Nas cenas de maior suspense só se ouvia o estalar das pevides e dos amendoins a serem descascados ou os papeis coloridos dos rebuçados de frutas a serem desembrulhados pelos cachopos. Uma miscelânea de perfumes baratos inundava a sala.
Num ou noutro rosto das mulheres percebiam-se lágrimas a correr pelas faces, misturadas com esgares de raiva e de condenação.
Os semblantes dos homens denotavam ansiedade, os maxilares cerrados, tentando conter a comoção. Porque chorar não é próprio dos homens. Os pais iam contendo o irrequietismo das crianças, à custa de uns sopapos disfarçados ou com promessas de um bolo ou de uma laranjada no intervalo.
No palco, os actores, todos vizinhos e conhecidos dos espectadores, representavam a peça o melhor que podiam, em tom declamatório e grandiloquente, enfarpelados em guarda roupa renascentista, alugado numa loja da Rua das Figueirinhas. Um drama cujo enredo era construído à volta da infidelidade de uma mulher que traía o marido com o fidalgo Dom Diogo de Alencastre, rico senhor e dono de grandes propriedades, tido como impenitente mulherengo, sobranceiro e indiferente à quebra dos ancestrais pergaminhos que o seu comportamento indigno lhe acarretava.
Na plateia, de onde em onde, eram irreprimíveis e audíveis alguns comentários:
- Malandro!- sussurrava uma mulher magricela, com o cabelo armado em avantajada forma de ninho de cegonha, para a amiga que se sentava ao lado, na cadeira de pau desengonçada que rangia ao peso dos seus movimentos.
- Uma porca é o que ela é! – retorquia a outra, em voz baixa, abanando a cabeça e as banhas da barriga que lhe inchava o vestido às flores, como se fosse um pudim acabado de desenformar.
- Eu cá, se fosse ao marido, matava-a era a ela, grande vaca!, acrescentava a Dona Leonilde sentada na fila de trás. Solteirona, a Dona Leonilde, sentenciou:
- Um homem não é de pau e o Dom Diogo não fez mais que a obrigação dele!
Um homem que estava na fila da frente, virando a cabeça, beata pendurada nos queixos, de dedo indicador esticado ao pé do nariz, reprimiu-as, sibilando:
- Chiiiuu!
Por vezes conseguia-se ouvir a voz do ponto, encafuado debaixo do palco, que elevava a voz rouca quando os actores se esqueciam das suas falas ou das deixas.
A tensão era grande! Desenrolava-se a última cena do 3º acto.
Em palco, apenas o Felisberto, que era o marido enganado, com um revolver na mão e o fidalgo mulherengo, aterrorizado, procurando uma escapatória para as árvores desenhadas no cenário.
- Vou-te matar como a um cão, desgraçado!, dizia o Felisberto apontando-lhe a arma.
- Não! Não faças isso! Perdoa-me!, suplicava o Dom Diogo com as mãos levantadas.
- Dou-te aquele terreno ao pé do rio para amanhares, se me perdoares!
Mas já louco, fora de si, os olhos raiados de sangue, o Felisberto estava decidido a lavar a sua honra. Puxou o cão da pistola e carregou no gatilho. Mas nada! O fulminante não percutiu e o que se ouviu foi um estalido metálico seco e quase imperceptível.
O fidalgo, deu um pulo para trás, cambaleou e levou a mão ao peito, donde jorrou um líquido vermelho, representando a sua morte, tal e qual como inúmeras vezes tinham ensaiado.
Porém, não tendo saído o som do disparo, endireitou-se à pressa e esperou por novo tiro, para então sim, morrer e estatelar-se no palco.
O Felisberto ainda carregou no gatilho mais duas vezes, sem êxito. Definitivamente os fulminantes deviam estar estragados pela humidade, porque o estrondo do disparo nunca chegou a sair.
O actor, demonstrando um enorme sangue frio, pegou então no revolver pelo cano, dirigiu-se ao Dom Diogo, com o braço levantado, a mão enclavinhada no cano da pistola. Afivelou um ar ameaçador e berrou:
- Não te mato com um tiro, mas mato-te à coronhada, grandessíssimo pulha!
E caiu o pano, sob uma estrondosa salva de palmas.
______________________________________________________________
Uma homenagem, fraca é certo, mas sincera, ao Teatro Amador e aos homens e mulheres que depois dos seus dias de trabalho árduo para ganharem a vida, ainda encontravam ânimo e tempo para, à noite, irem ensaiar e representar no Clube Recreativo do Calhabé.
O protagonista desta peça era meu vizinho no Bairro. Era o Senhor Alberto Bastos, um dos maiores entusiastas do teatro amador e do associativismo a quem o Clube Recreativo do Calhabé muito deveu.
Rui Felício
Blog
Encontro de Gerações
Blog
Escrito e Lido
Facebook