10 agosto 2015

«mi bemol» - João

"Não sabia tocar. Não tinha esse talento. Se alguns tinha, a música pelos dedos não era um deles. Não tinha piano. A destreza dos seus dedos era outra, de outros movimentos, de melar a pele, não de encantar com notas, das notas que se fazem som e apelam aos sentidos. Mas havia música ali, naquela sala. E havia noite a chegar, ao compasso da terra a engolir o Sol, a pouco e pouco, com as linhas da paisagem a mudar de cor, os contornos a tornar-se difusos a pouco e pouco, os gatos nas varandas e nos telhados já pardos, as luzes dos automóveis já acesas naquele momento do dia em que parecem nem fazer tanta diferença assim, e nuvens, algumas também, a rasgar o azul a pontos, e soava música ali. Piano. O piano que não existia naquela sala, que os dedos dele não saberiam nunca tocar, mas havia piano. Havia piano a tocar de uma electrónica fria, provavelmente feita na China, mas piano ainda assim. Um traço de mi bemol a marcar um tom, ele taciturno, o ambiente nocturno, e um toque de frio.

Os pés dela percorreram o chão fresco, leve, ligeira, quase a deslizar, o tecido da camisa a esvoaçar ligeiramente, e a mão assente no pescoço dele, um beijo na cabeça, o corpo a encostar-se a ele, e sempre e ainda o mi bemol a marcar o tom, e a mão dele a tocar a mão dela, a agarrá-la, e ela a deixar o cabelo tocar-lhe o rosto, a janela em frente a eles, a cidade a encolher-se, engolida como o Sol, a pouco e pouco, as linhas da paisagem já negras, os contornos já desaparecidos, dos gatos nem sinal, as nuvens perdidas num céu pintado de negro, a escuridão a invadir a sala sem piano, os dedos sem teclas, pousados no corpo, a nudez a instalar-se, os braços dela a agarrá-lo pelas costas, a apertá-lo com força, e rodam os corpos, passa a perna sobre ele, senta-se ao seu colo, e segura-se assim, tanto tempo, tantos segundos juntos, até o calor os fazer suar dos corpos a bater corações em conjunto, sem fronteira, sem limite, tudo o que se esconde perfeitamente à vista, e nenhum problema, nenhum receio, complexo, restrição.

Quando termina a música, estão os dois na noite mais profunda. Os animais nos seus refúgios, os carros nas garagens, os contornos transformados em nada, a cidade morta, e eles num choro fininho que ao ouvido lhes diz, eu também."




João
Geografia das Curvas

Mamas em todo o lado...

Crica para veres toda a história
... em todo o lado mamas!


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08 agosto 2015

«Desejo compulsivo»


Compulsory Desire from MTK PROD on Vimeo.

«as pessoas que falam demais e as pessoas que falam de menos» - bagaço amarelo

Existem pessoas que falam demais e contam tudo a toda gente sobre tudo e sobre todos. Existem outras que falam de menos e se refugiam constantemente no silêncio para se manterem, a si e aos seus, na privacidade absoluta.
As pessoas que falam demais sabem que falam demais, mas acreditam que as pessoas a quem contam tudo não lhes vão fazer a desfeita de as desmascarar. Acreditam, acima de tudo, que falam demais a pessoas que falam de menos.
As pessoas que falam de menos fazem-no porque põem sempre a hipótese de estarem a falar com quem fala demais. É melhor não contar nada a este tipo porque ele vai contar tudo a toda a gente, pensam.
As pessoas que falam demais são boas, porque acreditam no outro. As pessoas que falam de menos são umas desconfiadas, apesar de desconfiarem de pessoas boas que confiam nelas.


bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»

«Voyeurismo» - por Rui Felício

A Lurdes nasceu nas Torres do Mondego no seio de uma pobre família. Era a mais nova de um rancho de filhos que o Joaquim Vinagre e a mulher iam fazendo uns atrás dos outros. Do cultivo de uma pequena leira num íngreme cabouco perto do rio, o Vinagre mourejava ao sol e à chuva, no arroteio da terra, para tirar umas couves, uns feijões verdes, algumas batatas e nabos com que faziam o caldo ralo para ir enganando a fome da filharada.
Tinha a Lurdes os seus 7 anos, foi com o seu pai a casa do Senhor Teodósio, o homem rico da terra. Quieta em cima das pernas semelhantes a dois finos caniços, coçava o cabelo encaracolado muito preto que lhe emoldurava a carita chupada de onde sobressaiam dois olhos negros assustados, como os de uma gazela que sente, próximo, o cheiro do leopardo.
Fitava o dono da Quinta do Caneiro e o seu pai, que contorcia o chapéu nas mãos nervosas e que pedia para ele a aceitar como criada na sua casa, porque já não conseguia arranjar comida para alimentar tanta gente.
Ali cresceu, sem nunca ter ido à escola, arrumando a casa, fazendo as camas, ajudando na cozinha, despejando pela manhã, na fossa, os penicos cheios que ia buscar a cada quarto.
O seu corpo, antes franzino, começou a ganhar formas, as cores animavam-lhe o rosto, a boca de carmim despertava desejos aos rapazes da terra. Aos dezasseis anos era uma bela mulher, de grandes olhos pretos, apaixonada em segredo pelo Luis, filho do patrão, que andava a estudar em Coimbra. Era um rapaz forte, musculoso, bonito, que trespassava as raparigas da aldeia com os seus olhos azuis.
Naquele domingo, a seguir aos afazeres matinais, a Lurdes preparava-se para ir à missa, como de costume, com a D. Alzira mulher do dono da Quinta.
«a fechadura»
Ittosan, 2009
Aguarela da colecção de
arte erótica «a funda São»
Da gaveta da cómoda carcomida pelo caruncho, no seu acanhado quarto, a Lurdes sacou a roupa domingueira que precisava. Uma blusa bordada no peito, um saiote branco debruado a renda, uma saia plissada de xadrez. Poisou tudo em cima da cadeira. Fitou-se em frente ao espelho antes de se lavar no alguidar de esmalte onde previamente tinha despejado um jarro de água morna. Foi deixando cair a roupa lentamente sem nunca deixar de se mirar no espelho. Deslumbrante na sua nudez virginal, olhava a pele rija, amorenada, firme, voluptuosa, que vestia as carnes torneadas do seu corpo. Duas pétalas de rosa negra arrebitavam-se-lhe no peito, erécteis, simétricas, tentadoras...
Chapinhou na água morna, onde embebeu um pano grosso e passou-o, a escorrer, no rosto, nos sovacos, nos seios, com o pensamento absorto no Luís, que dormia no quarto ao lado.
Assustou-se, quando, espantada, reparou num olho azul num buraco disfarçadamente aberto ao lado do espelho, no tabique de madeira que servia de parede divisória entre os quartos.
Tapou-se à pressa e refugiou-se num canto do quarto com o coração a bater desenfreadamente. Nunca contou isto a ninguém. Fingiu que não tinha dado por nada.
A partir de então, quem estivesse no quarto do Luís, com atenção, conseguiria ver, às vezes, um grande olho negro, brilhante, a espreitar pelo mesmo buraco do tabique.

Rui Felício
Blog Encontro de Gerações
Blog Escrito e Lido

Um sábado qualquer... - «Jesus e Madalena 4»



Um sábado qualquer...