04 janeiro 2010
Filhos de um deus maior
Nada tenho contra a liberdade de actuação destes cidadãos que são incapazes de mexerem uma palha quanto ao estado da Justiça ou de muitos outros males do país mas se mobilizam em grande força contra a liberdade de escolha de outros cidadãos. Ou seja, acho muito bem que usufruam do direito que a liberdade lhes concede de poderem tentar limitar a liberdade dos outros. É paradoxal, mas é assim que a coisa funciona.
Contudo, eu possuo outro direito, o da liberdade de expressão, que me permite afirmá-los retrógrados, falsos puritanos ou mesmo cretinos para manifestar o meu desagrado quanto ao que de mau representam para o modelo de sociedade que gostaria de ver implantado no meu país.
Muitos dos que se mobilizam desta forma contra tudo quanto seja liberdade individual de decisão que fuja ao seu padrão convencional são acérrimos defensores da moribunda instituição do casamento, embora não hesitem em se insurgir contra o mesmo quando está em causa o papão da homossexualidade e qualquer reconhecimento formal da sua existência.
E não se mobilizam contra outra coisa que não impedirem outros de fazerem escolhas que reprovam. Não está em causa qualquer mal que lhes seja imposto, não serão obrigados a casar com pessoas do mesmo sexo. Não querem é que outros o possam fazer porque isso colide com a sua moral pacóvia que tanta felicidade produz, pelo menos nas fachadas por detrás das quais vão ocultando os seus desvarios e outros desvios (que querem manter) secretos. Tão secretos como o amor homossexual, essa aberração como a sentem do ponto de vista social embora com ela convivam inevitavelmente (às escondidas) no seio da sua congregação beata.
Eu não sou gay, mas podia. Não apoio nem deixo de apoiar tal opção, simplesmente não são contas do meu rosário. Mas se fosse, sentir-me-ia insultado pela energia com que esta ala conservadora do costume se empenha em marginalizar todos quantos não sigam a mesma cartilha.
Na prática, eleições levadas a cabo há pouco tempo legitimaram a maioria de esquerda que no parlamento viabilizou a medida que o Governo democraticamente eleito propôs no seu programa para esta legislatura e o povo ainda assim escolheu.
Mas para a brigada do reumático social, a democracia vale o que vale e por isso erguem-se das suas tocas bafientas sempre que está em causa o assumir de realidades que de alguma forma colidam com a sua perspectiva do que os outros devem ser ou fazer.
Foi assim com o aborto, é assim com o casamento entre pessoas do mesmo sexo, será assim na questão da legalização absoluta das drogas leves que o Bloco de Esquerda e algumas juventudes partidárias muito práfrentex deixaram escondidas na gaveta para não se exporem à reacção costumeira destas seitas puritanas.
Sim, sou radical no discurso. Tanto quanto esta gente que engloba, por exemplo, o presidente socialista(?) da Câmara de Loures que não ajudei a eleger e agora percebo porquê, acaba por ser quando chamada a explicar as razões da sua oposição à legislação em causa.
Não há fumfum nem gaitinhas: em causa está o direito à diferença, algo que os conservadores de pacotilha, os moralistas da treta, jamais saberão tolerar mesmo quando essa opção, dos outros, não lhes é imposta.
Postalinho de Torres Novas
Nuno Silva
Torres Novas - Estátua no Jardim
Avental comprado em Itália
03 janeiro 2010
Blind date
Marcámos encontro.
Sabíamos pouco um do outro:
o sexo, o nome e a idade.
Tínhamos trocado algumas fotos
(cada um de nós pensando
que as fotos podiam ser
de outra pessoa qualquer!)
e avançámos para o conhecimento
pessoal, cara a cara, corpo a corpo.
Dizer que ficámos de boca aberta
- de espanto positivo -
seria mentir.
- Adeus, boa tarde, foi um prazer.
E cada um foi à sua vida;
felizmente.
Foto e poesia de Paula Raposo
Tempo de anoitecer (Epilogue) @MissJoanaWell
Não me interessa se o teu Planeta tem vários Sóis. Eu sou Lua. Não existo nas mesmas horas que as tuas Estrelas. Existo na tua hora.
Talvez ainda não saiba como é. Mas talvez saiba como devia ser. E isso basta-me.
Este é o meu anoitecer. Atende ao compasso ou amanhece daqui para fora.
O tempo não é a medida do meu peito. Aqui dentro não mora o que passa.
