O professor de Geografia era bruto. Um grande bruto. Um dia, se não me baixava, quando sentado na carteira ouvia mais uma lição sobre os Montes Apalaches, levava com a cana na cabeça, arremessada com a força e a maestria de um lançador de dardo. Mas tinha razão o austero professor, descontando os seus acessos de fúria. Na verdade, os alunos deixavam muito a desejar. Namoradeiros, faltavam com frequência às aulas, para se embrenharem pelo Jardim da Sereia, onde faziam juras de amor às desprevenidas donzelas, que embarcavam desfalecidas na nau argumentativa dos farsantes.
Na realidade, a única disciplina que levavam a peito, até só era dada na Universidade: anatomia comparada.
Quando a professora de História Universal, apareceu vestida de preto no seu traje de viúva, houve um esgar de espanto na arena. Trinta e poucos anos muito bem conservados e um vestido justo que pôs o Pedro Chá-Chá a delirar de entusiasmo, enquanto descascava umas pevides com aquele barulho irritante que vinha lá do fundo da sala. Trac–trac-trac…
Ela, a professora, talvez já avisada que ao entrar na sala de aula era mesma coisa que embarcar num navio de corsários, quis impor-se logo de início. Hirta e solene na secretária, que por infelicidade dela e gáudio dos galfarros deixava ver as pernas bronzeadas e bem moldadas, a docente por decoro sentava-se de lado, como se tivesse um furúnculo na região glútea.
Descaradamente, a classe dos pardalões não disfarçava nada, com os olhos pregados no fundo da secretária, muitos mais interessados nos atributos da Senhora, que nas barbaridades jacobinas do Senhor Robespierre.
Foi então que a paciente professora, pediu um livro de História Universal para consultar. Azar o dela. Avançou então o compêndio do Francisco Mendes que, pacientemente, tinha recortado de um livro todas as caras das figuras de Walt Disney e colado nas imagens dos grandes vultos da Historia. Assim, Luís XVI com as suas sumptuosas vestes, com a cara de um dos irmãos Metralha, Maria Antonieta com a risonha simpatia da pata Margarida e Napoleão Bonaparte montado no seu cavalo rampante, com o rosto do avarento Tio Patinhas. Foi então, que aquele semblante carrancudo da viúva triste se desfez. Cada virar de página, uma gargalhada. Decididamente, a entusiasmante professora tinha perdido o controlo da nave dos loucos.
Porém, a turma dos matulões tinha por ela um certo carinho e consideração. Talvez por ser tão nova e desamparada de marido, embora se perceba que o que não faltava era ombros onde pudesse encostar a cabeça, ávida de uma palavra de conforto.
Mas a consideração que tínhamos por ela, nada a tinha a ver com o respeito que um padre idoso que um dia lá apareceu, também nos deveria merecer, para lecionar uma nova disciplina: MORAL …
O Padre Bento, diretor do Colégio, achou que os desvairados alunos precisavam urgentemente de umas lições que iluminasse o caminho dos desavindos. Achou mal. No dia em que um padre amparado numa bengala, recrutado no seminário, apareceu para a primeira aula, o grupo olhou-o com desconfiança e de sobrolho franzido. O velho padre, dialogante, quis pôr a turma à vontade. Perguntem o que quiserem meus filhos, até podemos falar das dúvidas e angústias que vos atormentam sobre a vida sexual – disse ele com a sua bonomia clerical estampada nas bochechas gordas e rosadas. Fez mal. Porque as perguntas e dúvidas eram de tal maneira escabrosas, que o ancião pediu a demissão. À segunda aula, acabou-se a disciplina de Moral.
Há tempos, encontrei o Valera, também ele ex - aluno do Colégio naquela época. É hoje general do exército angolano, terra onde nasceu e reside. Foi com emoção que nos abraçamos. Jamais o reconheceria de tão diferente que está. Mais de quarenta anos passados, o reencontro. E lembrámos as tropelias e diabruras de que também fomos cúmplices no Dom João de Castro. E rimos até às lágrimas…
Quito Pereira
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Encontro de Gerações do Bairro Norton de Matos