“Beije-me ele com os beijos da sua boca: Porque teu amor é melhor do que o vinho”, Cântico dos Cânticos (Bíblia).
Há muito, muito tempo, beijar era um acto que se dividia em várias dimensões. Tudo podemos sistematizar e organizar julgando que assim criamos conhecimento. Podemos ir aos latinos: os romanos tinham 3 tipos de beijos: o basium, trocado entre conhecidos; o osculum, dado apenas em amigos íntimos; e o suavium, que era o beijo dos amantes.
No beijo ao anel dos bispos ainda temos uma herança do mundo romano. Contudo, é o suavium que aqui nos interessa, a mesma raiz linguística que nos remete para o belo texto religioso musicado para coros por muitos dos mais magistrais mestres em composição.
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Livro «Cântico dos Cânticos»
Tradução do hebraico e introdução de José Tolentino Mendonça, 1997, Cotovia Editores
na colecção de
arte erótica «a funda São» |
Ao contrário da mundivivência latina, hierarquizada e quase por castas, o beijo nos lábios, na boca, remete-nos para o campo da partilha, e não da hierarquia. No beijo todos são iguais. No beijar, as duas bocas são a imagem da igualdade na dádiva.
E o que são dois amantes? Recordo um amigo que há uns meses dizia numa conferencia que a base da palavra francesa para conhecimento era exactamente a ideia de «nascer com…». “Connaître” = “con”+”naître”. No fundo, só conhecemos aqueles com quem nos damos de tal forma que tornamos a nascer. Se o êxtase sexual pode ser solitário, o beijo dificilmente é masturbatório. Há sempre um outro no beijar. É sempre com…
Há beijos que ficam na memória. A intensidade, a doçura, tudo neles nos deixa recordações inesquecíveis. Os lábios, a pele, os jeitos de entrega e de partilha. Sim, recordo a imagem do texto gnóstico em que o beijo de Jesus a Maria Madalena era… de amante ou de transmissão de sabedoria?…
Mais que igualdade, o beijo é, de facto, conhecimento – e agora não o cartesiano, não hierarquizador, mas interior, do ser irrepetível que cada um expressa no beijo. É do campo da Verdade, o in vino veritas, ou inebriamento desse mesmo néctar como o Cântico dos Cânticos nos indica.
O beijo possibilita, numa catadupa de sentimentos, acesso ao íntimo, ao recôndito e tantas vezes escondido ou esquecido. O beijo marca. Um beijo deixa marca como a que ficara no ombro – “toquei–te no ombro e a marca ficou lá”, dizia Sérgio Godinho; um beijo, numa esplanada junto a uma praia, mudou a minha vida. Tomei e deixe-me tomar nessa Estrela do Mar, que já não é do poeta, do Jorge Palma, mas somos nós!
No limite, na troca de um beijo intenso há um renascer com a parceira, há um baptismo vivido, uma imersão, na intensidade do Eu e do Tu que se misturam.
Sim, o Beijo é um conhecimento que é entrega, porque partilha. É o «Com» que dá sentido. Um sentido recíproco que torna todos os momentos verdadeiramente únicos, irrepetíveis e de constante re-nascimento.
Renascer, crescer, viver. Tudo se conjuga com beijar.
Paulo Mendes Pinto