–
Provavelmente já não te direi mais nada. – Gonçalo desapoiou o queixo da mão
direita, passou os dedos em volta da boca e continuou: – Não sei o que mais te
podia dizer. – Fez uma nova pausa e concluiu: – Não sei o que te dizer, Inês,
não sei mesmo.
Gonçalo
respirou fundo e engoliu em seco, sentia uma tristeza que lhe pesava
fisicamente. Olhou em volta sem ver nada, sem a ver, atento só aos primeiros
acordes da música lenta e desconsolada que parecia envolver todo o espaço. “Codex”,
reconheceu. Não os podia ouvir muito tempo, sabia disso. Por exemplo, adorava “Kid
A” mas quando chegava ao fim ficava normalmente num estado lastimoso, como se o
mundo não tivesse solução nem a vida qualquer sentido. Ouviu os mais de quatro
minutos da música em silêncio e sem se mexer.
–
Eu sei que fiz tudo mal, Inês – Gonçalo recomeçou a falar num fio de voz mas
como se não se tivesse chegado a calar. – Devia ter insistido. Devia ter-te
dito que te queria. Eu queria-te, Inês. – Gostava de ouvir o nome dela. Precisava
de dizer o nome dela. – Eu quero-te, Inês. – A ausência de nomes nas conversas, magoavam-no. Percebia
que as pessoas não fizessem por mal. Sabia que ele próprio era capaz de falar
horas sem dizer um nome mas sabia, sabia tão bem, que, no fim, lhe ia custar
perceber que não nomeara com quem falava. Que falara com aquela pessoa como se falasse com outra pessoa
qualquer. – Provavelmente… – riu. – Provavelmente… – repetiu em tom sarcástico,
acenando com a cabeça, censurando-se. – Quem eu é que eu quero enganar com
estes provavelmentes? As coisas são o que são e os provavelmentes são pontos de
fuga que arranjamos para não assumir todas as culpas. Todas as
responsabilidades. A probabilidade de uma coisa não ser o que nós fizemos que
ela fosse não é da nossa responsabilidade. Se, contra todas as probabilidades,
um acto ou um conjunto de actos não tem o fim que devia mas sim um melhor do
que o esperado, isso não se deve a quem os praticou, pelo contrário, aconteceu apesar
da nossa culpa. – Gonçalo calou-se e concentrou-se na música mas não a
reconheceu. Não lhe sabia o nome. Ainda eram os Radiohead e estavam a fazer-lhe
mal. Isso sabia. Começou outra música. – Provavelmente – riu-se da repetição da palavra que,
no entanto, julgava ser acertada nesta frase. – Provavelmente, esta não é a
melhor banda sonora, Inês. – Levantou os olhos e viu-lhe a face inexpressiva e inescrutável.
Fez uma careta para si próprio e, então, suspirou, sem querer mas sem o
conseguir conter. – Desculpa – murmurou, sentindo o suspiro como uma falha.
Levantou-se da cadeira e foi até ao leitor de mp3 que alimentava as colunas de
onde saía a música. “Give up the ghost”, leu e sorriu. Tornou a ler e o sorriso
abriu-se mais. Virou-se para ela. – Acho que ias achar piada a esta – disse. – À
situação – riu. – É um bocadinho macabro e demasiado negro mas give up the
ghost é, dirias tu se não estivesses aí, se não fosses tu o ghost, a banda
sonora ideal para animar as visitas.
Gonçalo
aproximou-se da cama onde jazia o corpo de Inês, tocou-lhe na mão, que o surpreendia
sempre pelo calor que emanava e pela maciez, beijou-a levemente no rosto e
despediu-se. – Até amanhã, Inês.
– Ah! – Gonçalo encostou a porta que já abrira para sair. – Hoje vou pedir ao teu irmão que acrescente os Smiths ao mp3. – Riu como se risse com ela. – Claro, Inês, o que é que havia de ser? – E saiu a trautear: – "Girlfriend in a coma, i know, i know, it's serious."