26 junho 2012

As Sessenta Virgens

Deus estava a fazer a barba. Desde há séculos (literalmente) que todas as manhãs acordava dorido e angustiado e chateado com a vida e ainda por cima despeitado com o Seu mau hálito. Frequentemente sofria de insónias.
Nunca Lhe tinha passado pela cabeça que tudo acabaria assim quando, alguns milénios atrás, tinha aceitado aquela missão na Agência Intergaláctica de Amas para Planetas.
É certo que Lhe tinham dito que a Terra era um planeta "classe zero" e que Ele teria que contemporizar com todos os credos e crenças dos seres que aí habitavam. Na altura tinha pensado na missão como um desafio. Hoje em dia, a pior coisa era ter que fingir que não existia quando se cruzava com algum ateu pretensioso, lá em baixo no Céu.
"Toque, toque" - um querubim batia à janela.
- O que é? Não pode esperar? - ralhou Deus enquanto abria uma fresta.
- Deus, o mártir muçulmano que chegou ontem está a ter problemas com as virgens - informou o querubim.
"Os muçulmanos, sempre os muçulmanos" - pensou Deus para com os seus botões. "Esses gajos mais a parvoíce das sessenta virgens". Como é que era suposto esperar que Ele arranjasse sessenta para cada mártir se achar uma já era difícil. Por Ele podiam ir todos para o Inferno, se ao menos o Inferno existisse. Século após século, Ele tinha-se preocupado, e preocupado, e perdido uma eternidade de noites (literalmente) a pensar como havia de contornar a escassez de virgens. Hoje em dia dava dez a cada mártir quando chegavam e mais uma de vez em quando até que eles perdessem a conta.
- Vá lá Deus, o que é que eu faço - insistiu o querubim.
"Essa era outra. Ele tinha sempre que saber o que fazer. E toda a gente O chamava Deus quando o Seu nome verdadeiro era Henrique."
- Ok, Ok, Eu vou ver se ainda tenho algum - respondeu Deus ao querubim.
Deus continuou a fazer a barba, enquanto o querubim se afastava rapidamente levando consigo o milagroso comprimido azul, Viagra, para dar ao mártir.

ovo.cósmico
http://alogicasubjacente.blogspot.pt/

«Os jardins de Eros II» - tríptico, acrílico sobre cartão, Carlos Martins, 2001, Portugal

Tríptico da minha colecção.



25 junho 2012

Doritos - «Noite dos rapazes»

«respostas a perguntas inexistentes (203)» - bagaço amarelo

das coisas que eu não percebo em mim

Merda de microondas. Acabei de queimar a língua. Todas as manhãs é a mesma coisa: ou aqueço demasiadamente o leite ou tenho que o beber frio. Dantes, quando o punha num fervedor de metal e o aquecia no fogão a gás, nunca falhava. Sabia exactamente qual a temperatura a que estava só de olhar para ele. Agora, com o microondas, é todas as manhãs um stress. O que eu não percebo em mim, é porque é que tendo o fogão a gás mesmo ao lado do microondas, insisto em usar este último todas as manhãs.
Há mais coisas que eu não percebo em mim. Todas as manhãs, todos os dias, todos os meses, todos os anos. Por exemplo, saber que a Primavera gosta de entrar pelas janelas da minha casa e, mesmo assim, nunca as abrir mal a vejo do outro lado dos vidros. Vejo-lhe a luz, não lhe sinto cheiro.
Movimento-me assim, num colete de hábitos que tem como único objectivo fazer com que o tempo passe por mim sem que eu passe por ele, até ao segundo exacto em que me dou conta disso mesmo. Por exemplo, de que a pessoa que eu Amo e que está ali ao meu lado, não é apenas uma sombra de todos os dias, de quem me vou despedindo todas as manhãs para depois cumprimentar à noite com um beijo na boca sem sabor.
São dez horas e dezasseis minutos dum dia qualquer primaveril. Raspo três vezes um fósforo na respectiva caixa para acender um dos bicos do fogão. Faz-se fogo, faz-se luz. Aqueço o leite enquanto abro as janelas de casa e corro para a porta para beijar de novo a minha companheira. Mais prolongadamente, desta vez, e com um "Amo-te!" à mistura. A minha vida é uma das coisas que eu não percebo em mim.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

A mecânica dos rabiscos




Via Watermeloncolya

Qualidades

É difícil achar alguém que goste de ti, imagina de alguma qualidade em especial?




Eh! Espera aí!...

Capinaremos.com

24 junho 2012

Limpinhas e lavadinhas


Clean (2011) from Richard Kern on Vimeo.

Gustavo


A inundação começou com o seu sorriso de olhos cúmplices, avolumou-se com os gostos comuns por letras e imagens e as suas histórias cheias de descobertas nas rotinas citadinas a impregnar a minha alma de mata-borrão e foi às apalpadelas na cheia que me pareceu natural como a minha sede que após diversas tentativas de localização ele me sentasse na rocha do aparador da entrada e então ao mesmo nível, fizesse canoagem nos meus rápidos vaginais que nunca fui moça de ficar quieta.

Mas adiante que além das diárias mãos dadas também recordo os primeiros raios de sol a enfeitarem o quarto como serpentinas em cada manhã que me arrebitavam para a festa de lhe beijar cada milímetro desde as ramelas ao Everest privativo. E os finais da tarde na banheira onde largávamos as canseiras do dia para emergirmos na comunicação dos corpos, no morse de tocar os pontos de cada vértebra do pescoço e coluna em escala descendente fazendo a electricidade estática que torna urgente entrar no sistema. E a moleza do final da digestão do jantar que nos aninhava no sofá numa sôfrega sobremesa de sucção mútua que me encavalitava nas suas ancas, mãos esborrachadas nas suas nádegas, num trote seguro até ao galope final emitido em onomatopeias.

