja possível obter.
Numa altura em que já ninguém pode esconder a sangria da blogosfera para a rede social da moda, onde toda a gente acha que tem que se estar, é sempre uma alegria encontrar estes prodígios da escrita rebuscada que se vê utilizada como artilharia, num bombardeio constante que para quem veja de fora é claro enquanto inconsequente e nunca existe um vencedor.
E ainda se torna mais fascinante quando identificamos os protagonistas dessas conturbadas mas intermináveis histórias de amor.

Presente no passado

Continuo, só por nada, por nadas, a espreitar
talvez passe um dia, até dois, ou mesmo três
mas ainda não, ainda não, não será de vez
este dia de hoje em que perdeste o meu olhar.
Talvez já nem me sintas, como antes, observar;
como antes, ainda sentes o que não me vês?
Já aqui não mora o sim, ou sequer o talvez;
espreito a tua janela, apenas, já não quero entrar.
É olhar apenas, como se estivesse a recordar
no presente, a memória esconde-se na timidez
de um olhar fora de tempo, esta triste nitidez
desenha os porquês que a memória quer apagar;
ou talvez um dia alguém te consiga explicar
que te quer ver bem pelo bem que não te fez.

Take away


E ainda se tem de pagar.


Tudo tem a sua época própria


Solstício


2 páginas (clicar em "next page")

oglaf.com

20 janeiro 2011

O testemunho

– E a senhora ouviu alguma vez o senhor A. dirigir alguma palavra incorrecta ou ter alguma atitude deselegante com a mulher, a senhora B.?
– Nunca!... Ele era um marido que aceitava tudo, era um paz de alma. O senhor A. era um burrinho à chuva.
– Um burrinho à chuva?!
– Sim, um burrinho à chuva. Até lhe vou contar um episódio, só para a senhora doutora ver como ele era com a mulher: eu uma vez fui lá a casa e ele estava a arear os bicos do fogão… Veja bem, a arear os bicos do fogão. Ela na sala a ver a novela e ele cheio de brios e cuidados de volta dos bicos. E eu disse-lhe, doutora, eu disse: Ó Cilinha (eu tratava-a por Cilinha… Por Cilinha, doutora, veja bem como eu gostava dela, nem lhe chamava Raimunda nem nada)…
– Não estou a perceber, a senhora não se chama Raimunda?
– Eu?! Eu não, Deus me livre!
– Eu sei que a senhora não se chama Raimunda…
– Graças a Deus e aos meus paizinhos.
– Seja. Voltemos aos factos.
– O facto é que ela não gostava, doutora, não gostava nada. Chamar-lhe Raimunda era pior que cuspir-lhe.
– Pronto, já percebemos. Essa parte do nome está esclarecida, D. Engrácia Genoveva. A senhora estava a dizer que lhe tinha dito…
– Sim, eu disse-lhe: “Ó Cilinha, quem me dera a mim ter um homem que me tratasse dos bicos como o teu… Que regalo. Olha para aquelas mãos tão cuidadosas de volta dos bicos, mulher, a rodeá-los com tanto cuidado, a esfregá-los com tanto carinho. Quem me dera que alguém me esfregasse os bicos assim…”
– E ela?
– Ela?! Ela virou-se para mim e disse-me: “E nunca o viste tu de joelhos a passar-me o corredor a pano”.
– Diga?
– Digo, doutora, digo… mas nisso ele não era tão bom.
– Desculpe?
– É verdade, eu até acho que ele tinha uma fixação por bicos, está a ver?… Para o resto não lhe puxava tanto.
– Ainda está a falar do fogão?
– Do fogão?! Ah, sim, sim, do fogão. Pois, dos bicos do fogão, ele estava a areá-los.