10 agosto 2014

Banda Kaçamba - «Saia e Bicicletinha»

"Ela sai de saia de bicicletinha
Uma mão vai no guidom e a outra tapando a calcinha

Dá um arrepio quando ela sai pedalando
Mas tem uma mão na frente que tá sempre atrapalhando
Acho que ela tem medo do periquito voar
Por isso que ela não para de tapar

Eu não aguento mais
Essa situação
Vamo liberar geral
Vamo tirar essa mão
Bota a saia e vem pra rua
Na sua bicicletinha
Eu quero ver a cor da sua calcinha"

Luís Gaspar lê um excerto de «A casa do incesto» de Anaïs Nin


Escrito em 1949, este pequeno livro (conto) gira em torno de Sabina, personagem que reaparecerá nos romances da escritora, por exemplo “Uma Espia na Casa do Amor”. Sabina é inspirada em June Miller, segunda mulher de Henry Miller, e que inspirou a este último a sua Mona, personagem de, entre outros, “Trópico de Câncer” e “Sexus”.
Esta enigmática mulher, corrupta e obscura em Miller, é, em Anaïs Nin uma heroína, autêntica beauty queen descrita e vivida com toda a beleza e sensibilidade.
(Do blogue, Camel & Coca Cola)


A minha primeira visão da terra foi através da água. Pertenço à raça de homens e mulheres que olham todas as coisas através desta cortina de mar e os meus olhos são a cor da água.
Olhava com olhos de camaleão a face mutável do mundo e considerava anonimamente o meu ser incompleto.
Lembro o meu primeiro nascimento na água. À minha volta a transparência sulfurosa e os meus ossos moviam-se como se fossem de borracha. Oscilo e flutuo nas pontas sem ossos dos meus pés atenta aos sons distantes, sons para além do alcance de ouvidos humanos, vejo coisas que são para além do alcance dos olhos. Nasço cheia das memórias dos sinos da Atlântida. Sempre à espera de sons perdidos e à procura de perdidas cores, permanecendo para sempre no limiar como alguém perturbado por recordações, corto o ar a passo largo com largos golpes de barbatana e nado através de quartos sem paredes. Expulsadas de um paraíso de ausência de som, catedrais ondulam à passagem de um corpo, como música sem som.
Esta Atlântida só podia ser novamente encontrada à noite pelo caminho do sonho. Logo que o sono cobria a rígida cidade nova e a rigidez do novo mundo, abriam-se os portais mais pesados deslizando em gonzos oleados e entrava-se na ausência de voz que pertence ao sonho. Era o terror e a alegria de homicídios conseguidos em silêncio, um silêncio de calhas e de escovas. O lençol de água cobrindo tudo e abafando a voz. E um monstro trouxe-me, por acaso, à superfície.
Perdida dentro das cores da Atlântida, cores que vão dar a outras e se misturam sem fronteiras. Peixes feitos de veludo, de organdi com dentes de rendas, feitos de tafetá, recamados de lantejoulas, peixes de seda e penas e plumas, com flancos lacados e olhos de cristal de rocha, peixes de couro curtido com olhos de groselha, olhos como o branco de um ovo. Flores palpitando-lhes nas hastes como corações de mar. Nenhum deles sentindo o seu próprio peso, o cavalo marinho movendo-se como uma pena…
Era como um longo bocejo. Eu amava a facilidade e a cegueira e as mansas viagens na água transportando-nos através de obstáculos. A água estava ali para nos transportar como um abraço gigante; havia sempre a água para nos repousar, e que nos transmitia as vidas e os amores, as palavras e os pensamentos.
Eu dormia muito abaixo do nível das tempestades. Movia-me dentro da cor e da música como dentro de um diamante-mar. Não havia correntes de pensamentos, apenas a carícia-fluxo-desejo misturando-se, tocando, afastando, vagueando — no abismo infinito da paz.
Não me lembro de ali estar frio, nem calor. Nenhuma dor provocada pelo frio ou pelo calor. A temperatura do sono, sem febre e sem arrepio. Não me lembro de ter tido fome. Era-se alimentado através de poros invisíveis. Não me lembro de ter chorado.
Sentia apenas a carícia de mover-me — de passar para um outro corpo — absorvida e perdida dentro da carne de outrem, embalada pelo ritmo da água, pela lenta palpitação dos sentidos, pelo deslizar de seda.
Amando sem consciência, movendo-me sem esforço, numa corrente branda de água e de desejo, respirando num êxtase de dissolução.
Acordei de madrugada, atirada para uma rocha, esqueleto de um barco sufocado nas suas próprias velas.
(Tradução de Isabel Hub Faria – Edição, Assírio & Alvim)

Ouçam este texto na voz d'ouro de Luís Gaspar, no Estúdio Raposa

Ensopado de borreguinho


O grupo entremeado de machos e fêmeas lá discutia à mesa do borrego assado com batatinhas no seu molho a última cornada do Pinho que o espetou no sossego berardiano, uma faena carnuda com muitos bandarilhas de piadolas.

E de tanto puxar aquele naco lá rabejámos para comer gajos e gajas. Um houve que se enxofrou com tal canibalismo que como o João Pedro Pais ele defendia que ninguém é de ninguém e dava o seu corpo ao sacrifício de quem com ele partilhava o seu como um altar de amor qualquer que fosse a duração e o orgasmo. E eu que até o queria comer e tantas vezes o sonhara nuzinho em pêlo mas obviamente sem uma maçã na boca mas com os seus tomates na minha mão saltei pelo verbo comer como acto de paixão e de prazer equitativo fosse na mesa ou na cama ou em qualquer sítio aprazível para o efeito.

Que cá na minha, mais do que destruir é absorver o outro inteirinho, nos mais ínfimos pormenores e deixá-lo intacto sem estragar nada. Qualquer coisa primitiva como as tribos que comiam o conteúdo das cabeças dos inimigos para guardarem a sabedoria deles mas neste caso sem o matar a não ser pela simulação de morte que fazemos no clímax. Que esta coisa animal do desejo torna-se mais humana por também querermos comer os miolos e fazer do amor o querer comer o outro até às tripas.


[Foto © Henri Cartier Bresson, México, 1934]

Mais poderes = Mais problemas



Renan Lima
Dentro da Caveira