Quando morrer amanhã, serei, hoje, eternamente tua.
As nossa palavras só têm segundos de distância. Como nós, enquanto as tivermos.
Tu, talvez não. Hoje vai estar colado ao resto dos meus dias. Mesmo que te coles ao meu "nunca mais". Serás sempre hoje.
Não, não é uma bola, o que te dei. É um Mundo. O meu.
Lucélia Santos - Bonitinha Mas Ordinária 2
Lucélia Santos - Bonitinha Mas Ordinária 2
by EunusRex
02 janeiro 2010
Erotismo num crepúsculo de Janeiro
Para uma tarde de Janeiro estava até bastante quente, com os seus dezoito graus Celsius. Quando se tem pouco cabelo, até uma brisa mais ligeira se nota, agitando os poucos cabelinhos curtos que resistem. Consigo dizer que havia uma brisa ligeira nessa tarde. O sol, já muito baixo no horizonte, projectava sombras longas das pessoas que caminhavam no passadiço entre o hotel e a costa rochosa. O mar batia nos grandes blocos de granito e por vezes salpicava, havia o cheiro no ar, do sal, do sargaço, e de perfume.
Chegaste e sentaste-te em silêncio com as tuas botas pretas de camurça, meias pretas opacas e saia, também preta, acima do joelho. Sabias que ia reparar nisso. Ao longo dos anos fui aperfeiçoando a capacidade de ver sem olhar, e de olhar de lado sem cansaço. Como permanecia em silêncio, perguntaste, «não dizes nada?».
Não. Não tinha dito nada. Tinha apenas ficado a pensar no momento. No que aquilo era. A sentir a cadeira sob mim, o copo na minha mão, o sol que ainda me iluminava a cara, e a tua figura ao lado, enquanto permaneciamos naquela varanda de quarto de hotel. Há muitos, muitos anos atrás qualquer pornografia chegava. Quando se é adolescente o que se quer é sexo, muito sexo, sempre sexo. Não precisa de preparação, precisa de instruções mas não queremos saber, pode vir a qualquer hora, em qualquer lugar. Há muitos anos atrás, uma porcaria nórdica qualquer, ou um da Cicciolina, serviria perfeitamente. E qualquer mulher, sem grandes arranjos, serviria. Quando finalmente viro a cara e te observo acabo por te dizer que «mas agora é tudo tão diferente. Acho que umas loiras nórdicas já não me deixariam feliz, ainda que fossem duas, ou três».
Não creio que fizesse qualquer tipo de sentido para ti. Não entenderias. Não esperaria que entendesses. Estavas recostada na cadeira mas endireitaste-te e chegaste-te um pouco à frente. Estavas à minha direita, e tinhas a tua perna direita um pouco mais à frente que a esquerda, que dobraste um pouco mais quando te reposicionaste na cadeira. A saia subiu um pouco, ficou solidária com o têxtil que te servia de assento e deixou-me ver o contrastre da pele branca das tuas coxas, com o preto das meias que as dividiam em dois, que insistiam em manter-se no lugar por teimosa silicone. Disfarcei.
- Mas tu nem gostas de loiras! E que ias tu fazer com duas, quanto menos três? – e rias, bem disposta.
Faria com duas ou com o três o mesmo que com uma. Existia na minha cabeça imaginação suficiente para me entreter. Mas o importante já nem era isso. O importante é que eu já não queria duas ou três, já não queria sexo em pacote, do tipo instantâneo. Queria erotismo. Não imaginava que me entendesses.
- Nem sempre o que importa é foder. Repara… seria para mim, agora e já, muito mais excitante poder tocar-te sem fronteiras, dar-te prazer, e nunca te foder. Assim, pelo menos, a sedução seria mais longa. Talvez até nunca terminasse.
- Eu sei. Não quero que me fodas. Mas podes tocar-me. Se quiseres. Eu entendo.
Correndo os fechos tiraste primeiro uma bota, depois a outra. E mesmo aí usaste todos os truques, nunca pousando totalmente os pés no chão, a não ser para caminhar, e mesmo assim, mal apoiando o calcanhar no chão. Mesmo sentada, enquanto tiravas a segunda bota, mantiveste o teu pé esquerdo esticado, dando tensão muscular à perna, moldando-a tão bem. Tão bem. Sabias claramente o que estavas a fazer. Mas estava já fresco, começava a instalar-se a noite, uma noite de Janeiro, com o céu limpo. Entraste no quarto. Do lado de fora, ainda sentado na varanda, podia ver-te lá dentro deixando cair a saia no chão. As botas estavam cá fora, as meias pretas estavam lá dentro, nas tuas pernas, a saia estava no chão. A camisola felpuda estava agora a sair, revelando um soutien simples, preto também, de abrir à frente, como eu gosto. E não havia mais nada. Não havia mais nada!
