Aquele seria o seu último cigarro e como último cigarro de uma vida que levava quarenta e quatro anos tinha tanto de angustiante como libertador. Não era para menos. No espaço de apenas três dias a sua vida mudara radicalmente e, apesar de ela ter primeiramente interpretado as mudanças como más, no seu íntimo sabia que as vantagens apareceriam lentamente como se fossem bolhas de ar a subir num profundo e escuro oceano.
A sua filha única, Ana, emigrara repentinamente para a Roménia, onde ia começar a trabalhar num call center qualquer; o seu marido, cujo nome não queria tornar a dizer nem para si mesma, deixara um curto bilhete de despedida na porta do frigorífico e fazia agora setenta e duas horas que não aparecia em casa. Curiosamente, a sua primeira reação ao ler o bilhete foi sorrir, mas perante a repetição do feito e a memória de que ele voltava sempre no dia seguinte depois destes bilhetes, o seu sorriso esmorecera como um dia que se faz noite. Estas setenta e duas horas eram portanto uma esperança real de que desta vez talvez ele não voltasse.
Deixar bilhetes de despedida na porta do frigorífico era apenas mais uma decepcionante característica daquele homem. Nem para se despedir conseguia inovar, ser único, surpreendê-la. Até nas anedotas baratas os amantes deixam bilhetes na porta do frigorífico e, na verdade, talvez fosse esse o motivo. Ele nunca tinha lido um livro na vida nem sequer visto um filme mais complexo do que o Sozinho Em Casa. Agora que pensa nisso, ela já nem se lembra por que motivo se apaixonou por ele. Talvez a paixão às vezes seja só uma necessidade estúpida no coração, que depois de morrer nos vicia na carne. E na carne ele tinha sido realmente bom, num período da vida que ela já consegue identificar.
Apagou a angústia do cigarro no tablier do próprio carro, um Dacia Sandero branco comprado em segunda mão dois anos antes e que era agora o seu melhor amigo, e inspirou as réstias do seu fumo libertador. Precisava de se intoxicar de liberdade, pensou. Naquela rua de Lisboa a prostituição de homens era a lei e ela queria voltar a sentir esse vício da carne, tudo o que apenas um fugaz e descomprometido ato de sexo consegue. Ligou o motor do automóvel e avançou cerca de trinta metros para perto de um grupo de homens que se exibia debaixo da tímida luz de um candeeiro público. Depois abriu o vidro da janela lateral do lugar do morto e três deles aproximaram-se.
- Olá querida - disse um.
Era curioso que se chamasse lugar do morto àquele onde por norma se senta quem se prostitui, mas esse pensamento também se desfez em fumo imediatamente. Um dos homens era demasiado baixo e estava nitidamente em bicos de pé enquanto os outros dois se curvavam para dentro do veículo. Tinha sido ele a dizer o "olá querida" mas a sua atenção caiu sobre os outros por esse motivo. Um tinha barba e outro não, o que desampatou a contenda de imediato.
- Se essa barba arranhar, entra, por favor.
O homem que se sentou ao lado dela devia ter cerca de um metro e oitenta, cheirava demasiado a um perfume barato qualquer mas pelo menos parecia ter os dentes todos e o seu olhar era bonito. Não tinha a barriga sobressaída, o que era bom sinal, e os seu braços já estavam cruzados como se se preparasse para uma longa viagem. Não tinha cara de estúpido, mesmo que naquele momento ela não soubesse sequer descrever como seria essa cara, o que era suficiente.
Foi nesse momento que ela percebeu que não sabia o que fazer. Devia ir para um motel, para casa ou poderiam ter sexo mesmo no carro num qualquer canto escuro da cidade? Não quis perguntar para não ficar em desvantagem naquele estranho negócio a dois, por isso optou pela estratégia de parecer decidida e, talvez também porque existia uma pequena hipótese do seu ainda marido ter voltado, disse:
-Vamos para minha casa, está desarrumada e espero que gostes de sexo no sofá! - No fim da frase os lábios tremeram-lhe um pouco.
