Outono de 1999... (...) E imaginou, imaginou, imaginou... No fim de toda a imaginação, só nos sobrou uma questão: onde? Pouco tempo depois, nem dois dias, e os nossos dedos e olhos percorriam a secção do mercado de trabalho do Correio da Manhã. É inacreditável aquilo a que se pode ter acesso, apenas por se comprar um jornal. Se na primeira vez estava inocente, desta vez entendi bem o que estava a ler, é sempre surpreendente, ainda hoje fico surpreendida com o número de anúncios a angariar colaboradoras, acompanhantes, massagistas, com ou sem experiência, em tempo parcial ou completo, quase todos referindo as excelentes remunerações ou os excelentes ganhos, outros que mencionam o alto nível dos clientes, lenocínio transparente, declarado, inconsequente, o retrato mais fantástico da tolerância. Se condeno? Não, o que condeno é a hipocrisia baseada neste deixa andar. É crime? Olha-se para o lado porque, afinal, existirá de qualquer forma e até tem o seu espaço e a sua função social, tem um papel no ecossistema social como as aranhas têm no ecossistema animal. Mas é crime, então finge-se que está demasiado escondido para ser regrado, finge-se que não se vê, a luz impõe consciência, no escuro do submundo tudo vale. Escolhemos um anúncio no meio de tantos, mais ou menos ou calhas, como saber o que está por trás? Escolhe-se o que soar melhor, como se soar bem fosse relevante para a boa escolha. Já na casa onde estive me tinham alertado, diziam que eu tinha muita sorte em ter ido parar ali, que me podia ter calhado um sítio terrível, que aquele Mundo não era todo assim. Marcámos o número e a voz que atendeu fez as habituais perguntas: idade, descrição física, experiência. Deu-nos uma morada e combinou a hora a que deveríamos aparecer. Era dali a pouco tempo, é um Planeta sempre imediatista, metemo-nos no meu carro, eu já certa de voltar a ter dinheiro para a gasolina cedo a esse luxo, e fomos até ao Sheraton, a rua era ali perto, segundo nos explicaram. Anoitecia e estávamos ligeiramente perdidas, encostei e perguntámos a um homem que passava onde era aquela rua, ele perguntou-nos que número de porta queríamos porque podia ser para um lado ou para o outro, dado que era uma rua grande. Dissemos-lhe o número que procurávamos e ele estacou. Olhou para nós, surpreendido, quase de alto a baixo, como se fossemos coelhinhos a querer entrar na jaula do leão e disse-nos apenas que aquela rua talvez não fosse muito adequada para jovens como nós, talvez fosse melhor desistirmos. Hesitámos mas ele apontou o caminho e acabámos por agradecer, constrangidas e comprometidas e seguimos em frente. Estacionei. A rua era escura e o número pertencia a uma porta assustadora de um mais assustador e velho prédio. Uma porta de madeira, pesada, lúgubre, na nossa frente. Uma campainha por andar, tocámos e a porta abriu-se. As escadas ainda eram mais escuros, o escuro naquelas circunstâncias ainda parece mais escuro, mais cheio de sombras, nada de elevador e lá trepámos, degrau a degrau, pelos nossos medos acima. (Continua)