Levantei-me, finalmente, enquanto te deitavas na cama larga, quase de lado, dando forma às pernas. Entrei maravilhado pelo contraste das tuas coxas brancas com o tecido escuro. Subitamente, senti-me arrancado do universo dos filmes nórdicos para um outro, como se estivesse a ver um filme qualquer de Andrew Blake. Naquele espaço havia cheiro a erotismo, e quase nenhum a sexo. No entanto…
- Podes tocar-me, se quiseres. E prolongando as sílabas, onde… quiseres.
Cadência
quando retornam
aos seus lugares;
a cadência dos segredos
quando aveludam
vagos olhares;
a cadência dos momentos
quando entranham
a paixão no ar;
a cadência de janelas
que se começam
a descortinar;
a cadência das velas
quando dançam
até queimar;
a cadência da alma
quando a encantam
até pairar;
a cadência do conforto
adormeceu
na minha cama
que a cadência do teu corpo
(que é a cadência das estrelas,
e é a cadência dos segredos,
é a cadência dos momentos,
é a cadência das janelas,
é a cadência das velas,
é a cadência da alma)
chamou a do meu
até cair saciada.
«Les jours de l'homme» de Julien Besançon com ilustrações de Jean Dratz
Livro de 1940 numa edição especial em papel Madagáscar e com uma bolsa/capa, tendo como bónus várias folhas com ilustrações a preto e branco (provavelmente para colorir).
Delícia das delícias, com o livro vem o desenho original da ilustração da página 95:
01 janeiro 2010
Breve Primavera @MissJoanaWell
Maio fundiu-se com Setembro. Três meses no útero da ilusão.
Setembro adentrou Outubro. Amam-se. Vararam-se. Consomem-se no calor de Agosto. Depois de sonhar que ele era um sonho, já não o quis realizar. A cada grão de realidade, espreita o pesadelo. Entardeceu a Primavera.
O Paraíso
– O quê?
– Não viste?
– O quê?
– Ali! Olha p’ali!
– Onde? Onde?
– Ali, pá! Ali… Eee… Olha-me para aquela mulher! Meu Deus!
– Que monumento!
– Monumento? Aquilo é uma catedral, pá!
– Uma catedral?!
– Olha para aquelas formas perfeitamente esculpidas, aquele ar divino, o andar flutuante de anjo, a imaculada figura… Meu Deus!...
– E aquele pato bravo que vai com ela…
– Qual pato bravo, aquilo é um pedreiro-livre… Um pedreiro-livre que anda a montar a catedral.
– Achas que o gajo sabe o segredo para polir a pedra bruta?
– Não sei se sabe esse mas sabe um qualquer que nós não sabemos, isso é certo.
– Hei!... Eu sei quem é o tipo… Não o estava a conhecer mas é ele. É ele, eu conheço-o.
– Se a conhecesses a ela… Isso é que era um dia em cheio!
– O gajo não é empreiteiro. Não é pato bravo!
– Não?
– Não, é facilitador de contactos…
– Facilitador… É pá, o gajo podia era facilitar o meu contacto com ela. Isso é que era de valor!
– O gajo não é desses facilitadores.
– Há outros?
– O gajo é uma espécie de promotor de relações comerciais. Está ligado ao partido e movimenta-se bem…
– Vareja, queres tu dizer.
– Pois, é isso mesmo, vareja: faz a ligação entre as oliveiras e o chão, ainda que nunca toque na azeitona.
– Que linda imagem… Num mundo ideal e reconhecido, não neste, soez e cheio de invejas mesquinhas… Num país a sério, varejadores como aquele seriam uns senhores. Uns senhores.
– A palavra de ordem seria: Varas de todo o mundo uni-vos num só sindicato!
– E o varejador não se havia de transportar num mísero Mercedes de cinquenta mil euros e só com uma catedral daquelas ao lado, havia de andar de Bentley, com basílicas, pá, nada menos que basílicas ao lado e haviam de lhe ofertar, com vénias e salamaleques, baldes, baldes de robalos fresquíssimos e terem para com ele sempre uma palavra amiga, uma conversa privada.
– Isso é que era um país!