É recorrente...
Todos os anos, nesta data, recordo a Anne Marie, um amor que me marcou para sempre.
Ao fim da tarde, terminada a instrução militar no quartel instalado no Convento de Mafra, corríamos às casernas, limpávamos a poeira debaixo do duche, fardávamo-nos e apressadamente integrávamos a formatura de saída, sujeitando-nos a uma rigorosa inspecção prévia sobre o nosso atavio.
Destroçávamos, logo a seguir à porta de armas e, como formigas, cada um se dirigia aos mais variados locais. Uns iam ao Frederico para se amesendarem para um belo bife com batatas fritas. Outros, iam jogar bilhar, outros ainda, a maioria, aceleravam os carros em direcção à Ericeira para petiscarem no Caniço, comer uma mariscada no Pinta, ou dançar nos bailes do Parque de Santa Marta. Tudo tinha que ser feito a mata cavalos porque, depois da uma da manhã, o quartel encerrava as suas portas e quem não se apresentasse até essa hora seria severamente punido.
O Rui Alvarez e eu embarcámos no seu velho DKW e enfileirámos atrás de muitos outros a caminho da Ericeira. Na Toca do Caboz, já nos esperavam para jantar, as nossas duas namoradas francesas que ali passavam férias e que há quinze dias conhecêramos na discoteca do Ouriço.
Naquele dia, em vez de irmos para a discoteca como era costume, decidimos, depois de jantar, ir passear para o areal da Foz do Lisandro, já noite fechada.
O Rui Alvarez e a sua namorada ficaram dentro do carro. A Anne Marie e eu, caminhámos de mãos dadas na orla das ondas que desmaiavam na praia.
Primeiro uns beijos, umas caricias. Depois já com os corpos grudados num abraço, caímos no areal molhado. Rebolámos, jurámos amor eterno. Os sussurros e os gemidos abafados pelo barulho da rebentação das ondas, e pelo testemunho secreto e o conluio do mar.
Era quase meia noite e meia. Fomos até ao carro e eu disse ao Rui Alvarez que ainda tínhamos que as levar ao hotel e regressar a Mafra antes do quartel encerrar as portas. Tínhamos que nos despachar...
O percurso até Mafra foi feito em louca aceleração. Uma nuvem de poeira pairou no ar à nossa chegada. Era uma em ponto!
Coloquei-me na fila de cadetes formada à entrada do quartel.
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«Amar e amar, há ir e voltar»
Placa em cartão, dos anos 70, da
colecção de arte erótica «a funda São» |
Quando chegou a minha vez, perfilei-me em sentido face a face com o Oficial de Dia para lhe entregar o documento de dispensa e, depois da continência, debitei a lenga lenga do costume:
- Apresenta-se o cadete numero mecanográfico 01236565, que pede permissão para entrar.
O Oficial de Dia mirou-me de alto a baixo e sentenciou em voz brusca:
- Não posso permitir a sua entrada, mal ataviado como está. Saia, sacuda-se e depois volte.
Foi cá fora que me apercebi. Com a ajuda do sentinela, limpei as enormes pastas de areia molhada que permaneciam coladas nas costas do meu blusão e no colarinho da camisa...
Rui Felicio
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