Tinha idade para ser meu pai. Ou mesmo avô. Era um daqueles homens a quem é difícil adivinhar a idade.
Já estivera em Peniche, condenado por actividades subversivas contra o Estado, onde o tempo tinha parado uns anos.
Trazia sempre consigo uns papeis rabiscados com letras que ia fazendo para canções de protesto contra o regime. Mas só conseguia fazer-se ouvir na pacatez do seu humilde quarto alugado da Rua das Padeiras, e depois de cuidadosamente se certificar que a malta que o escutava era de confiança.
Frequentava a Democrática e não regressava a casa sem passar pela Rua Direita onde, dizia ele, o Salazar com uma simples assinatura tinha decretado a extinção legal das prostitutas, transformando-as em mulheres de “vida fácil”!
A velha viola parecia gritar de revolta quando os seus dedos inábeis lhe martelavam as cordas, acompanhando, dissonantes, os versos que ele cantava com voz rouca e os olhos em alvo.
Garantia-nos, esperançado, que um dia a sua voz poderia ser ouvida em inteira liberdade.
Com o 25 de Abril, aprestou-se para cantar em comícios e sessões de esclarecimento, mas nunca conseguiu fazer-se ouvir como sonhara.
Desculpava-se dizendo a quem com ele privava:
"Antes da revolução as minhas canções esbarravam contra a ditadura.
Agora que sou livre, esbarram contra a dentadura..."
Rui Felicio
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Encontro de Gerações