Nem me incomodava a tampa da sanita sempre levantada, um pormenor de somenos perante a sua perfeição a bailar a casa de aspirador na mão e gostava que tivesse durado o resto dos dias da minha vida.

«O Lacerda» - por Rui Felício


Era o funcionário mais estranho que conheci. Quantos anos teria? Trinta? Quarenta? Mais?
Magríssimo, esquelético mesmo, as faces encovadas de onde lhe sobressaiam as maças do rosto, quase a romper a pele macilenta. O cabelo preto de azeviche, empastado de brilhantina barata, parecia colado à cabeça. As orelhas de abano pareciam ter sido cosidas com agulha ferrugenta dos dois lados da cabeça, prontas a despegarem-se ao menor sopro de vento.Como numa lúgrube cruzeta, adejavam as roupas muito largas, de tons pretos ou cinzentos.
Falava pausadamente para disfarçar a gaguez. Lia e relia a papelada que os alunos lhe entregavam na secretaria do liceu para se matricularem, pagarem as propinas ou requererem exames, na demanda ínfrene de descortinar algum formulário incompleto ou mal preenchido.
Quando descobria algum erro, adoptava uma postura vencedora,altaneira, que o seu metro e sessenta empinado pelo tacão alto dos sapatos de fivela lhe permitia, e vociferava lentamente, em voz pastosa, fitando o aluno por trás dos seus óculos de aros grossos de imitação de tartaruga:
- Olha lá rapazote, aqui no Liceu não se admitem analfabetos. Vai para um colégio qualquer e volta cá só quando já souberes preencher os papéis.
Puxava a manga de alpaca para o cotovelo, engordurada de meses a fio sem ser lavada e pegava nos papéis do aluno que se seguia na fila.

Mas que homem era aquele, quem era de facto o burocrata a debater-se imundo na camisa de forças do rígido normativo da secretaria, humilhado às escondidas pela rapaziada? Será que acalentava algum sonho? Qualquer homem os tem. E ele? Tinha algum? Ou alimentava-se apenas da autoridade efémera sobre os alunos que as regras do liceu lhe conferiam? Bastar-lhe-ia comer o pó dos processos escolares que enchiam as paredes e as secretárias?
Não! Viemos a saber que não!
Figura caricatural, dentro do esqueleto que lhe furava a camisa passajada, o coração do Lacerda também amava.
Também sonhava! Aquela mulher de lábios grossos, carnudos, de pernas roliças, seios fartos a saltarem pelo decote da blusa às flores, a quase rebentarem os botões de osso de javali que a cingiam ao corpo, trazia-o ensandecido. Fora a única mulher que conhecera em toda a sua vida que não se ria dele, que lhe sorria meiga, que o escutava atenta, que lhe sussurrava palavras de amor e que gemia nos seus braços esqueléticos, na penumbra do quarto daquele primeiro andar onde todos os dias se ia encontrar com ela.
Ultimamente, o Lacerda pedia por vezes dinheiro emprestado aos colegas, porque aquele amor louco lhe estava a esgotar as economias. Nem parecia o mesmo! A partir do meio da tarde, ansiava que os ponteiros do relógio ganhassem maior velocidade, para sair do trabalho, encharcar-se em perfume reles que empestava tudo à sua volta, apanhar o eléctrico na Alameda e depois apear-se em andamento perto da Praça 8 de Maio.
Era vê-lo então a embrenhar-se nas vielas da Baixa, chocalhando os ossos, em passo estugado, os tacões de pau de cinco centímetros já descambados, a baterem ritmados na calçada. Chegado, subia dois a dois os estreitos degraus de madeira carunchosa até ao primeiro andar.
Recobrava o fôlego, abria os braços em direcção à sua amada, deixava antever os dentes amarelos num arremedo de sorriso, num esgar cadavérico e articulava melancolicamente, disfarçando a gaguez:
- Meu amor! Vamos?
- A Carmen, assim era o seu nome, espanhola de Cáceres que imigrara há um bom par de anos para trabalhar em Coimbra, sorria-lhe, passava-lhe a mão pelo cabelo oleoso e levava-o pela mão ossuda, como a um menino, para o quarto daquele nº 13 da Rua Direita…

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações

Disconnecting people



Ricardo - Vida e obra de mim mesmo
(crica na imagem para abrir aumentada numa nova janela)

23 junho 2012

Homens, aprendam a instalar uma ventoinha de tecto

«conversa 1895» - bagaço amarelo

Ela - Gostava que te tivesses apaixonado por mim, pelo menos uma vez na vida.
Eu - Para quê? Já falámos sobre isso...
Ela - Pois já.
Eu - Somos bons amigos, acho eu, e se tu nunca te apaixonaste por mim, não percebo porque é que raio quererias que eu me apaixonasse por ti.
Ela - Para te fazer sofrer um bocadinho. Só isso.
Eu - Para me fazer sofrer?!
Ela - Sim, tenho esta sensação estúpida de que nunca ninguém sofreu por mim.
Eu - Estás bem?
Ela - Sempre que um homem se apaixonou por mim, eu apaixonei-me por ele. Sou uma fácil...
Eu - Não sabes se algum homem sofreu por ti em silêncio...
Ela - Pois não, mas queria tanto saber.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

Gravuras do livro «Égarements de Julie», de 1949

Três das 21 gravuras que ilustraram o livro.
Litografias sobre Vélin de Rénage (folha A4 - imagem: 16,5x13,5cm)
A partir de agora, na minha colecção.