Encontrei este delicioso naco de prosa e apeteceu-me partilhá-lo convosco:
«(...) Quando nos encontrávamos naquele quarto manhoso daquela pensão manhosa, foi a melhor época das nossas vidas.
Éramos admiravelmente mentirosos, encontrávamo-nos ali admiravelmente clandestinos, ninguém poderia imaginar que eu, Tita, e ele, Vítor, saboreávamos, todos nus em cima da cama, obscenos bombons de chocolate e ginjas, que nos apalpávamos espaçada e gulosamente, sem pressas, e ele, sem pressas, ia apresentando intimidades do seu corpo que eu desconhecia, novas borbulhas, novos pêlos, e tínhamos também as nossas doces fantasias. A que ele gostava mais era aquela com o meu vestido de comunhão que já não me servia, mas imaginávamos coisas com ele. E imaginávamos muito mais coisas e ele chamava-me «minha putinha doce», e eu pensava «ah, que bom!» e deixava cair um fio de baba pelo pescoço abaixo.
Também me chamava Madame e Mademoiselle enquanto entrelaçava os seus pés nos meus pés e as suas pernas quentes nas minhas pernas quentes e assim rolávamos, rolávamos até cair num abismo com milhares de cores à nossa volta, até cairmos num poço sem fundo, húmido, cheio de salamandras e bichos esquisitos que trepavam pelos nossos corpos colando-se e fixando-se sofisticadamente nas nossas intimidades (...)»
Cristina Carvalho
em "A CASA DAS AURORAS"
publicado em 2011 por Planeta Manuscrito