... Amo-te como nunca amei mulher alguma...
Guardou a nota de duzentos €uro, dada pelo cliente da noite anterior, novamente na bolsa do telemóvel e continuou crescendo para o dia. Narciso a cobrir-se de folhas e pétalas diante do espelho, terminando por dar, em passo de dança, uma volta completa em frente dele seguindo a imagem, uma vez finalizada a toilette em toques suaves de maquilhagem.Saiu do quarto em direcção à sala. Em cima da mesa estava um papel estrategicamente colocado ao canto da mesma de forma que ela o pudesse ver quando se deslocasse para a porta da rua. Tinha um recado escrito por ele, qualquer coisa a dizer que traria algo para almoçarem juntos.
Experimentou aquela velha mas sempre estranha sensação. Um misto de emoções complexas, controversas. Atravessadas pelos fantasmas dos sorrisos das descobertas da adolescência, alternando as clareiras de sol com névoas já esgotadas e secas de amargura.
Lembrou-se novamente destes últimos meses. Desde a noite em que o conhecera e dos dias seguintes. E dos outros e outros que se lhe seguiram. Das suas juras de amor eterno e incondicional. Da inquietação que lhe angustiara a alma perante a intensidade da paixão, entrega e doçura daquele homem.
A verdade é que se sentira com ele de novo no princípio, nos anos da magia, embora mantivesse o sentimento sob uma capa de cinza parca e apenas morna. Deixou o coração só levemente aflorar o desejo que todos temos de nos entregar sem limites à fogueira dum grande amor na infinita paixão da primeira vez.
Contudo, ela acumulara todas as experiências que acabam por moldar e endurecer o carácter de quem faz da vida o seu modo de vida.
Surgia-lhe diante dos olhos lembranças dos caminhos percorridos.
Inicialmente perdendo-se pelos desvios, atalhos terminando em becos, que derivam das ingenuidades de principiante. Das paixões intensas dos primeiros tempos, estrelas brilhantes que se desfaziam em céus de nada, desilusões e mágoas. Dos homens que lhe haviam jurado a Eternidade e a Lua esfumando-se depois na esteira dum cigarro. Dos que a haviam agredido, das taras e manias e dos tristes e impotentes. Dos pais de família que acabavam por mostrar as fotos da mulher e filhos que traziam na carteira e que a faziam sentir-se mal, enojada consigo própria por aflorar uma estória que não era dela. Da sensação da alma trocada por um prato de lentilhas. Por tudo isto passou, vencendo etapas, circulares e concêntricas, fechando o coração cada vez mais atrás de cada sorriso estudado e de efeito conseguido.
Até arrefecer de um todo com o tempo, até tornar-se indiferente à partilha das emoções. Até ser só ela, afinal e por fim, o centro do mundo, o único ser vivo que importava à face da Terra, abocanhando o viver perigoso como o peixe em vertigem morde o ar em saltos de queda livre fora de água.
Ela dissera-lhe isto diversas vezes, tentando dissuadi-lo.
Afirmara-lhe então que tudo não passava de uma ilusão e que já não tinha espaço para amar e estabelecer laços de afecto com mais ninguém. Dissera-lhe em tom frio que jamais poderia ser de um homem só. Que não queria prisões e que vivia só para ela. Que era a única forma de não ficar a sofrer; a sua defesa. Que a esquecesse. Que ele não passava dum cliente como tantos outros. Um mais entre tantos que se tinham apaixonado por ela e que tão pronto arrefecesse a chama que o enlouquecia, deixa-la ia como os outros num passeio qualquer passando para a puta seguinte.
Mas ele, passando por todas as provas a que uma mulher pode sujeitar um homem, acabara por conseguir que viesse viver consigo.
- Vem! – Dissera com os olhos rasos de lágrimas. – Amo-te! Amo-te como nunca amei mulher alguma. Vem viver comigo. Gosto de ti como és, e nunca te imporei nada. És livre para fazer o que quiseres. Só preciso de sentir-te junto a mim. Cuidar de ti, dar-te o meu calor nas noites de descanso. Afogar-te em amor. Ver-te nas manhãs e…-
Acabou por vir terminar primeiro algumas noites em casa dele, um porto de abrigo e mais tarde deixou-se ficar embora tivesse mantido o seu apartamento próprio onde repousava de vez em quando; o seu reduto de solidão. Soubera-lhe bem ao início ter este homem que cuidava dela. Respondia à sua dedicação com momentos fugazes e, de longe em longe, a partilha de um ou outro dia de descanso em que ele regozijava com a graça concedida de tê-la só para si...
Afastou o pensamento e deu um último toque no seu aspecto ao espelho do bar ao canto da sala. Sob uma outra luz, a maquilhagem parecia-lhe agora um pouco desequilibrada. Retocou, rodando a face enquanto os olhos seguiam fixos a imagem reflectida.
Voltou a ler o bilhete, inspirou fundo, e saiu para o dia a transbordar de azul.
O Verão estaria aí, não tardaria.
Ligou o telemóvel e marcou um número, desligando quase de seguida, elevando os olhos.
Ao cimo da rua o Mercedes cor de prata descia devagar. Acenou com os óculos de sol e apressou o passo, toda tomada de um sorriso aberto e cheio de luz.
Era ele, o novo cliente…