Era o funcionário mais estranho que conheci. Quantos anos teria? Trinta? Quarenta? Mais?
Magríssimo, esquelético mesmo, as faces encovadas de onde lhe sobressaiam as maças do rosto, quase a romper a pele macilenta. O cabelo preto de azeviche, empastado de brilhantina barata, parecia colado à cabeça. As orelhas de abano pareciam ter sido cosidas com agulha ferrugenta dos dois lados da cabeça, prontas a despegarem-se ao menor sopro de vento.Como numa lúgrube cruzeta, adejavam as roupas muito largas, de tons pretos ou cinzentos.
Falava pausadamente para disfarçar a gaguez. Lia e relia a papelada que os alunos lhe entregavam na secretaria do liceu para se matricularem, pagarem as propinas ou requererem exames, na demanda ínfrene de descortinar algum formulário incompleto ou mal preenchido.
Quando descobria algum erro, adoptava uma postura vencedora,altaneira, que o seu metro e sessenta empinado pelo tacão alto dos sapatos de fivela lhe permitia, e vociferava lentamente, em voz pastosa, fitando o aluno por trás dos seus óculos de aros grossos de imitação de tartaruga:
- Olha lá rapazote, aqui no Liceu não se admitem analfabetos. Vai para um colégio qualquer e volta cá só quando já souberes preencher os papéis.
Puxava a manga de alpaca para o cotovelo, engordurada de meses a fio sem ser lavada e pegava nos papéis do aluno que se seguia na fila.
Mas que homem era aquele, quem era de facto o burocrata a debater-se imundo na camisa de forças do rígido normativo da secretaria, humilhado às escondidas pela rapaziada? Será que acalentava algum sonho? Qualquer homem os tem. E ele? Tinha algum? Ou alimentava-se apenas da autoridade efémera sobre os alunos que as regras do liceu lhe conferiam? Bastar-lhe-ia comer o pó dos processos escolares que enchiam as paredes e as secretárias?
Não! Viemos a saber que não!
Figura caricatural, dentro do esqueleto que lhe furava a camisa passajada, o coração do Lacerda também amava.
Também sonhava! Aquela mulher de lábios grossos, carnudos, de pernas roliças, seios fartos a saltarem pelo decote da blusa às flores, a quase rebentarem os botões de osso de javali que a cingiam ao corpo, trazia-o ensandecido. Fora a única mulher que conhecera em toda a sua vida que não se ria dele, que lhe sorria meiga, que o escutava atenta, que lhe sussurrava palavras de amor e que gemia nos seus braços esqueléticos, na penumbra do quarto daquele primeiro andar onde todos os dias se ia encontrar com ela.
Ultimamente, o Lacerda pedia por vezes dinheiro emprestado aos colegas, porque aquele amor louco lhe estava a esgotar as economias. Nem parecia o mesmo! A partir do meio da tarde, ansiava que os ponteiros do relógio ganhassem maior velocidade, para sair do trabalho, encharcar-se em perfume reles que empestava tudo à sua volta, apanhar o eléctrico na Alameda e depois apear-se em andamento perto da Praça 8 de Maio.
Era vê-lo então a embrenhar-se nas vielas da Baixa, chocalhando os ossos, em passo estugado, os tacões de pau de cinco centímetros já descambados, a baterem ritmados na calçada. Chegado, subia dois a dois os estreitos degraus de madeira carunchosa até ao primeiro andar.
Recobrava o fôlego, abria os braços em direcção à sua amada, deixava antever os dentes amarelos num arremedo de sorriso, num esgar cadavérico e articulava melancolicamente, disfarçando a gaguez:
- Meu amor! Vamos?
- A Carmen, assim era o seu nome, espanhola de Cáceres que imigrara há um bom par de anos para trabalhar em Coimbra, sorria-lhe, passava-lhe a mão pelo cabelo oleoso e levava-o pela mão ossuda, como a um menino, para o quarto daquele nº 13 da Rua Direita…
Rui Felício
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