- Eu não tenho que gostar, querida. Afinal de contas estou a ser pago.
Em apenas cinco minutos, aquele homem já lhe tinha chamado "querida" duas vezes. Era definitivamente estranho, o negócio de prostituição. O Dacia arrancou como se tivesse dúvidas que o queria fazer e desapareceu devagar na primeira curva. Pelo espelho retrovisor ainda viu os outros dois homens a olhar na sua direção.
Um silêncio amargo ia com eles no automóvel, por isso ela ligou o som do rádio que, mesmo sem sintonia perfeita, fazia o favor de justificar a falta de palavras entre ambos.
Ela tinha razão, ele não era estúpido. Estava ali a trabalhar e fizera questão de o sublinhar na primeira oportunidade, o que punha toda a estética do sexo que se aproximava à sua responsabilidade. Ela ia decidir o que ele ia fazer, depois pagava-lhe, provavelmente com um extra para que ele pudesse regressar de táxi.
A casa estava realmente bastante desarrumada, tão desarrumada pelo menos quanto a vida dela. Ele tirou os sapatos, que alinhou perfeitamente na entrada, e os seus olhos procuraram de imediato o sofá num irrequieto voo por todas as portas abertas do pequeno T2. Sentou-se decidido e contou os livros espalhados pelo chão e pela pequena mesa da sala, que eram doze; os cinzeiros cheios de beatas, que eram três; as garrafas de vinho e cerveja vazias, que eram cinco. Quando acabou de contar ela já estava com as mãos no sexo dele.
- Não é difícil! - disse ela decidida - só me penetras quando eu estiver húmida e não quero beijos. Podes fazer isso?
- Posso!
Os corpos despiram-se um ao outro, primeiro com a vista e depois com as mãos. Quando estavam nus começaram por se estranhar e familiarizaram-se depois lentamente, primeiro com as mãos, depois também com a vista. Tornaram-se só um até que ela o imobilizou com a voz para poder controlar sozinha o final.
-Já está! - disse.
Gemeu alguns segundos.
Ele não estava, mas isso pouco interessava. Vestiu-se rapidamente e em dificuldade até o falo amolecer. Deu-lhe um cartão com os dados bancários para que ela pudesse fazer uma transferência bancária de imediato.
- Quanto é?
- Um mínimo de cem. A partir daí é o que quiser.
Ela transferiu cento e vinte e levou-o até à porta. Deu-lhe mais uma nota de vinte para o táxi e trancou-se mal ele saiu. Não lhe disse Adeus nem obrigado. Ele também não disse nada. Desta vez nem lhe chamou "querida".
Dentro de casa ficaram ela e o silêncio, um silêncio tão volumoso como o interior de um ovo. Aquele rápido e intenso momento de sexo permitia-lhe agora pela primeira vez olhar para esse caos da sua casa e percebê-lo, estabelecer uma analogia entre tudo o que é material e a sua solidão. Os cigarros, os livros e o álcool, mas também os pequenos objectos decorativos nas estantes da sala, os ímanes de viagens distantes no frigorífico e algumas pinturas na parede das quais já se tinha esquecido que estavam ali,
Aproximou-se da janela. Lá fora a cidade continuava um formigueiro ignorando-a totalmente, ao sangue quente que lhe corria nas artérias e aos pensamentos enublados que lhe corriam na mente. Na verdade, toda aquela quietude só servia para ela entender isso mesmo, que tinha passado a vida a correr atrás de coisa nenhuma.
O Amor, que tinha sido tudo, encolhera-se lentamente como um figo seco até ser nada e permanecera naquele apartamento a fingir ser vida.
Sorriu. Que noite para deixar de fumar, pensou.
Ivar Corceiro
Blog «Não compreendo as mulheres»
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